O presidente Vladimir Putin encarou o fundo do abismo no sábado — e cerrou o olhos. Depois de jurar vingar-se do que qualificou como um “motim armado”, ele acabou se contentando com um meio-termo. A velocidade com que o líder russo recuou sugere que sua sensação de vulnerabilidade pode ser mais intensa do que acreditavam os analistas. Putin pode ter salvado seu regime no sábado, mas esse dia será lembrado como parte do desfazimento da Rússia enquanto grande potência — que será seu verdadeiro legado.
O acordo de Putin com o líder miliciano renegado Ievgeni Prigozhin deverá ser, na melhor das hipóteses, uma trégua momentânea. O líder bombástico rumará para Belarus segundo um pacto intermediado por seu amigo presidente, Alexander Lukashenko, em troca de Putin retirar as acusações contra Prigozhin e seus soldados amotinados, de acordo com o porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.
Era um golpe verdadeiro, até que deixou de sê-lo. Durante grande parte do sábado, Prigozhin ordenou que unidades de sua milícia, o Grupo Wagner, de 25 mil homens, marchassem na direção dos portões de Moscou, atropelando o quartel de comando dentro da Rússia para a guerra ucraniana, em Rostov-on-Don, e ao norte, em Voronezh. Fontes disseram-me que operadores da agência de inteligência russa FSB instalaram bloqueios nas estradas nessa rota, que surtiram pouco efeito. Putin convocou a Guarda Nacional para defender Moscou.
Conforme afirmou Putin em um discurso sanguíneo no sábado, o atual momento está adquirindo uma relevância similar a 1917, quando a nação sofria as consequências de outra guerra infame e, nas palavras de Putin, “russos mataram russos, irmãos mataram irmãos”.
Ao longo do dia, a dúvida que pairou imediatamente sobre Washington e outras capitais do mundo era se Prigozhin continuaria sua “marcha por justiça” — e se Putin ordenaria que os soldados russos disparassem contra os rebeldes para conter seu avanço. Fontes disseram-me que, conforme as forças Wagner avançaram para o norte, o Exército regular não as perseguiu nem obstruiu seu movimento.
Somente homens doidos saltam ao abismo em situações como esta, e Putin não é doido, nem Prigozhin. Pareceu um embate frontal em que ambos os combatentes desviam as forças na hora H, ou um duelo em que os atiradores disparam para o alto, para lutar no futuro.
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Putin tinha apenas escolhas ruins diante de si, e sabia disso. Tropas chechenas comandadas por Ramzan Kadirov teriam estado na vanguarda de seu ataque contra as forças Wagner em Rostov — uma receita para a selvageria. Putin não poderia ter certeza de que suas tropas obedeceriam suas ordens, estava entrando numa situação que não seria capaz de controlar. E Putin não faz isso, à exceção de seu ensandecido erro da cálculo ao invadir a Ucrânia.
O notável a respeito dessas loucas 24 horas é que Putin conseguiu neutralizar a crise sem nenhum grande confronto militar. Ele certamente foi aviltado por um comparsa teimoso, mas ainda está no controle. A guilhotina passou raspando em seu couro cabeludo, mas não o decapitou.
É fácil caricaturar Putin, mas ele possui um dom incomum, se é possível tal qualificação, para o governo autoritário. Com seus olhos azul-gelo, ele encarna a máxima, “nunca transpareça que a coisa o incomoda”. Putin deixou seus asseclas lutarem entre si, recusando-se a intervir, conforme Prigozhin dirigia insultos quase diários ao longo do ano recente ao ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu. Putin age como se estivesse abaixo dele sujar as mãos com tais pequenezas.
Mas o sábado foi diferente. Com sua invocação de 1917, Putin levou os russos de volta às devastadoras lutas domésticas que se seguiram à 1.ª Guerra. “Intrigas e discussões por trás das costas do Exército resultaram na maior catástrofe, a destruição do Exército e do Estado, a perda de territórios imensos, ocasionando tragédia e uma guerra civil”, afirmou ele no sábado.
Agora, como naquele momento, o inimigo é externo. “Todas as máquinas militares, econômicas e de informação do Ocidente estão voltadas contra nós”, afirmou ele. Aquela mistura tóxica entre insegurança e orgulho nacional russo continua a alimentar Putin enquanto líder.
A resposta do governo Biden para esse dia de desvario na Rússia pareceu uma versão de um conselho atribuído a Napoleão: “Nunca interrompa seu inimigo enquanto ele estiver cometendo um erro”. Assim como a prescrição usual de Joe Biden: foco nos aliados e parceiros.
O presidente americano e sua equipe permaneceram em contato com líderes mundiais. A Casa Branca e autoridades do Departamento de Estado falaram com as maiores democracias, conhecidas como Grupo dos Sete; adicionando Índia e Austrália, enquanto membros do “Quad”. As autoridades se consultaram com a Otan e a União Europeia.
A mensagem de todos esses chamados, disseram-me, foi “deixem a coisa esfriar”. Não tornem a crise na Rússia mais perigosa buscando intervir ou se beneficiar do desarranjo. Essa mensagem teve foco especial sobre a Ucrânia; as autoridades americanas enfatizaram seu desejo de que Kiev não pareça tirar vantagem da contenda interna da Rússia de maneiras que possam colaborar para uma escalada até um momento ainda mais perigoso. Os ucranianos, pelo que podemos perceber, seguiram esse conselho.
Mais problemas para Putin certamente se seguirão na Ucrânia. Prigozhin falou absolutamente a verdade nos dias que antecederam sua marcha a Moscou: a Ucrânia não ameaçava a Rússia, e a invasão russa foi desnecessária — um erro de proporções épicas. Nem mesmo Putin, o homem de gelo, é capaz de congelar a incandescente verdade sobre o desastre de sua autoria na Ucrânia. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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