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Queda do líder mais antigo do Cartel de Sinaloa causa mortes em série e ameaça políticos no México

Prisão de El Mayo prenuncia disputas sangrentas e dissolução de um dos maiores grupos criminosos do mundo; presidente López Obrador enviou militares para o noroeste e pediu paz

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Foto do author Luiz Henrique Gomes

A prisão de Ismael El Mayo Zambada, o líder mais antigo do Cartel de Sinaloa, encerrou uma busca de 40 anos e provocou violência e perguntas sem respostas no México. Desde a prisão em 25 de julho, ao menos dez homicídios no Estado de Sinaloa, incluindo a morte do ex-prefeito de Culiacán Héctor Melesio Cuén, têm relação com a queda do capo, segundo a polícia federal do país.

El Mayo, de 76 anos, era o último dos fundadores da organização criminosa em liberdade. O fato por si só faria a prisão mudar as bases do narcotráfico dentro e fora do cartel, mas suas circunstâncias agravam as consequências. Zambada foi preso ao lado de Joaquín Guzmán López, filho de El Chapo, sócio antigo do capo, e o acusa de traição. Os dois estavam num avião que desembarcou em El Paso, no Texas, e eram aguardados por autoridades dos Estados Unidos em uma operação que o México desconhecia.

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Há duas hipóteses principais ao redor da operação: a primeira é que El Mayo negociou a rendição com os agentes americanos para cuidar de um câncer que o debilitou; a segunda é que Guzmán López o sequestrou (tese espalhada pelo próprio Zambada em carta). Ambas abrem espaço para sucessão e reorganização do grupo, avanços de rivais sobre domínios do cartel e denúncias de corrupção que ameaçam os diferentes níveis do poder no México. Os três eventos resultam historicamente em violência.

O primeiro assassinato ligado ao caso pode ter ocorrido no mesmo dia da prisão dos traficantes. Héctor Cuén, ex-prefeito de Culiacán, capital de Sinaloa, foi encontrado morto com quatro tiros horas depois da notícia das capturas. O Ministério Público local chegou a alegar que a morte havia ocorrido durante um assalto a um posto de gasolina, em um crime sem nexo com Zambada e Guzmán. Dias depois, El Mayo demoliu a versão numa carta que causou a renúncia da procuradora-geral do Estado.

Segundo o traficante, Héctor Cuén foi morto no mesmo momento em que ele foi supostamente capturado para ser levado aos EUA. Os dois estariam numa fazenda na zona rural de Culiacán, onde se encontrariam para uma reunião com o governador de Sinaloa, Rubén Rocha Moya. Zambada estaria presente para mediar uma divergência política entre os políticos, mas teria sido sequestrado por Guzmán ao chegar no local.

“Sei que a versão oficial dada pelas autoridades do Estado de Sinaloa é que Héctor Cuén foi baleado na noite de 25 de julho em um posto de gasolina por dois homens que queriam roubar seu caminhão”, diz a carta. “Não foi isso que aconteceu. Eles o mataram ao mesmo tempo e no mesmo lugar onde me sequestraram.”

As versões divergentes revelam as dúvidas em torno da queda de El Mayo. As autoridades mexicanas não sabem se o que o traficante diz é verdadeiro ou blefe e estão pressionadas a dar uma resposta. E mesmo que finde esclarecido, o caso do ex-prefeito Héctor Cuén, chamado por Zambada na carta de ‘um amigo antigo’, é somente a parte visível das relações do capo.

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Imagem do dia 19 mostra militares enviados pelo governo mexicano ao Estado de Sinaloa. Prisão de El Mayo causa homicídios em série no local Foto: Ivan Medina/AFP

Os contatos do capo

Descrito como mais discreto, estrategista e pacífico do que os sócios, El Mayo cultivou uma rede que vai de políticos a militares, empresários e outros traficantes. A captura repentina, independente da circunstância, pode destrinchar a extensão de seus contatos.

Zambada dedicou 60 dos 76 anos ao crime. Sua influência explica por que as autoridades dos EUA realizaram a operação sem o conhecimento do México, fato que irritou o presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO). “Certamente queriam evitar um vazamento”, declarou Raúl Benítez Manaut, professor na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam) e pesquisador de segurança na América do Norte e Forças Armadas no México.

A citação na carta do traficante a Rubén Moya, do partido do presidente, o Morena, mostra o grau das acusações que podem surgir caso Zambada decida delatar.

Governador do Estado de Sinaloa, Rubén Rocha Moya, durante a inauguração de um hospital público em Culiacán no dia 10. Moya é acusado de ter relações com o narcotráfico Foto: Rashide Frias/AFP

No dia 6, o presidente López Obrador declarou esperar que o capo revelasse os elos com as autoridades, tanto mexicanas quanto americanas (na suspeita sustentada por Obrador de rendição).“Que se saiba quanto apoio as autoridades lhe deram, que se saiba quem o protegeu, tudo isso vai ajudar muito (a esclarecer os fatos em torno do traficante)”, disse.

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Quatro dias depois, Zambada publicou a carta e envolveu o governador de Sinaloa nas circunstâncias da prisão. Obrador viu a acusação respingar sobre o próprio governo e foi à público se defender. “Que seja investigado. Não somos corruptos”, disse.

Os crimes do dia seguinte

Os assassinatos começaram a aparecer no dia 16. Os jornais noticiaram primeiro as mortes dos traficantes Juan Carlos, El Vampi, e Ivan Ivanhoe, El Tocino. No dia seguinte, um sábado, os corpos dos irmãos Martín e Leobardo García Corrales foram descobertos com sinais de tortura em uma estrada rural perto de Culiacán. Os dois eram conhecidos por ligações com El Mayo e não passaram despercebidos pela imprensa local.

Na segunda-feira, Rubén Moya convocou uma entrevista coletiva, confirmou a relação das quatro mortes com o capo e acrescentou outras seis ocorridas no mesmo fim de semana em Sinaloa.

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O papel das vítimas na organização e as causas das mortes são investigadas. Mas relevam, de antemão, uma fratura no Cartel de Sinaloa que começou em 2016, com a queda de El Chapo (hoje em prisão perpétua nos EUA) e ascensão dos quatro filhos do narcotraficante, conhecidos como Los Chapitos.

Imagem do dia 19 mostra militar nos arredores de Culiacán, capital de Sinaloa. Cidade teme disputa sangrenta entre narcotraficantes Foto: Ivan Medina/AFP

Segundo o relatório anual da Agência de Repressão a Drogas dos EUA (DEA, em inglês) publicado em maio, a chegada do chapitos à cúpula de Sinaloa culminou com novas disputas por territórios e controle sobre rotas e conexões deixadas por El Chapo. Os chapitos entraram em guerra com El Mayo, sócio de El Chapo na direção do cartel por mais de três décadas.

Ao contrário de outras organizações, o Cartel de Sinaloa não tem um único líder. A estrutura do grupo desde o fim da década de 1970 se assemelha ao de federação, com diferentes facções cooperando entre si. Em teoria, diz a DEA, isso possibilita aos líderes compartilhar rotas, contratos, fornecedores e redes de lavagem de dinheiro.

O modelo enfraqueceu nos últimos anos e com a prisão de Zambada pode ter chegado ao fim. “O cartel está débil”, declarou Raúl Benítez Manaut. “Diria que o Cartel de Sinaloa vai se dividir e se transformar em grupos independentes e menores como o Cartel do Golfo no passado”, acrescentou.

Guerra entre narcos

Conexões reveladas e dissolução do Cartel de Sinaloa. Os dois efeitos da queda do capo é uma vitória anunciada pelas autoridades americanas. A recompensa por ele era de 15 milhões de dólares e as acusações na Justiça dos EUA são extensas: narcotráfico, crime organizado, conspiração em assassinatos, lavagem de dinheiro, dentre outas. Mas nada disso representa ameaça a existência do crime organizado no México, dizem analistas.

As guerras internas de Sinaloa tendem apenas a favorecer o domínio de outros cartéis no país. O cartel é um gigante do narcotráfico, com operações em 47 países, segundo a DEA. Sua maior ameaça é o Cartel de Jalisco Nova Geração, criado em 2011 por uma dissidência no Sinaloa e com expansão rápida para 40 países.

Nos últimos anos, os dois cartéis foram donos das maiores rotas de fentanil e cocaína para os Estados Unidos e estiveram em disputa para expandir os domínios. “Existe o risco de uma violência explosiva entre Sinaloa e cartéis rivais, principalmente o Cartel de Jalisco Nova Geração, que vai tentar tirar vantagem na hora que estão fracos e desordenados”, afirmou Robert Muggah, cientista político e co-fundador do Instituto Igarapé.

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Um relatório do Congresso dos EUA publicado em 2021 apontou os Estados de Sinaloa e Durango como os centros dominados pelo cartel liderado por El Mayo e El Chapo, mas a organização também está presente em Sonora, Baja California e Chihuahua. Os três locais fazem fronteira com os EUA e são disputados por outros grupos.

Imagem do dia 21 mostra vítimas do fentanil exibidos em telão da Times Square, em Nova York, durante evento de prevenção às drogas. Droga traficada através do México é a principal causa de mortes entre pessoas de até 50 anos nos EUA Foto: Diane Bondareff/AP

Em 2023, três das cinco cidades mais violentas do México estavam no centro das disputas entre o Cartel de Sinaloa e outros cartéis, embora o fluxo de drogas para o território americano tenha continuado em escala cada vez maior. No mesmo ano, o fentanil matou mais de 112 mil pessoas nos EUA e foi a maior causa de morte entre pessoas de até 50 anos.

“É pouco provável que os surtos violentos afetem os fluxos de drogas, uma vez que muitas das estruturas básicas do cartel permanecerão intactas”, disse Muggah. “A principal razão para isto é que as estruturas e redes de cartéis estão profundamente enraizadas”.

A iminência de mais violência no México após a prisão de El Mayo levou López Obrador a enviar uma tropa de 200 militares para o noroeste do país e a pedir publicamente que os cartéis evitassem um derramamento de sangue. O governador Rubén Moya reiterou o pedido na segunda-feira.

Os assassinatos dos últimos dias, no entanto, mostram os fatos em outra direção. Embora os domínios do Cartel de Sinaloa estejam em ameaça, o narcotráfico continua em operação. “Apesar das guerras violentas dentro e entre os cartéis, todos estão unificados no envio e oferta de drogas para os EUA”, concluiu Muggah.

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