Radicais de esquerda e de direita se aproveitam de crise e ascendem na Alemanha

Alternativa para a Alemanha e novo partido pró-Rússia podem somar quase um quarto dos votos nas eleições europeias com retóricas nacionalistas e xenofóbicas

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Por Heloísa Traiano

ENVIADA A MAGDEBURGO, Alemanha — Um mar de cabelos brancos encheu o centro de Magdeburgo, a capital da Saxônia-Anhalt, estado do Leste da Alemanha, na quarta-feira. A multidão se reuniu para ver uma pop star da esquerda, Sahra Wagenknecht, em campanha pelo seu recém-nascido partido nas eleições do Parlamento Europeu.

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A maioria era de idosos que assistiram ao fim da União Soviética e à unificação alemã nas últimas três décadas - e não gostaram. Hoje, levantam bandeiras pró-Rússia e querem a Alemanha fora da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan). Acima de tudo, sentem falta da Guerra Fria.

Nascida na antiga Alemanha Oriental, Wagenknecht usa o seu berço para surfar na guinada conservadora alemã. Em janeiro, depois de 35 anos na política, criou a Aliança Sahra Wagenknecht (BSW, na sigla em alemão) mirando as eleições europeias, depois de abandonar o partido A Esquerda, do qual foi líder no Parlamento alemão de 2015 a 2019.

Comício da legenda radical BSW em Magdeburgo, na antiga Alemanha Oriental: a líder do partido, Sahra Wagenknecht, se tornou uma celebridade da esquerda radical Foto: Heloisa Traiano/Estadão

Descrita como de extrema-esquerda, a BSW conquista eleitores na antiga República Democrática Alemã (RDA), epicentro do partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha (AfD).

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“Era melhor na União Soviética. Tínhamos igualdade de direitos. Agora, temos muitos problemas. Tudo é sobre dinheiro. É preciso pagar por tudo, os salários são baixos e as pessoas não têm o suficiente”, disse Lutz Amtenbrink, eleitor de 66 anos nascido e criado em Magdeburgo, que vai trocar o A Esquerda e partidos independentes pela BSW.

Também em Magdeburgo, a AfD reuniu 600 delegados para sua conferência anual em 2023. A nível estadual, o partido lidera a oposição no Parlamento da Saxônia-Anhalt, com o segundo maior número de legisladores, enquanto também penetra as esferas municipais.

Agora, AfD e BSW podem somar quase um quarto dos votos depositados para as eleições europeias na Alemanha, com 17% para AfD e 7% para a BSW. Para a União (CDU/CSU), principal força política alemã desde o fim da 2.ª Guerra, as pesquisas especulavam 30%. A Alemanha, o país de maior peso no pleito, escolherá 96 dos 720 eurodeputados eleitos até domingo.

Contra a imigração e a abertura cultural

Clamando-se de extrema direita ou esquerda, AfD e BSW compartilham do conservadorismo cultural, da retórica nacionalista e dos ataques à coalizão que governa hoje a Alemanha, formada por social-democratas, verdes e liberais.

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Cientistas políticos enxergam na BSW o possível início de um partido autoritário de esquerda, competindo com a AfD pelos eleitores que se sentem decepcionados com a democracia e privados de privilégios anteriores e saudosos da Alemanha Oriental.

Em Magdeburgo, os membros da BSW em muito se aproximaram das pautas culturais da extrema-direita, acrescendo a agenda econômica da esquerda. Foram ovacionados ao defenderem a redução da imigração, a oposição ao envio de armas à Ucrânia, a compra de gás russo, os direitos trabalhistas e a redistribuição da riqueza.

A excitação chegou ao ápice quando Wagenknecht destilou sua retórica islamofóbica e zombou das elites culturais urbanas, que “tomam café macchiato e compram em lojas orgânicas”, a quem falam hoje os partidos de esquerda e verdes. Em resposta, a multidão gargalhava desdenhosamente em uníssono.

“Eles [os partidos] não conhecem as pessoas de verdade. Não estão lá para elas”, disse Wagenknecht em Magdeburgo, criticando todos os partidos alemães, incluindo a AfD.

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De um lado, a BSW fisgou em seis meses mais de 10% dos eleitores nestes estados, onde o campo progressista se vê em queda. De outro, a AfD vê sua popularidade crescer em 14 dentre os 16 Estados alemães, com maior intensidade nas zonas rurais do Oeste e, sobretudo, no Leste.

Em quatro dos cinco estados da ex-RDA, a AfD é apontada pelas pesquisas como favorita de ao menos 25% da população para o Parlamento alemão. É o caso da Saxônia-Anhalt, onde a Inteligência classificou o partido como extremista de ultradireita por seu racismo, lslamofobia e antissemitismo.

Enquanto a AfD dialoga com movimentos neonazistas, Wagenknecht se colocou, num livro a que chama de “contraprograma”, em oposição ao cosmopolitanismo, à “vitimização” de minorias sociais e à abertura cultural em favor do protecionismo e de um Estado forte. O rompimento com o A Esquerda se deu pelo progressivo radicalismo contra a imigração da parlamentar, ex-defensora do comunismo e filha de pai iraniano.

Comício da legenda radical BSW em Magdeburgo, na antiga Alemanha Oriental: a líder do partido, Sahra Wagenknecht, se tornou uma celebridade da esquerda radical Foto: Heloisa Traiano/Estadão

Se o A Esquerda assiste à fuga de parte dos seus eleitores para a AfD, tendo perdido a sua tradicional força no Leste alemão, Wagenknecht está unicamente posicionada para reforçar o esvaziamento da esquerda culturalmente progressista, mirando classes precarizadas.

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Um estudo da Universidade de Leipzig, no Leste da Alemanha, publicado no ano passado revelou que um quarto dos moradores da ex-RDA se sente perdedor da unificação alemã, que fagocitou a vida conhecida pelos alemães orientais sem eliminar a disparidade do nível de precariedade com o lado ocidental.

Hoje, aponta a pesquisa, metade prefere um partido forte que incorpore uma comunidade étnica e nacional e a “aparente segurança de um Estado autoritário” ao pluralismo, à diversidade e à participação democrática.

“A BSW e a AfD têm uma coisa fundamental em comum: apelam aos eleitores que se sentem deixados para trás”, disse Marius Dilling, pesquisador especializado na extrema-direita alemã da Universidade de Leipzig. “No Leste Alemão, os sentimentos de desigualdade e de ser um cidadão de segunda classe são mais frequentes e, em alguns casos, têm uma base real.”

‘Guerra ou Paz?’

Para o cientista político Hajo Funke, da Universidade Livre de Berlim, a crítica à belicização da política externa alemã é também chave na campanha da BSW, cujo slogan central pelas ruas é “Guerra ou Paz?”, e o partido poderia levar a agenda ao nível europeu. A AfD também se diz contra o apoio da Alemanha à Ucrânia.

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“O tema das guerras [na Ucrânia e em Gaza] é uma prioridade para a população. É por isso que elas procuram políticas diferentes na Alemanha”, afirma.

Mas, dentro de casa, os ascendentes conservadorismos inflamam a tensão política que marcou a campanha para as eleições europeias. A polícia alemã registrou 22 ataques físicos contra políticos de janeiro a abril, contra 27 em todo 2023, segundo a Reuters.

Na contramão, alianças locais defendem valores democráticos, a exemplo de trezentos núcleos de Avós Contra a Direita, principalmente no meio rural do Oeste alemão.

“Nas zonas rurais, enfrentamos agressões e palavras rudes. É absolutamente contra a liberdade”, conta Regina Steffan, uma Avó de 70 anos no estado de Hesse, onde a AfD é o segundo partido. “No Leste, é muito difícil por causa da força da AfD, mas também lá estamos crescendo.”

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Tanto a AfD quanto a BSW têm nas eleições europeias um palanque para votações chave deste ano nos estados da Saxônia, Brandemburgo e Turíngia, todas elas no Leste. Nesta última, coração do conservadorismo alemão e terra natal de Wagenknecht, a BSW teria a preferência de 16% dos eleitores, contra 30% para a AfD, se fosse hoje a eleição federal alemã.

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