A Nicarágua foi governada pela família Somoza entre 1934 e 1979, ano em que a Revolução Sandinista derrubou o regime autoritário de Anastasio Somoza Debayle, um dos mais cruéis da América Latina. O líder deste movimento era um jovem guerrilheiro de esquerda Daniel Ortega, então com 34 anos, que reuniu o apoio de diversos setores da população descontentes com o regime da família Somoza, conhecido pelos abusos de direitos humanos, corrupção e pobreza.
Em 1979, a Frente Sandinista de Libertação Nacional reunia uma espécie de frente ampla de descontentes com o regime Somoza, como intelectuais, jornalistas, representantes da Igreja Católica e empresários. O assassinato de Pedro Chamorro, dono do jornal La Prensa, atribuído a Somoza, um ano antes, catalisou uma série de protestos contra o regime e possibilitou o avanço da guerrilha contra Manágua, a capital. Sem apoio, Somoza renuncia e é criada uma junta provisória de reconstrução nacional.
Nos anos 80, os sandinistas, próximos a Cuba e União Soviética, monopolizaram politicamente a junta provisória, o que levou ao boicote das eleições de 1984 por grupos independentes de centro e de direita, mas vencida por Ortega. A família Chamorro, então, passou a fazer oposição ao líder sandinista. No front externo, desde a queda dos Somoza, o governo Ronald Reagan financiou grupos armados contra a FSLN, conhecido como Contras, o que mergulhou o país num confronto armado por quase toda a década.
Os sandinistas governariam o país por 11 anos, até 1990, quando deixaram o poder após a primeira eleição livre da história do país, vencida pela liberal Violeta Chamorro, viúva de Pedro Chamorro, eleita presidente. Ela fez um governo de reconciliação, marcado pela pacificação de grupos armados e reformas econômicas. As eleições seguintes, em 1996 e 2002, foram vencidas pelo Partido Liberal.
Fora do governo
Seus críticos dizem que a derrota para Chamorro deixou um pesado trauma no líder sandinista. A partir de então, sua obsessão era retornar ao poder. E ele tentou, sem sucesso, em duas oportunidades. Fora da presidência, a FSLN tentou se reinventar. A queda do Muro de Berlim e o fim da União Soviética convenceram parte do movimento que era necessário mudar.
As tentativas de democratizar o partido, no entanto, foram vistas por Ortega como uma ameaça ao seu poder, como lembra a escritora Gioconda Belli. Sua resposta foi acusar os ex-companheiros de estarem a soldo de Washington.
A saída para Ortega retornar o poder mesmo sem a maioria dos votos foi costurar um acordo com o então presidente Arnoldo Alemán e apostar numa espécie de “rebranding”.
A lei eleitoral anterior exigia ao menos 45% dos votos para eleger um candidato no primeiro turno. Após o acordo, ficou definido que a presidência seria conquistada com 40% no primeiro turno, ou com 35% dos votos se houvesse uma diferença de pelo menos 5% entre o primeiro e o segundo colocados.
Na campanha, o velho guerrilheiro aposentou a farda e trocou o ateísmo comunista pelo fervor católico para conquistar o apoio de uma população conservadora e de líderes religiosos. O slogan de campanha era paz e reconciliação nacional por meio de um socialismo cristão.
Retorno ao poder
Deu certo. Ortega foi eleito em 2006 com 38% dos votos, um apoio de pouco mais que um terço da população.
Na época, a América Latina viu o triunfo de diversos líderes de esquerda em países da região, como Brasil, Argentina, Uruguai, Equador Bolívia e Venezuela. Ortega viu uma oportunidade e se aproximou de muitos deles, como Luiz Inácio Lula da Silva, no Brasil, e Cristina Kirchner, na Argentina. Sua aliança mais importante, no entanto, foi fechada com o bolivariano Hugo Chávez, com quem firmou acordos de fornecimento de petróleo a preços subsidiados que foram cruciais para um relativo sucesso econômico da economia nicaraguense.
Com isso, Nicarágua entrou para a Aliança Bolivariana para as Américas, a Alba, ao lado de Bolívia e Equador. Entre 2007 e 2014, quando a economia do principal aliado entrou numa espiral catastrófica a Nicarágua cresceu em média 4% ao ano, segundo o Banco Mundial.
Ditadura
No front doméstico, Ortega seguiu o receituário bolivariano. Em 2009, com a ajuda de juízes nomeados por ele, mudou a lei para poder disputar a reeleição uma vez. Em 2011, ele foi reeleito. Em 2013, com a ajuda da maioria obtida no Parlamento, mudou a lei de novo, desta vez para disputar a reeleição indefinidamente. Em 2016, ele foi reeleito para seu terceiro mandato consecutivo.
O mesmo Congresso que aboliu os limites constitucionais para a reeleição permitiu também a Ortega emitir decretos com força de lei. Àquela altura, o sandinista controlava - direta ou indiretamente - os três poderes da Nicarágua. Nos anos seguintes, o regime se fecharia ainda mais.
O ano de 2018 viu os maiores protestos em décadas na Nicarágua. Com o fim da ajuda petrolífera venezuelana, a economia do país sofreu um duro impacto e a popularidade de Ortega foi igualmente atingida. Milhares de pessoas, principalmente jovens e estudantes, saíram às ruas para protestar contra reformas no sistema de aposentadorias do país. A repressão foi brutal. Ao menos 322 pessoas foram mortas pela polícia. Mais de 2 mil ficaram feridas. O direito de protestar foi banido pelo líder sandinista.
Três anos depois, em 2021, Ortega começou a se preparar para disputar seu quarto mandato. A eleição foi marcada pela prisão de praticamente todos os candidatos minimamente competitivos que se apresentaram contra o ex-guerrilheiro. Uma delas era Cristiana Chamorro, filha de Violeta e Pedro Chamorro.
No ano passado, o governo decidiu mirar a repressão contra a Igreja Católica. Ao menos sete emissoras de rádio católicas ligadas ao bispo Rolando Álvarez, forte crítico do presidente nicaraguense, foram fechadas.
Neste ano, Ortega retirou a cidadania de centenas de opositores que ainda viviam no país. Muitos deles eram ex-companheiros de luta do presidente, que cada vez mais segue o caminho de Somoza em vez do de Sandino.
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