ENVIADO ESPECIAL, DE PEQUIM - Em um dia de verão quente e úmido de Pequim, com os termômetros marcando 39 graus, centenas de crianças fazem fila na entrada do Templo do Céu, um complexo de templos taoístas construído no ano de 1420 que se tornou uma das principais atrações turísticas da capital chinesa. Separadas em grupos por cores de camisa, tentam se aliviar do calor com ventoinhas enquanto guias dão instruções segurando diferentes bandeiras. São férias de verão na China, e centenas de crianças de outras cidades estão em Pequim para programas turísticos.
Quase um ano depois da política de covid zero chegar ao fim no país, a população da China voltou a se movimentar e viajar intensamente, com incentivo do governo para tentar acelerar o processo de recuperação econômica pós-pandemia. Em Pequim, isso é visível nas atrações turísticas históricas, nas ruas comerciais e nos restaurantes, quase sempre lotados de chineses do interior do país com famílias ou em excursões escolares.
Mas, enquanto o setor de serviços está aquecido com a reabertura, o restante da economia patina para se recuperar. Os números do PIB revelados em julho mostram um crescimento de 6,3% no segundo trimestre do ano em comparação com o mesmo período do ano passado, quando a economia estava em baixa por causa dos lockdowns. Isso torna a taxa de crescimento menos impressionante e abre o olhar para outro dado: em comparação com o primeiro trimestre deste ano, a economia cresceu apenas 0,8%.
O desemprego entre jovens continua em alta (21,9%), o setor privado ainda não recuperou a confiança para fazer novos investimentos e o valor de exportações caiu 12% em junho, em comparação com o ano anterior. A venda de imóveis caiu 27% no mesmo período e mostra a dificuldade que o setor imobiliário, descrito por analistas como “espinha dorsal” do crescimento chinês durante anos, tem em se recuperar.
O mais recente risco foi indicado pela queda dos preços ao consumidor em julho pela primeira vez desde 2021. Agora, o país convive com o fantasma da deflação, o mesmo que assombrou o Japão na estagnação econômica da década de 1990. Tecnicamente, um país é considerado em deflação quando os preços caem por três meses consecutivos.
Analistas da China atribuem essa fraqueza às mudanças nos preços globais das commodities, como a queda do preço do petróleo, e à guerra comercial com os Estados Unidos. Outros analistas, no entanto, discordam da primeira afirmação com o argumento de que o PIB conta apenas o valor adicionado a um bem no próprio país, excluindo o valor de commodities que foram importadas.
Dificuldades domésticas também desafiam o crescimento do país, justamente em um ciclo econômico que prioriza o consumo interno e a demanda para tornar a economia menos dependente do comércio exterior. “Existe um cenário doméstico de falta de confiança do consumidor e de empresários do setor privado (para investir)”, declarou Aline Tedeschi, doutora em Relações Internacionais e Desenvolvimento e membro da organização Observa China.
Governo dá respostas cautelosas
Esses desafios são reconhecidos pelo próprio governo e debatidos na China. Segundo o Politburo, principal órgão decisório na China, uma série de medidas para impulsionar a economia estão em análise. “O principal desafio é a demanda interna insuficiente, dificuldades operacionais de algumas empresas, altos riscos em setores-chave e ambiente externo complicado e severo”, disse o órgão em um comunicado divulgado em julho pela agência de notícias chinesa Xinhua.
Na mesma declaração, o Politburo definiu a recuperação econômica pós-covid como “desenvolvimento em forma de ondas e avanços com alguns retrocessos”.
As respostas têm sido cautelosas até o momento, ao contrário do que aconteceu em outros momentos de crise. Quando o comércio mundial despencou na crise financeira de 2008, vastos pacotes de estímulo foram lançados para impulsionar o crescimento econômico do país. Hoje, no entanto, as medidas estão limitadas a cortar as taxas de juros, dar incentivos aos consumidores para aumentar a demanda interna, como acesso ao crédito para compra de eletrodomésticos e automóveis, e encorajar o setor privado a expandir investimentos.
Para alguns economistas, a cautela representa o cuidado do governo para não haver inflação ou uma explosão de empréstimos que corroa a lucratividade de bancos e possa aumentar as taxas de inadimplência, que cresceram durante a pandemia com a quebra de muitos negócios. Para outros, também mostra uma confiança do governo para cumprir suas metas anuais, incluindo um crescimento do PIB em 5%.
Segundo a economista Isabella Weber, autora do livro “Como a China escapou da Terapia de Choque: o debate da reforma de mercado” (editora Boitempo, 2023), o temor da inflação está ligado a um histórico chinês: na década de 1940, quando houve a Revolução Comunista e a fundação da República Popular da China, um fator que foi determinante para a revolução foi a incapacidade dos nacionalistas de controlar a inflação. “Acredito que o fato de não terem feito grandes estímulos da maneira que esperávamos tem a ver com esse controle”, disse.
Risco de deflação desafia planejamento econômico
A queda de preços em junho desafia o planejamento econômico chinês (modelo que caracterizou em grande parte o sucesso da transformação da China nas últimas quatro décadas) de alterar a estrutura para ser menos dependente do comércio externo e valorizar o consumo e a demanda interna. Com preços em declínio, os consumidores costumam esperar para adquirir bens na expectativa de encontrar valores cada vez mais baixos.
Esse comportamento se soma à desconfiança de investidores do setor privado e às altas despesas de famílias durante a pandemia como fatores que dificultam a demanda doméstica. Como consequência, corre-se o risco de cair em um ciclo: com menos atividade econômica, trabalhadores sofrem cortes salariais e renda instável, o desemprego tende a crescer e o consumo a cair.
As políticas de estímulo do governo são implementadas para reverter esse processo, mas em um dos setores-chave, o do mercado imobiliário, existe o risco de contrariar outros planos econômicos. Hoje, o setor é visto por muitos analistas como o maior desafio para a China.
Em 2017, o presidente Xi Jinping iniciou uma política de moradia para evitar a especulação imobiliária com a declaração que “moradia é para morar, não para especular”. A especulação aconteceu enquanto o setor foi responsável por 25% do PIB e resultou em grandes incorporadoras e acumulação de propriedade por parte de famílias que viam os imóveis como um meio de investir dinheiro.
Por seis anos, o princípio de Xi Jinping sustentou a política contra a especulação imobiliária e expansão desenfreada do crédito, mas nos últimos meses a regulação passou a ser afrouxada em diversas cidades chinesas para o setor voltar a aquecer e ajudar a recuperação. Compra de casas e regulamentos de financiamento para incorporadoras imobiliárias foram facilitadas.
O grande esforço é recuperar a confiança dos investidores, em baixa desde o caso da Evergrande, que ficou à beira da falência após acumular dívidas estimadas em 2021 em mais de US$ 300 bilhões, e incentivar os residentes que desejam comprar imóveis. “O governo deve adaptar a nova situação na qual a dinâmica de oferta e demanda do mercado imobiliário está mudando significativamente”, disse o Politburo no fim de julho.
Apesar da nova direção, analistas da China esperam que os reguladores continuem a se abster de fortes medidas de estímulo, em meio a preocupações de que elas possam inflar ainda mais a bolha imobiliária. “O governo não quer resolver os problemas de hoje apenas criando uma bolha maior para esvaziar no futuro”, afirmou Wei He, da Gavekal Dragonomics, ao jornal chinês South China Morning Post no mês passado.
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Recuperação precisa do setor imobiliário e áreas menos desenvolvidas
Em julho, 28 medidas foram anunciadas para impulsionar o setor privado, que incluem a desburocratização para facilitar a participação de empresas em grandes projetos nacionais de infraestrutura e investir no setor imobiliário. O país mira em projetos em áreas menos desenvolvidas, como as zonas rurais e províncias mais ao oeste. “A China é um país gigantesco e ainda há vastas áreas no interior do país que são muito pobres. E isso é algo que eles falam, e acho que isso terá grandes implicações para o desenvolvimento macroeconômico”, declarou Isabella Weber.
Para Aline Tedeschi, esse foco no setor de construção tem uma ligação indissociável com o incentivo ao consumo. “A maior parte do consumo de grande orçamento pelos chineses (que tem sido incentivado pelo governo), incluindo carros e grandes eletrodomésticos, está ligada ao setor imobiliário”, declarou. “Portanto, o apoio ao setor imobiliário é fundamental para estimular o consumo em outras áreas.”
Entre as medidas de estímulo, estão a garantia aos compradores de primeira casa e aos que buscam melhorar condições de moradia de serem apoiados com acesso ao crédito. Os governos locais também estão proibidos de restringir compras de veículos, que foram impostas nos últimos anos para reduzir as emissões de carbono.
Como faz há quarenta anos, o governo chinês estuda a resposta aos desafios e experimenta soluções, com políticas de incentivo que visam, ao mesmo tempo, evitar o retorno de antigos problemas e impulsionar a economia dentro da nova direção estabelecida sob a liderança de Xi Jinping. Mesmo que as férias de verão deem um alívio momentâneo para a economia, o governo sabe que o setor de serviços e o consumo de itens de baixo custo, como as ventoinhas que se tornaram febres no verão chinês na mão das centenas de crianças em visita à cidade, são insuficientes para crescer. As temperaturas logo vão baixar.
*O repórter viajou para Pequim à convite do Ministério do Comércio da China
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