No início da pandemia de coronavírus, quando milhares de soldados americanos começaram as manobras da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) na Alemanha, Atila Hildmann fez uma rápida pesquisa no YouTube para ver do que se tratava. Rapidamente encontrou vídeos postados por seguidores alemães do QAnon.
Na narrativa do QAnon, este não foi um exercício da Otan. Foi uma operação secreta do presidente Donald Trump para libertar a Alemanha do governo da chanceler Angela Merkel – algo que eles aplaudiram. “O movimento QAnon disse que essas são as tropas que vão libertar o povo alemão de Merkel”, disse Hildmann, uma celebridade de culinária vegana que não tinha ouvido falar do QAnon. “Espero muito que o QAnon seja real.”
Nos EUA, o QAnon já evoluiu de uma subcultura marginal da internet para um movimento de massa que se tornou popular. Mas a pandemia está alimentando as teorias da conspiração para muito além das costas americanas, e o QAnon está se espalhando como metástase também na Europa.
Grupos surgiram da Holanda aos Bálcãs. No Reino Unido, protestos fazendo referência ao QAnon sob a bandeira de “Salvem nossas crianças” ocorreram jáem mais de 20 cidades e vilarejos, atraindo um grupo demográfico mais feminino e menos de direita.
Mas é na Alemanha que o QAnon parece ter feito as incursões mais profundas. Com o que é considerado o maior número de seguidores – cerca de 200 mil –- no mundo que não fala inglês, ele rapidamente tem conquistado audiência no YouTube, Facebook e no aplicativo de mensagens Telegram. Pessoas agitam bandeiras no formato da letra Q durante protestos contra medidas em resposta ao novo coronavírus.
E na Alemanha, como nos EUA, ativistas de extrema direita foram os primeiros a se aproximar, tornando o QAnon um novo elemento político inesperado e volátil quando as autoridades já estavam lutando para erradicarredes extremistas.
“Há uma sobreposiçãogrande”, disse Josef Holnburger,cientista de dados que acompanha o QAnon na Alemanha. “Os influenciadores e grupos de extrema direita foram os primeiros a impulsionar agressivamente o QAnon.”
As autoridades estão perplexas porque uma teoria da conspiração aparentemente maluca a respeito de Trump lutando contra um “Estado Profundo” de satanistas e pedófilos ressoou na Alemanha. As pesquisas mostram que a confiança no governo de Merkel é alta, enquanto o partido de extrema direita Alternativa para a Alemanha, ou AfD, na sigla em alemão, tem enfrentado dificuldades.
“Fiquei surpreso que o QAnon esteja ganhando tanto impulso aqui”, disse Patrick Sensburg, legislador do partido conservador de Merkel e integrante do comitê de supervisão de inteligência. “Parecia uma coisa americana. Mas está caindo em terreno fértil.”
A mitologia e a linguagem que o QAnon usa – de alegações de assassinato de crianças para rituais a fantasias de vingança contra as elites liberais – evocam antigos tropos antissemitas e fantasias de golpe que há muito tempo animam a extrema direita alemã. Agora, esses grupos estão tentando aproveitar a popularidade viral da teoria para atingir um público mais amplo.
O QAnon está atraindo uma combinação ideologicamente incoerente de oponentes da vacina, teóricos marginais e cidadãos comuns que dizem que a ameaça da pandemia é exagerada e as restrições do governo injustificadas.
Até alguns meses atrás, Hildmann era popularmente conhecido apenas por seu restaurante e livros de culinária e como convidado em programas de culinária na televisão. Mas com 80 mil seguidores no Telegram, ele se tornou um dos amplificadores mais importantes do QAnon na Alemanha. Ele é uma presença regular e barulhenta nos protestos contra a resposta ao novo coronavírus, que atraiu mais de 40 mil pessoas em Berlim neste verão, para lutar contra o que ele considera ser uma falsa pandemia inventada pelo “Estado Profundo” para eliminar as liberdades.
A teoria da conspiração QAnon surgiu nos EUA em 2017, quando um usuário com pseudônimo afirmou ter acesso ao nível mais alto de acesso a informações confidenciais dos EUA – o Q – começou a enviar mensagens criptografadas no fórum de mensagens 4Chan. As elites globais estavam sequestrando crianças e mantendo-as em prisões subterrâneas para extrair do sangue delas uma substância que prolonga a vida, sugeriu o usuário. Uma “tempestade” estava chegando, seguida por um “grande despertar”.
Para historiadores e especialistas em extremismo de extrema direita, o QAnon é um fenômeno muito novo e muito antigo. Criado nos EUA atuais, tem ecos poderosos do antissemitismo europeu de séculos passados, que esteve na origem da pior violência que o continente já conheceu.
A ideia de uma elite sugadora de sangue e sem raízes que abusa e até come crianças é uma reminiscência da propaganda medieval sobre judeus bebendo o sangue de bebês cristãos, disse Miro Dittrich, um especialista em extremismo de extrema direita da Fundação Amadeu Antonio, com sede em Berlim.
“É a versão do século 21 do libelo de sangue”, disse Dittrich. “A ideia de uma conspiração global das elites é profundamente antissemita. ‘Globalistas’ é um código para judeus.”
Muitos, entretanto, são pessoas que nos primeiros dias da pandemia nada tinham em comum com a extrema direita, apontou Dittrich. “Dava para ver isso em tempo real nos canais do Telegram”, disse ele. “Aqueles que começaram em abril com preocupações com o lockdown tornaram-se cada vez mais radicalizados.”
Questionado a respeito dos perigos do QAnon, o serviço federal de inteligência doméstica respondeu com uma declaração dizendo que “tais teorias de conspiração podem se transformar em um perigo quando a violência antissemita ou violência contra funcionários políticos é legitimada com uma ameaça do ‘Estado Profundo’.”
A chave de ignição para a propagação do QAnon na Alemanha foi o “Defender-Europe 2020”, um exercício de treinamento da Otanem grande escala, disse Holnburger, cientista político.
Quando foi reduzido nesta primavera por causa do novo coronavírus, os seguidores do QAnon alegaram que Merkel havia usado uma “pandemia falsa” para destruir um plano de libertação secreto.
Então, um movimento de extrema direita, conhecido como Reichsbürger, ou cidadãos do Reich, juntou-se ao movimento online do QAnon para dar maior visibilidade à sua própria teoria da conspiração.
O Reichsbürger, estimado pelo governo em cerca de 19 mil seguidores, acredita que a república alemã do pós-guerra não é um país soberano, mas uma corporação criada pelos aliados após a 2.ª Guerra. As conspirações do QAnon se encaixaram nas suas e ofereceram a perspectiva de um exército liderado por Trump restaurando o Reich alemão.
Em 5 de março, os elementos dos dois movimentos se fundiram em um grupo comum no Facebook, seguido uma semana depois para um canal no Telegram. Duas semanas depois, no meio do lockdown, o popstar alemão Xavier Naidoo, um ex-juiz do equivalente alemão ao “American Idol”, juntou-se a um grupo QAnon e postou um vídeo chorando no YouTube em que contava a seus seguidores a respeito de crianças sendo libertadas de prisões subterrâneas. Um influenciador de extrema direita, Oliver Janich, repostou a publicação para suas dezenas de milhares de seguidores do Telegram.
Desde então, o maior canal do QAnon em alemão no Telegram, o Qlobal Change, quadruplicou seus seguidores para 123 mil. No YouTube, ele tem mais de 18 milhões de visualizações. No geral, o número de seguidores de contas relacionadas ao QAnon em todas as plataformas aumentou para mais de 200 mil, estima Dittrich da Fundação Amadeu-Antonio.
Alguns seguidores do QAnon são extremistas conhecidos, como Marko Gross, um ex-atirador de elite da polícia e líder de um grupo de extrema direita que armazenava às escondidas armas e munições. “Trump está lutando contra o Estado Profundo”, disse ele em junho.
Hoje em dia você também vê isso nas ruas da Alemanha. Michael Ballweg, empresário de software de Stuttgart que fundou a Querdenken-711, a organização que tem estado no centro dos protestos contra as restrições ao novo coronavírus, recentemente começou a fazer referência ao QAnon.
Uma vertente da juventude oriental do AfD usou “WWG1WGA”, uma abreviatura para o lema do QAnon “Onde vamos um, vamos todos”, em suas páginas do Facebook. O maior risco, dizem especialistas como Dittrich e Holnburger, pode vir quando a salvação prometida não chegar.
"O QAnon sempre diz: 'Confie no plano. Você tem que esperar. O pessoal de Trump vai cuidar disso'", disse Holnburger. "Se Trump não invadir a Alemanha, então alguns podem dizer: ‘Vamos tomar o plano com nossas próprias mãos'"./ TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA
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