A disputa entre a China e Hong Kong em torno da lei de segurança nacional aprovada pela Assembleia Nacional chinesa é mais um elemento no conflito crescente entre Estados Unidos e China. A avaliação é do diplomata Sérgio Amaral, ex-embaixador do Brasil em Washington, presidente emérito do Conselho Empresarial Brasil-China.
"A crise conduz a um novo momento mais sensível e mais difícil na relação entre Estados Unidos e China. Não é só comercial, tecnológico ou estratégico, é geopolítico. Está faltando mais diplomacia e menos força", afirma Amaral, que também integra o conselho do Centro Brasileiro de Relações Internacionais. Para ele, disputa China-EUA vai plasmar toda a organização do período pós-coronavírus em áreas que vão do desenvolvimento tecnológico às parcerias comerciais.
Como o sr. avalia o impacto dessa lei na relação de Hong Kong com a China?
É preocupante porque cada um dos lados parte de um pressuposto diferente. A China vê Hong Kong sob o aspecto de uma parte que já foi sua e talvez um dia volte a ser. É uma questão de segurança nacional e há o receio de que uma liberalização de Hong Kong possa ter influência na sociedade chinesa.
Mas Hong Kong vê sua situação pela ótica de que o documento que permitiu a transferência de volta para a China, em 1997, assegura os ideais de democracia e de liberdade que os chineses não têm. Hong Kong é uma espécie de porta para a economia da China, se beneficia como um centro comercial e financeiro, mas tem implicações políticas bastante grandes.
Quais os critérios dessa negociação de 1997 e por que ela voltou à tona?
O documento de 1997 para a transferência estabelece que a ideia central era de um país e dois sistemas. Mas estabelecia também que Hong Kong deveria preparar sua lei de segurança nacional, o que não conseguiu fazer. É isso que está, do ponto de vista chinês, dando o fundamento para a decisão de ser feita uma lei de segurança nacional para Hong Kong.
Essa lei buscaria aproximar as regras de segurança nacional de Hong Kong com as que prevalecem na China. Portanto, são regras autoritárias e que restringem as liberdades existentes hoje em Hong Kong. Isso pode ter repercussão na liberdade acadêmica, nas questões relativas ao funcionamento da economia.
Quais as consequências dessa disputa em Hong Kong nas relações entre China e Estados Unidos?
Essa decisão da China foi respondida pelos Estados Unidos ao declarar que não mais reconheciam a autonomia de Hong Kong. Pelo acordo de 1997, os EUA outorgaram a Hong Kong benefícios em matéria de comércio, de investimentos, de regulações tributárias. O argumento, agora, é que não existe mais autonomia. Já estão se antecipando à lei que virá e por isso cancelaram as vantagens que o estatuto da autonomia dava. Há uma escalada dos dois lados. Mas, no fundo, essa crise espelha um problema que é maior e comum a vários países: a falta de um processo negociador.
A crise conduz a um novo momento mais sensível e mais difícil na relação entre Estados Unidos e China. Não é só comercial, tecnológico ou estratégico, é geopolítico.
Está faltando mais diplomacia e menos força. Esse é o papel da diplomacia: conciliar e negociar pontos de vista divergentes, mesmo que complicados e difíceis. É o único caminho.
Se não, essa escalada poderá levar a uma confrontação perigosa. Se Hong Kong entrasse em um processo de negociação com a China ao tentar redigir a legislação, ou se a China buscasse entendimento, talvez tivessem conseguido lograr um texto aceitável para ambos os lados. Mas tenho a impressão que isso não ocorreu.
Falando de um assunto mais geral, muitas autoridades têm defendido que o mundo pós-pandemia precisará de cooperação e mais solidariedade entre os países. O sr. acha que esses dois sentimentos sairão fortalecidos dessa crise?
Nós vamos entrar em um mundo novo. No momento, o espaço da cooperação internacional está restringindo, é mais estreito. Estamos em uma época de grande polarização, de uma radicalização em que todos os assuntos - mesmo o vírus - passaram a ser objeto de um conflito e de desentendimento. Ao meu ver, isso é decorrente, sobretudo, do fato de que as duas potências (China e EUA) não se entendem.
A ordem internacional construída a partir da Segunda Guerra, com uma coalizão das potências vencedoras, estava inspirada em uma visão que era sobretudo dos Estados Unidos. Estava voltada para instituições que implementariam essa visão e garantiriam a paz, a cooperação internacional, os direitos humanos. Estava centrada no sistema das Nações Unidas e em seus organismos especializados.
E como o sr. vê o cenário de hoje?
Nada disso ocorre hoje. Não temos uma coalizão de países para trabalhar juntos na montagem de uma nova organização política e econômica do mundo. Não temos instituições para fazer isso e não temos a visão compartilhada do mundo que queremos construir. Nem para reformar o sistema atual. Então, vai ser difícil que haja um entendimento entre os países para uma nova visão de mundo e de organização, ainda que seja para reformar as instituições do sistema ONU. É muito difícil pensarmos que a cooperação vai prevalecer assim como foi no passado.
Que caminhos estão desenhando?
Possivelmente teremos dois espaços de relações internacionais. Um deles se ocupa de temas da interdependência internacional: não podemos pensar que as pandemias possam ser resolvidas em um só país, nem podemos achar que questões ambientais e climáticas serão resolvidas dentro de um só país porque o país que polui afeta o clima daquele que não polui. A questão da segurança, do terrorismo, não pode ser tratada em um só país. São os bens comuns da humanidade. Vamos ter uma esfera das relações internacionais em que possivelmente os países ou vão manter as organizações existentes reformadas ou vão criar novas instituições para cooperação. O mais provável serão instituições existentes hoje.
E a outra esfera é uma volta do Estado nacional, da geopolítica, e uma disputa hegemônica em vários campos, entre Estados Unidos e China. O que você está vendo hoje é que essa polarização em função do tema da soberania está contaminando as próprias organizações especializadas. O melhor exemplo é a Organização Mundial da Saúde (OMS), mas também vale para a Organização Mundial do Comércio (OMC). Essa polarização está permeando organizações que deveriam ser mais técnicas e menos políticas.
Os EUA, a partir do momento que perceberam a emergência econômica e tecnológica da China, que não seria contida, vêm desenvolvendo uma política de contenção. Mas o Trump está demolindo algumas das instituições e não propondo nada no lugar. Começou com um desentendimento comercial, mas agora é um conflito tecnológico, financeiro.
Quais as consequências globais desse conflito?
Esse conflito entre Estados Unidos e China vai plasmar toda a organização do período pós-coronavírus. Esse é mais ou menos o cenário: organizações que vão atender a demandas comuns da comunidade internacional e um outro espaço em que você vai ter uma volta da geopolítica, do equilíbrio de poder, uma multipolaridade em que desponta, como dominante, o eixo China-EUA. A questão está em saber em que medida o eixo hegemônico bilateral abrirá espaço para a consolidação da cooperação multilateral.
Os Estados Unidos perceberam que seus interesses não podiam ser atendidos nos organismos multilaterais. Isso está gerando em todos esses organismos um problema. Não é que eles são contra: mas eles querem um 'multilateralismo à la carte'. Quando interessa, quando tem condições de dar resposta à agenda americana, fazem por lá. Quando não interessa, fazem unilateralmente.
Como foi o caso do Acordo de Paris, o Trump não tem interesse em se submeter, não confirmou e nem ratificou. Como pano de fundo disso existe uma visão muitas vezes contra o processo multilateral, um nacionalismo extremado, que é crítico e por vezes rejeita o caminho multilateral. O problema é que as instituições que temos hoje precisam ser reformadas ou recriadas porque existem temas em que será necessário que os países se ponham em acordo.
Como essa polarização vai afetar o novo mundo?
Essa polarização internacional que vem contagiando o cenário internacional fez até o vírus ficar politizado. A discussão se nasceu na China ou não, se a melhor forma de combater é pelo isolamento ou sem, tudo isso é um contágio dessa polarização em todas as esferas da vida social. Agora, tem uma preocupante: na medida em que os dois principais pólos do eixo de poder possam assumir formas de confronto, de hostilidade, isso vai levar inexoravelmente a uma disputa pela conquista de áreas de influência e de aliados ou adversários.
É quase como se os países vivessem o dilema - que ao meu ver é falso - de optar por um ou por outro lado. Eles têm que optar pelos seus interesses e participar de um ou outro lado naquilo que houver convergência com seus interesses.
Se todos os temas do sistema internacional de regras estiverem sujeitos a essa tensão vai ser muito ruim para o cenário mundial e para os países. A questão EUA-China não é comercial apenas, está contaminando o comércio, tecnologia, finanças.
No início do século passado, quase tivemos um brasileiro como secretário-geral da ONU, o Sérgio Vieira de Mello. Tivemos brasileiros como José Graziano da Silva liderando a FAO, o Roberto Azevedo para a OMC. O senhor vê hoje algum brasileiro com possibilidade de se projetar no sistema internacional?
Se algum brasileiro voltar a ocupar uma posição de destaque no sistema internacional, será por seus méritos próprios. O país não conta hoje com o prestígio que já teve. Perdemos espaço e prestígio em áreas que já tivemos liderança, como a questão ambiental. Certas políticas adotadas pelo país estão nos transformando em um país que tem poucos amigos, poucas alianças, pouca aprovação e credibilidade junto à opinião pública. Isso vai nos criar problemas. Com as políticas que tem adotado, o Brasil está construindo seu isolamento e sua irrelevância.
Estamos perdendo popularidade e liderança inclusive em nossa região. Somos percebidos como um país-problema. No caso do coronavírus, isso foi dito publicamente por Paraguai e Uruguai, países que sempre estiveram conosco independente da coloração política. Vai ser difícil que o Brasil retome uma capacidade de liderança com a política ambiental atual e pelo fato de não termos de verdade uma visão clara de quais são os princípios e diretrizes da política externa.
Como o Brasil poderia se projetar na região?
Temos no momento uma oportunidade única de participar com protagonismo e iniciativa de um processo fundamental para a presença brasileira na região: uma valorização e talvez uma reforma do Mercosul, com um aprofundamento da convergência entre o Mercosul e a Aliança do Pacífico. Isso começou no governo anterior, foi levado com mais dinamismo e determinação.
Essa convergência entre os quatro países do Mercosul - Paraguai, Uruguai, Brasil e Argentina - e os da Aliança - Chile, Colômbia, México e Peru. Eles constituem 80% do território e 80% do PIB da América Latina. Por si só, representaria uma integração sem necessidade de um novo tratado num momento em que o comércio internacional passa por uma situação tumultuada, em que relações com grandes potências estão se deteriorando. Isso seria extremamente importante para o Brasil.
A Cepal e a Organização Internacional do Trabalho mostraram em um estudo que 37 milhões ficarão desempregados na região da América Latina e Caribe com a pandemia. Como os governos devem agir? O que o sr. acha da renda básica sugerida pela Cepal?
Essa é uma crise que afeta o mundo inteiro, portanto haveria soluções que podem ser convergentes em alguns casos, semelhantes em outros. Esse tema da desigualdade será um dos grandes temas do novo momento internacional, como o papel do Estado, o neopopulismo, a desigualdade, o bem comum e a solidariedade. A pandemia explicitou que existe uma correlação entre a infecção, a morte, e com o nível de renda. É uma doença que afeta claramente de modo mais direto os mais pobres.
Os programas sociais serão uma das prioridades desse momento internacional. A sociedade internacional não quer mais conviver com esse grau de desigualdade que viveu nos anos anteriores. A renda mínima talvez possa ser uma solução. O Brasil tem sido pioneiro nesse tipo de política que aumenta a renda para reduzir a pobreza, o Bolsa Família e outros programas do governo FHC tiveram reconhecimento internacional.
Os programas econômicos têm de vir acompanhados de programas sociais. Se não, vamos continuar a reproduzir padrões de desigualdade que não são mais aceitáveis.
Gostaria que o sr. falasse um pouco sobre esse conceito que citou de neopopulismo. Por que esse fenômeno está crescendo?
Por trás dessa discussão está a globalização. Ela foi muito importante, trouxe um avanço científico e tecnológico sem precedentes. Trouxe um período de prosperidade também sem precedentes. Mas as transformações foram muito rápidas, muito profundas, e não vieram acompanhadas de soluções para problemas compensatórios que ela agravou: a desigualdade, a questão da migração. Quando partidos e governos não tiveram a condição de entender de forma rápida as mudanças, a sociedade ficou bastante desorientada em relação a como expressar, reivindicar e apresentar as demandas surgidas por deslocamentos sem precedentes na economia e em vários aspectos da vida social.
Então a população foi recorrer a líderes populistas que davam uma resposta fácil, por vezes falsa, para problemas complexos. Esse sentimento de mau estar está latente em vários países. Existe muita insatisfação na sociedade com as elites, com os partidos políticos, e isso levou ao surgimento dessas lideranças populistas que não estão claramente ancoradas em partidos, o que leva em consequência a uma dificuldade de governança.
É possível que lideranças populistas possam ser eleitas sobretudo com uso das mídias sociais. Mas se as mídias sociais podem eleger, elas não podem dar as condições de governo.
Só o partido político tem a capacidade de filtrar os interesses diferenciados da sociedade. A sociedade é por natureza composta de segmentos diferentes, com demandas diferentes, e o papel dos partidos não é apenas eleger, é justamente conseguir negociar uma convergência desses interesses para que eles se transformem em decisões políticas e políticas públicas. O que estamos assistindo é isso: governos populistas que não têm condição de assegurar a governança, se não mediante o aprofundamento das próprias técnicas populistas. O populismo se transformou em um elemento corrosivo da democracia.
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