O fascínio de Vladimir Putin pelas conquistas da União Soviética na 2ª Guerra e os constantes paralelos históricos utilizados pelo presidente para mobilizar a sociedade russa são parte de uma tentativa - até o momento bem sucedida - de legitimar a manutenção de seu governo no poder.
Essa é a análise de Serguei Radchenko, professor da Escola de Estudos Internacionais Avançados da Universidade Johns Hopkins. Nascido na Rússia, Radchenko aponta a busca por legitimidade como o fator-chave para explicar o manejo de conceitos históricos pelo atual ocupante do Kremlin - e como a guerra na Ucrânia pode ter um efeito diferente e oposto para a Rússia e para Putin.
“Putin está tentando apresentar um tipo particular de narrativa da História, que sugere que seu próprio governo é o resultado legítimo e inevitável do processo histórico”, explica o professor.
Quando falamos sobre a União Soviética, estamos falando da Rússia, mas também de outras repúblicas. Especificamente quanto à Ucrânia, como os ucranianos hoje observam a resistência histórica em Stalingrado e a resistência nos tempos soviéticos?
Por um bom período de tempo, a narrativa ucraniana da Grande Guerra Patriótica e a narrativa russa caminhavam juntas, porque Rússia e Ucrânia faziam parte do mesmo país, a URSS - apesar da Ucrânia e de outros países talvez terem recebido a o pior parte do golpe nazista na invasão.
Havia milhões de veteranos de guerra no início dos anos 1990, quando há o colapso da URSS, e ainda há veteranos vivendo na Ucrânia e pensando sobre Stalingrado e a 2ª Guerra da mesma forma que os veteranos russos.
80 anos de Stalingrado
O que mudou com o tempo foi na Rússia. Moscou começou a construir um tipo diferente de História da 2ª Guerra que foi bem diferente do que realmente aconteceu no terreno, com o propósito político de legitimar a Rússia como uma ideia, a Rússia como um Estado (após o fim da URSS).
Este esforço, de alguma forma, precede a dissolução da URSS, mas certamente aumenta sob Putin. Sob Putin, você tem esse fascínio ou obsessão com a História da 2ª Guerra, como uma espécie de parte de uma narrativa legítima para o atual Estado russo.
Neste ponto você tem uma separação decisiva entre a Rússia e as ex-repúblicas, porque elas não podem jogar na mesma narrativa. Nenhuma das ex-repúblicas precisa recorrer à 2ª Guerra para legitimar sua própria existência.
Quer dizer, para as repúblicas, eles podem se basear na história da exploração imperial russa. Dizem: “Sempre existimos, mas antes éramos explorados pelos soviéticos, pelo Império Russo, mas agora existimos, nos sentimos legitimados”.
Putin apela em um nível muito emocional para os russos comuns.
A 2ª Guerra não é o único evento histórico no qual Putin se apoia ao manejar o poder. Eventualmente ele também usa o czarismo, por exemplo. Como você entende esse uso de conceitos por Putin?
Putin está tentando apresentar um tipo particular de narrativa da História, que sugere que seu próprio governo é o resultado legítimo e inevitável do processo histórico. Ele volta ao desmembramento da URSS, que ele vê como uma catástrofe geopolítica e, a partir daí, traça a narrativa de que veio resgatar a Rússia da catástrofe em que ela se colocou, o que o legitima.
A 2ª Guerra é particularmente interessante a este respeito, porque é quase o único evento recente na história russa-soviética que todos entendem. Todo mundo tinha família envolvida: alguém que foi morto, que lutou na guerra, que sofreu com o resultado da guerra. Ele apela em um nível muito emocional para os russos comuns.
Também dá uma sensação de sentimento de Justiça, e Putin o explora, porque as pessoas querem se sentir bem consigo mesmas. E o que é interessante sobre a 2ª Guerra é que este é o momento em que a União Soviética “salva a Europa dos nazistas” - e não é exagero dizer que, a URSS derrotou a invasão alemã, porque grande parte do poder humano alemão foi derrotado na frente Leste.
A ideia é de que houve uma luta justa para libertar o mundo e libertar a Europa, que os russos foram os justos, porque era a coisa certa a se fazer. E quando os europeus se recusam a reconhecer isso, eles mostram como são ingratos.
É assim que essa narrativa é usada por Putin. São paralelos históricos que ajudam a legitimar políticas.
O uso de narrativas esteve muito presente quando Putin anunciou a invasão da Ucrânia, como quando falou sobre o nazismo na Ucrânia...
Claramente essa é uma alegação fabricada. Putin recorreu a todo tipo de explicação para legitimar a guerra. Ele entendeu que se iria travar uma guerra, precisaria de algum tipo de explicação - e a “desnazificação” não é a única.
A primeira é uma explicação de segurança. A Ucrânia apresentaria um perigo claro e iminente para a Rússia, e se Moscou não invadisse, ela entraria para a Otan. Então seria uma guerra preventiva. Mas muita gente não acreditaria nisso, então Putin precisou fornecer uma explicação adicional, e você pode recorrer a exemplos históricos. Aí vem a ideia “há nazistas na Ucrânia, vamos desnazificar a Ucrânia”.
Isso foi explorado pela propaganda e os chamados nazistas se tornaram uma preocupação importante. O governo russo tem feito isso com muito sucesso, em relação à sua própria população, porque eles introduziram termos como nazistas e agora as pessoas comuns falam sobre a guerra na Ucrânia adotando alguma linguagem sem entender.
E o terceiro elemento é a de abordagem mais complicada: de que a Ucrânia não existe, porque na verdade é parte da Rússia. Para muitas pessoas de uma determinada idade, que lembram dos tempos soviéticos, esse argumento faz algum sentido.
O que estamos vendo é uma estratégia de propaganda muito interessante, muito vinda diretamente de Putin, desdobrando-se ideológica, histórica e estratégica para justificar a guerra.
Vladimir Putin usa esse tipo de retórica há muito tempo, mesmo antes da guerra. Por que esse tipo de retórica tem penetração na sociedade russa?
Há muitas razões. Em primeiro lugar, a sociedade russa nunca desenvolveu a tradição liberal. Se você voltar ao início dos anos 90, quando Yeltsin ainda estava no cenário político, logo após o colapso da URSS, havia uma oposição parlamentar substancial. Alguém poderia pensar que foi um momento democrático na História da Rússia, mas se você olhar quem era essa oposição, eles eram comunistas ou fascistas.
Ou seja, quando de repente a URSS entrou em colapso e as pessoas tiveram a chance de ir lá e votar, eles foram e votaram nos comunistas e nos fascistas.
Eu diria que esse não é um fenômeno único em muitos aspectos. Vimos o que aconteceu no mundo com o avanço do populismo e da extrema direita, como foi na Europa com o Brexit e com Boris Johnson, Donald Trump nos EUA, pessoas como Bolsonaro no Brasil... Muitas pessoas defendem ideias pelo menos populistas.
As pessoas precisam de uma ideia, uma inspiração. Esse tipo de retórica (evocando as glórias da 2ª Guerra), especialmente em uma época da depravação econômica e da crescente desigualdade como no fim da URSS, ela toca as pessoas - especialmente com pessoas desacostumadas com ideias liberais.
Se eu fosse colocado nas condições de pessoas sem tanto acesso à informação livre e me sentisse humilhado em razão de alguma situação socioeconômica, eu poderia comprar a retórica de um demagogo que prometesse grandeza. Qualquer um poderia.
Qual foi o momento de virada do uso desse tipo de retórica por Putin?
Eu diria que essa mudança começa por volta de 2007, quando Putin começa a se virar cada vez mais antiocidental. Mas por muito tempo, ele caminhou por trilhos paralelos, realizando algumas reformas liberais, enquanto fazia apelos nacionalistas para o público interno.
Mas a virada crucial aconteceu em 2011/2012, quando Putin basicamente limpou a oposição doméstica para realizar eleições fraudulentas. Isso exigiu uma espécie de infusão de propaganda na doutrina nacionalista no governo de Putin – de uma forma que não existia até então, porque, se você lembrar, quando Putin chegou ao poder pela primeira vez, ele falava sobre liberdade, liberalismo, direitos humanos, modernização da Rússia...
Quando todas essas promessas começaram a falhar, Putin entendeu que era o momento de manter sua sustentação na sociedade russa. Ele se voltou para o nacionalismo, o que se mostrou um movimento bem sucedido - tanto que não há evidência de que o povo russo esteja farto disso, muitos estão acolhendo essa postura.
Claro que não é todo mundo. Talvez não seja nem a maioria da população. Mas mesmo esses, até certo ponto, acreditam na narrativa de que o Ocidente odeia a Rússia e que é preciso manter a união para não ceder ao inimigo.
Como você avalia a tomada de decisão da Rússia de iniciar a guerra na Ucrânia, considerando que a guerra resultou em uma série de sanções internacionais?
Há duas maneiras de encarar essa questão.
A primeira delas é a partir da visão do interesse nacional da Rússia. E dessa perspectiva, a invasão da Ucrânia foi um grande erro estratégico - e um crime - que o país vai pagar por muitos e muitos anos.
Mas da perspectiva de Putin, a coisa não está tão clara: Ele conseguiu consolidar a sociedade em seu entorno; Não há espaço para a oposição, que foi praticamente destruída; Há uma separação cada vez maior entre a Rússia e a Europa.
Com isso, é cada vez menor o espaço de ideias alternativas e de contestação ao Estado dentro da Rússia, o que ajuda Putin a consolidar seu regime brutal.
Em resumo, para a Rússia, essa situação toda é um desastre. Para a Ucrânia, é uma tragédia. Mas para Putin propriamente, eu acho que está tudo bem em seu bunker no Kremlin.
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