No domingo, 13 de agosto, os argentinos votaram nas eleições primárias, abertas, simultâneas e obrigatórias (Paso), no primeiro estágio de uma campanha dominada pela economia aos frangalhos de seu país e o crescente descontentamento público. A votação preliminar determina quais serão os candidatos dos maiores partidos e com frequência servem de indicador do possível apoio que cada partido poderá receber no primeiro turno da eleição presidencial, em outubro.
O libertário Javier Milei surpreendeu a todos ao obter a maior parte dos votos, com pouco mais de 30%. A ex-ministra da Segurança Patricia Bullrich derrotou seu rival, o prefeito de Buenos Aires, Horacio Rodríguez, na primária do bloco de centro-direita Juntos pela Mudança (JxC), opositor, o único em que a disputa era considerada competitiva. E Sergio Massa, atual ministro da Economia, conquistou 21% dos votos e será o candidato do bloco peronista União pela Pátria (UP), que ocupa o poder, no primeiro turno.
Os eleitores enfrentam inflação acima de 115% — índice mais elevado desde 1991 e um dos mais altos do mundo — enquanto o valor da moeda nacional despencou em relação ao dólar americano no mercado paralelo a um mínimo recorde, dizimando o poder de compra dos argentinos e pressionando as reservas do Banco Central. Após uma seca severa prejudicar grande parte da produção agrícola da Argentina, um dos setores mais importantes do país sul-americano, sua economia caminha para uma contração de 1,6% este ano, enquanto o índice de pobreza se situa em 40%.
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Juan Cruz, diretor-gerente do Cefeidas Group
Estes resultados eleitorais consolidam um cenário tripartido que conforma um desfecho indefinido para as eleições gerais de outubro. Embora muitos já previssem uma disputa acirrada, o desempenho eleitoral de Javier Milei tomou os holofotes ontem à noite. Mesmo que o líder libertário tenha emergido como um dos três principais postulantes na disputa presidencial desde que anunciou sua pré-candidatura, os números de ontem à noite excederam expectativas — especialmente considerando que a imagem de Milei foi maculada por uma série de escândalos ao longo do mês passado. Com uma forte retórica contra o establishment político, Milei tem conseguido capitalizar com a insatisfação generalizada de grande parte da população argentina com as elites políticas tradicionais, que têm sido incapazes de reverter a deterioração econômica que o país tem experimentado nos anos recentes.
Na coalizão de oposição JxC, a competição feroz entre Horacio Rodríguez e Patricia Bullrich parece ter cobrado um preço no desempenho eleitoral do grupo, que terminou atrás da coalizão A Liberdade Avança, de Milei, por pouca margem. Apesar de sua vitória sobre Rodríguez, Bullrich ainda precisará dos votos e da imagem conciliatória do prefeito centrista de Buenos Aires para atrair eleitores mais moderados. O ex-presidente Mauricio Macri também desempenhará um papel crítico em garantir unidade e mobilizar eleitores pela causa. Do outro lado, para a coalizão no poder, UP, as primárias representaram um duro golpe. Seu principal representante, Sergio Massa, não foi capaz nem mesmo de se posicionar como o candidato individualmente mais votado da eleição. Contudo, o vácuo existente no centro do espectro político e o baixo comparecimento às urnas deixam aberta a possibilidade de novos votos serem depositados a favor da coalizão governista.
Estes resultados evidenciam a frustração dos argentinos com a sensação de fracasso deixada por governos recentes por alternativas tanto peronistas quanto não peronistas. As duas principais coalizões tradicionais estão com dificuldade para capturar esse sentimento, mas Milei provou que se conecta com ele.
Adiante, o principal desafio de Milei será consolidar os votos que conquistou nas primárias e usar o impulso pós-eleitoral para expandir ainda mais seu apoio e projetar uma equipe de governo mais robusta e viável. Conforme adquirir exposição ainda maior, o economista também precisará evitar muitos erros espontâneos (por exemplo, declarações controvertidas) que prejudicaram sua imagem no passado para chegar à eleição geral relativamente incólume. De sua parte, as coalizões JxC e UP terão de repensar suas estratégias de campanha para desafiar a inesperada liderança de Javier Milei.
Marina dal Poggetto, diretora-executiva da Ego Go Consultants
Mais uma vez as pesquisas não expressaram a realidade na Argentina. Milei foi não apenas o candidato mais votado, mas atraiu individualmente mais votos do que os obtidos pelos candidatos das coalizões JxC e UP somados. Os votos de Milei são todos para ele próprio; os votos dos candidatos vencedores nas coalizões JxC e UP, não necessariamente.
Milei capitaliza sobre o descontentamento de uma sociedade farta da condição de “ajuste permanente” na Argentina e a promessa de que, com ele, pela primeira vez, a “casta política” pagará pelo custo da transformação da Argentina em uma economia de mercado. Esta mensagem infalível em termos eleitorais vira bumerangue para um mercado que tem dúvidas razoáveis a respeito da governabilidade por trás da retórica — especialmente quando as coalizões JxC e UP tentarão vencer incrementando a polarização contra Milei no fim de novembro.
Apesar de, em seu discurso após a vitória nas primárias, Milei não ter mencionado propostas populares, mas controvertidas, como dolarização da economia ou o fim do Banco Central, e de, nos últimos discursos anteriores à votação, ele ter abrandado suas propostas, seus incentivos por moderação durante a campanha são rarefeitos. Por fim, quando mais ruído houver na economia, mais eleitores insatisfeitos serão produzidos.
Sem reservas no Banco Central e com um empréstimo-ponte que deveria durar até a transferência de fundos que o FMI prometeu para depois das primárias, Sergio Massa, enquanto candidato e ministro, terá de manobrar entre a necessidade urgente de cumprir suas obrigações para desbloquear empréstimos e pressões internas em sua coalizão para melhorar as chances de vencer nas urnas por meio de estratégias familiares (controles de câmbio e mais gastos na forma de ajudas em dinheiro para famílias). A elevação na taxa de câmbio paralela do dólar mostra um salto no lapso em relação à cotação oficial de 130%, e as pressões para um aumento no valor oficial do dólar aumentarão. Um índice de inflação que era projetado ex-ante em 8,5% ao mês em agosto poderia saltar para dois dígitos.
Brian Winter, editor-chefe da Americas Quarterly
Analistas não devem dizer isto, mas: eu não sei o que este resultado significa — especialmente para o futuro da Argentina e a respeito da questão fundamental de governabilidade.
Sim, o foco dos meios de comunicação está hoje em Milei — o que é justo, ele é a novidade. Mas considerem os números finais, que se aproximaram no fim da apuração, com apenas 3 pontos porcentuais separando as três maiores coalizões. Há um grande índice de eleitores indecisos — a abstenção foi muito alta, de 31% — e os dois meses anteriores à votação são o período realmente crucial. A conclusão: ainda é possível imaginar qualquer desses três candidatos chegando ao segundo turno e qualquer um dos três vencendo.
Sobre Milei: as comparações óbvias são Donald Trump e Jair Bolsonaro. Mas Milei parece mais uma “banda de um homem só” — seus aliados em eleições provinciais e legislativas foram mal, e projeções mostram que seu partido deverá controlar apenas 40 dos 257 assentos da Câmara Baixa do Congresso. Ele conseguirá fazer alguma coisa se vencer?
Numa observação relacionada, eu me preocupo com a possibilidade de mercados e empresas tirarem conclusões prematuras desta situação. Alguns dirão, “Ótimo, cerca de 60% dos argentinos votaram por algum candidato reformista de direita; não importa o que acontecer, nós veremos as mudanças drásticas que a economia argentina precisa”. Mas grande parte disto foi claramente um voto de protesto, por soluções mágicas. Nós realmente sairemos de outubro com um mandato claro para ajustes e cortes no Estado argentino? Algum desses candidatos terá habilidade de negociação, sensibilidade junto ao povo e apoio legislativo que a difícil mudança requer?
Eu considero que há razões para sermos otimistas em relação à Argentina e seu caminho adiante. Mas este resultado embolado, algo incoerente, significa que ainda precisamos esperar para ver.
María Esperanza Casullo, professora da Universidade Nacional de Rio Negro
Eu não gostaria de colaborar para o que devem certamente ser as reações mais óbvias (se verdadeiras) aos resultados — apontando para o voto antissistema, o espírito “expulsem todos eles” ou para a acentuada virada à direita do país. Eu quero apontar para dois elementos. Primeiramente, que a economia acaba sendo central para a eleição; o que definitivamente prejudica o governo, que nunca produziu uma explicação convincente para o mau desempenho econômico. Mas eu acho que a economia também prejudica a coalizão Juntos pela Mudança, porque as pessoas se lembram de suas políticas econômicas e porque seus candidatos escolheram colocar foco em outras coisas e não apresentaram claramente um programa econômico.
Em segundo lugar, a ascensão de Javier Milei também marca o fracasso não apenas de duas coalizões políticas, mas de um sistema maior, que mostrou estar mais distante da pulsação das ruas. Neste sentido, o fracasso atroz de Horacio Rodríguez é marcante. Braço-direito do ex-presidente Mauricio Macri, eleito duas vezes para governar a poderosa cidade de Buenos Aires (uma delas com mais de 50% dos votos), com todas as credenciais corretas e uma aliança com a União Cívica Radical (UCR) e Gerardo Morales, o tipo de figura “nova e moderna” que deveria ser o futuro do partido, com todo o dinheiro do mundo em sua campanha, ele era o favorito dos líderes empresariais argentinos e estrangeiros, assim como de importantes meios de comunicação — e seu desempenho foi pífio.
Na realidade, a coalizão Juntos pela Mudança foi mal nas primárias. De 2021 a 2023, ela perdeu 2,3 milhões de votos. Seus integrantes pensaram que poderiam surfar até a indicação e tiveram uma disputa de primária bastante sangrenta, o que, por sua vez, pode ter frustrado eleitores. O voto em Milei definitivamente tem um componente ideológico, mas também amalgama uma demanda clara pela reconstrução da autoridade presidencial, pela eleição de alguém com um poder claro e integral.
Ignacio Labaqui, analista sênior da Medley Global Advisors e professor da Universidade Católica da Argentina
O desempenho impressionante de Javier Milei produz um alto grau de incerteza a respeito do desfecho do primeiro turno da eleição presidencial, em 22 de outubro. Não está claro quem será o adversário de Milei no segundo turno, em 19 de novembro. Para Sergio Massa, o maior desafio será cortejar eleitores independentes em um cenário de deterioração econômica. Para Patricia Bullrich, o robusto resultado de Milei furta sua capacidade de atrair eleitores de direita e ela terá de apelar para o eleitorado centrista, possivelmente moderando o tom de seu discurso com objetivo de reunir todos os eleitores de Horacio Rodríguez. Uma pista para o segundo turno está tomada. Massa e Bullrich lutarão para ocupar a outra — e têm dois meses e meio para fazê-lo.
A eleição de ontem foi um duro golpe para o establishment partidário da Argentina. O peronismo teve seu pior resultado até aqui em uma disputa presidencial, caindo para 30% dos votos. A coalizão Juntos pela Mudança, que tinha obtido apenas dois anos atrás 40% dos votos em eleições legislativas de meio de mandato e se firmado como maior opositora ao kirchnerismo, teve um desempenho abaixo do esperado nas urnas.
Uma sucessão de governos fracassados, mais de uma década de estagnação econômica e a piora na situação econômica durante o governo de Alberto Fernández geraram um sentimento crescente de desencanto entre o eleitorado, o que resultou em um terço dos eleitores apoiando um candidato que baseou sua campanha em culpar o establishment partidário (ou a “casta”, como ele rotula a classe política) pelos problemas da Argentina. E também ocasionou o comparecimento às primárias presidenciais mais baixo já registrado.
As primárias de 13 de agosto colocaram fim ao ciclo político de mais de 20 anos que emergiu na eleição presidencial de 27 de abril de 2003, em que o kirchnerismo transformou-se na força política dominante na Argentina e a divisão entre kirchneristas e antikirchneristas tornou-se o eixo principal da política do país. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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