THE NEW YORK TIMES — Em um vilarejo rural com menos de 500 habitantes na Polônia, estrangeiros chamam a atenção. Até Anna Osinska, de 93 anos, com seus problemas de visão, notou, através da janela de sua cozinha, quando pessoas que não reconhecia — que fugiram da guerra na Ucrânia — começaram a transitar pela estreita rua de sua casa. Ela mesma uma ex-refugiada, Osinska sentiu pena dos ucranianos e ficou feliz por seu país estar fazendo tudo que pode para ajudá-los. Mas também se defrontou com emoções menos caridosas.
“Graças a Deus, eu não sinto nenhuma ânsia de vingança”, afirmou Osinska, relatando que em 1943 fugiu da casa em que vivia com a família em território anteriormente polonês após ucranianos nacionalistas atacarem seu vilarejo, matando a maioria de seus 160 moradores.
Os assassinatos em Niemilia, vilarejo onde ela nasceu e que deixou de existir, foram parte dos eventos horripilantes que a Ucrânia chama de Tragédia de Volhynia, mas a Polônia recorda como o Genocídio de Volhynia. Naqueles pogroms étnicos perpetrados por nacionalistas ucranianos mais de 60 mil poloneses — muitos deles mulheres e crianças — foram assassinados.
Apesar da união propiciada pela hostilidade em comum a respeito das ambições imperiais da Rússia e sua determinação em resistir à investida militar ordenada pelo presidente Vladimir Putin, Polônia e Ucrânia também compartilham passados dolorosos. A carnificina de 1943 foi fonte de tensões por décadas e agora adquire uma importância premente conforme a Polônia se prepara para marcar seu 80.º aniversário, em 11 de julho.
A glorificação na Ucrânia dos nacionalistas de tempos de guerra responsáveis pela matança provoca indignação na Polônia, mas, em vez de confirmar a visão da Rússia que define a Ucrânia como um ninho de fascistas sanguinários, Varsóvia fez um pedido por “reconciliação e perdão” — tema de um serviço religioso celebrado na semana passada na catedral da capital polonesa à qual compareceram sacerdotes cristãos poloneses e ucranianos. No domingo, os presidentes Andrzej Duda, da Polônia, e Volodmir Zelenski, da Ucrânia, visitaram uma igreja em Lutsk, no oeste ucraniano, para rememorar o massacre. Zelenski e o gabinete de Duda postaram no Twitter fotos da cerimônia usando a mesma terminologia de homenagem às vítimas.
Osinska — que foi reassentada quando adolescente após o fim da 2.ª Guerra no sudoeste da Polônia, juntamente com dezenas de milhares de outros refugiados poloneses vindos do território que veio a conformar a Ucrânia — cresceu numa comunidade traumatizada pelos massacres de 1943 e tomada de ódio pelos ucranianos.
Osinska ainda se ressente “porque eles não demonstram nenhum remorso” e não se esqueceu dos dos berros frenéticos proclamando “Morte aos poloneses, morte aos poloneses” que ecoaram em seu vilarejo quando ela tinha 13 anos.
Em maio, acompanhada de seu filho e outros poloneses idosos que sobreviveram ao mesmo trauma, ela deixou flores sobre um memorial de mármore com a inscrição: “Nós não esqueceremos dos nossos parentes assassinados pelos nacionalistas ucranianos” durante a guerra, “porque eles eram poloneses”.
Ainda que os ucranianos “tenham feito coisas terríveis a nós”, afirmou Osinska durante entrevista na cozinha de sua casa, no vilarejo de Slupice, seus descendentes “não podem ser culpados pelo que seus pais e avós fizeram” e merecem ajuda em sua luta contra a Rússia.
“Minhas impressões sobre os ucranianos”, afirmou ela, “mudaram gradualmente”.
Sua mudança em sua perceção, apesar de limitada pelo trauma pessoal, sublinha como a Rússia tem lutado para derrotar os ucranianos não apenas no campo de batalha, mas em um de seus fronts favoritos e que mais lhe beneficiam — guerras de memória; que Moscou acostumou-se a vencer em razão dos milhões de russos que morreram combatendo a Alemanha nazista.
Passado doloroso
Moscou começou sua invasão em escala total à Ucrânia em fevereiro de 2022 com um arsenal guarnecido de história, grande parte falseada por Putin mas contendo algo de verdade — incluindo relatos horripilantes dos massacres de Volhynia perpetrados por Stepan Bandera, líder de uma facção particularmente brutal da Organização dos Nacionalistas Ucranianos.
Autoridades polonesas e historiadores expressaram frustração diante do que percebem como uma recusa da Ucrânia em reconhecer e expiar os pecados dos militantes nacionalistas leais a Bandera, que foi assassinado em 1959 por agentes soviéticos. Atualmente, Bandera é reverenciado como herói nacional por muitos ucranianos — ou saudado de forma descontraída como uma curiosidade folclórica e inofensiva. Na Polônia e na Rússia ele é enxovalhado, classificado como colaborador nazi-fascista.
O porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Polônia, Lukasz Jasina, disse a um jornal polonês em maio que, apesar de Zelenski “ter muitas outras coisas em sua mente neste momento”, a Ucrânia precisa se desculpar pelos massacres de 1943, que ele descreveu como “um assunto muito importante que precisa ser tratado”.
Em vez de desculpas, a Polônia recebeu uma repreensão irritadiça do embaixador ucraniano em Varsóvia, Vasil Zvarich. Em um tuíte que deletou posteriormente, o embaixador rejeitou o que classificou como demandas “inaceitáveis e desafortunadas”, afirmando que os ucranianos “lembram-se da história e clamam por respeito e equilíbrio em declarações especialmente durante a difícil realidade da agressão genocida da Rússia”.
Apesar dessas fricções revolvendo o passado, os esforços de Putin em fundamentar-se na história — ou pelo menos uma versão altamente seletiva dela — para destruir a Ucrânia em nome de uma “desnazificação” têm sido minados por memórias rivais e com frequência mais fortes de ações passadas da própria Rússia.
O historiador polonês Damian Markowski — autor de “A sombra de Volhynia”, um livro ainda não publicado sobre os massacres de 1943 — afirmou que os nacionalistas ucranianos cometeram “crimes horríveis” durante a 2.ª Guerra contra os poloneses que viviam na Ucrânia, que foi palco de combates sangrentos entre os soldados nazistas e soviéticos.
Mas, acrescentou Markowski, assassinar poloneses simplesmente sob justificativa de eles serem poloneses era um crime já praticado, em escala muito maior, pela polícia secreta de Moscou, que foi pioneira em assassinatos com base em etnia durante o Grande Terror de Stalin, de 1937 a 1938, com uma campanha de “aniquilação total” mirando poloneses identificados falsamente como espiões. Algumas vítimas eram selecionadas na lista telefônica, em razão de seus nomes parecerem poloneses. Mais de 120 mil poloneses foram mortos.
Em 1940, os assassinos de Stálin mataram mais de 20 mil poloneses, deixando seus corpos espalhados pela Floresta de Katyn, uma atrocidade a respeito da qual Moscou mentiu por décadas até finalmente reconhecer em 1990.
Inspirados pelo exemplo soviético e, posteriormente, nazista, de assassínio étnico, afirmou Markowski, os nacionalistas ucranianos deram-se conta nos anos 40 de que “era possível eliminar pessoas de outras nacionalidades”.
O impulso para a erradicação total dos poloneses étnicos de Volhynia, que os nacionalistas ucranianos percebiam como precondição essencial para o estabelecimento de um Estado independente, mostrou a que vinha em 11 de julho de 1943, quando o Exército Insurreto Ucraniano lançou um ataque coordenado contra 90 assentamentos poloneses matando 11 mil pessoas em um único dia. Segundo Markowski, a data foi escolhida porque era um domingo, e “eles sabiam que muita gente estaria na igreja”.
O vilarejo de Osinska tinha sido atacado algumas semanas antes, em 27 de maio. Ela se recorda vividamente daquela noite enluarada. Os cães começaram a latir subitamente, e seu pai, temendo um ataque de militantes ucranianos após um amigo seu ter sido assassinado e mutilado dias antes, levou a família para se esconder em um campo nas proximidades de sua casa.
Osinska lembra-se de ter rasgado o vestido enquanto se arrastava em meio ao trigo — e dos berros de seus vizinhos sob ataque dos ucranianos. “Eles queriam matar todos nós”, afirmou ela, “só porque éramos poloneses”.
Quando Osinska e sua família retornaram brevemente ao vilarejo, no dia seguinte, encontraram todas as casas queimadas e os corpos de seus amigos e parentes nas ruas. “Lembro-me de ver uma tia minha com a cabeça aberta e insetos se arrastando sobre seu rosto”, recordou-se ela.
Com a casa em cinzas e o vilarejo repleto de bandos de saqueadores ucranianos e seus colaboradores nazistas, Osinska e sua família fugiram a pé e depois de trem. Eventualmente, chegaram a Varsóvia, quando a guerra estava acabando. De lá, foram enviados para o território anteriormente alemão em torno de Breslávia, no sudoeste polonês, que foi concedido à Polônia em compensação por áreas que o país tinha perdido no leste.
“Todos nós queríamos voltar para Volhynia”, afirmou Osinska. “Nós só pensamos nisso durante muitos anos.” Mas retornar para o seu antigo vilarejo, expurgado de seus habitantes poloneses ao entrar completamente sob o jugo de Moscou após a guerra, como parte da Ucrânia soviética, tornou-se impossível.
De seus parentes mais próximos, apenas um sobrinho, Ryszard Marcinkowski, de 74 anos, voltou. Diretor da Borderlands Association, um grupo de poloneses interessados na cultura que desapareceu nas terras perdidas no leste, Marcinkowski visitou o oeste ucraniano muitas vezes desde a queda da União Soviética, em 1991, para cuidar dos túmulos de Niemilia, o vilarejo de sua família, e erigir cruzes em memória aos mortos.
Apesar de ter sido criado entre as histórias de horror sobre os ucranianos contadas por sua tia e seus pais, Marcinkowski viajou para lá consecutivamente no ano passado após o início da guerra para mostrar seu apoio contra a Rússia e entregar suprimentos. “Viver com ódio”, afirmou ele, “nunca é saudável”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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