TEL-AVIV — Os sinais de desnutrição extrema de alguns dos reféns israelenses libertados recentemente foram apenas a evidência mais visível da tortura que eles se lembram de ter sofrido no cativeiro do Hamas.
Os 16 reféns israelenses libertados nas últimas semanas após serem mantidos em túneis e residências de Gaza por mais de um ano começaram a relatar às suas famílias que foram espancados, acorrentados, queimados e interrogados violentamente, de acordo com os parentes. Os ex-reféns disseram que seus captores os atormentavam dizendo que Israel não existia mais e os provocavam a respeito do destino de membros de suas famílias, que em muitos casos, foram mortos ou sequestrados durante o ataque liderado pelo Hamas a Israel, há 16 meses.
O tormento psicológico continuou até os últimos momentos anteriores à sua libertação, enquanto o Hamas forçava os reféns a elogiar seus captores dentro de suas celas e então sorrir para as câmeras, durante cerimônias encenadas que precederam sua volta para casa.

“O Hamas estava tentando nos mostrar que ainda tem um certo nível de controle sobre o que está acontecendo”, disse Lee Siegel, irmão de Keith Siegel, um refém israelense-americano de 65 anos que foi libertado no início deste mês e recebeu duas “sacolas de presentes” de despedida, uma para ele e outra cheia de chocolate, perfume e um “certificado de cativeiro” para Aviva, sua mulher, que foi arrastada de sua casa no sul de Israel junto com ele e libertada no primeiro acordo para libertação de reféns, em novembro de 2023.
Durante os primeiros 51 dias, enquanto ficou detido ao lado de Aviva, Keith tentou esconder sua cidadania americana, na esperança de não ser libertado antes, relatou seu irmão Lee em entrevista ao Washington Post. Depois que Aviva foi libertada, Keith manteve um diário mental meticuloso, anotando dias em cativeiro, datas no calendário e os eventos aterrorizantes que ocorreram. O sistema permitiu que ele “mergulhasse em seu eu interior”, disse Lee.
Keith se lembrou de trajar um manto galabiya e se arrastar entre túneis e prédios escuros em 33 ocasiões. Seus guardas do Hamas apontavam para os escombros e diziam: “É isso que seu governo está fazendo conosco. Seu povo não quer você de volta. Eles continuam bombardeando.”
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Quando atacou Israel em outubro de 2023, o Hamas matou cerca de 1,2 mil pessoas e fez cerca de 250 reféns. O ataque desencadeou a guerra devastadora de Israel na Faixa de Gaza, que matou mais de 48 mil pessoas, de acordo com o Ministério da Saúde de Gaza, que não distingue entre combatentes e civis, mas diz que a maioria das mortes foi de mulheres e crianças.
Os relatos sombrios de Keith e outros ex-reféns estão aumentando a preocupação dos israelenses com as pessoas que ainda estão cativas em Gaza e alimentando a pressão sobre o governo para manter o cessar-fogo e redobrar os esforços por sua libertação.
Após ser libertado, Keith chocou sua família com a precisão de suas memórias, incluindo os dias em que viu sua família na televisão ou ouviu seus parentes no rádio, fazendo campanha por sua libertação. No 205.º dia de seu cativeiro, enquanto seu guarda do Hamas ouvia um programa de rádio em árabe com uma entrevista com sua filha, Keith soube que seu filho, que foi resgatado por tropas israelenses de sua casa no Kibutz Kfar Aza, tinha sobrevivido.
Keith passou seis de seus 16 meses cativo — incluindo os dois últimos — sozinho com seus captores, disse Lee. Quando tinha permissão para falar em voz alta, Keith sussurrava conversas imaginárias com sua mulher e sua família. Quando falar era proibido, ele conversava mentalmente com ela. Lee disse que, mesmo quando seu irmão era mantido acima do solo, ele não via o céu; as janelas do pequeno quarto em que Keith era mantido eram escurecidas para evitar revelar sua localização às forças israelenses ou aos vizinhos em Gaza.

“Keith entendeu que tinha de ser um segredo para todos”, disse Lee. Um dos esconderijos de Keith era a residência de uma família, onde ele ficou trancado em um quarto — no mesmo ambiente que uma família com crianças.
Ofri Bibas, a irmã de Yarden Bibas, um refém israelense de 35 anos libertado no início deste mês, disse em entrevista ao Canal 12 que ele passou a maior parte dos últimos 16 meses dormindo em um colchão mofado, dentro de túneis, tentando usar seu senso de humor para se humanizar aos olhos de seus captores.
Ofri disse que, no início do cativeiro de Yarden, um de seus captores lhe disse que sua mulher e seus filhos estavam vivos, em Tel-Aviv. Yarden acreditou. Então, em janeiro de 2024, homens armados do Hamas o filmaram depois de lhe dizer que sua mulher e seus filhos foram mortos em um ataque aéreo israelense. No vídeo, eles o forçam a exigir, às lágrimas, que o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, concorde com o retorno de seus corpos a Israel.
Yarden foi capturado separadamente de sua mulher, Shiri, que foi filmada por homens armados do Hamas com seus filhos nos braços, Ariel, de 4 anos, e Kfir, de 9 meses — uma das imagens mais icônicas daquele dia. Em um comunicado emitido na sexta-feira, Yarden disse que “enquanto eles estiverem lá, aqui só haverá escuridão” e implorou a Netanyahu para trazê-los de volta.

“Há muitas dificuldades; há novas dificuldades todos os dias”, disse Ofri em entrevista na TV, acrescentando que Yarden está agora com sua família aguardando o retorno de sua mulher e seus filhos.
Muitos detalhes descritos pelos reféns libertados recentemente não eram novidade para os israelenses, que ouviram relatos anteriores de ex-reféns que haviam ficado cativos no mesmo ambiente.
Adina Moshe, de 72 anos, que foi libertada no primeiro acordo, contou que Bibas e Ofer Calderon foram mantidos em “jaulas”. A mulher de Keith, Aviva Siegel, descreveu repetidamente os horrores e as táticas de humilhação do cativeiro do Hamas a jornalistas e diante do Parlamento. As famílias de Or Levy e Ohad Ben Ami, dois dos três reféns com sinais de desnutrição libertados no sábado, disseram que eles recebiam apenas um pão pita podre a cada vários dias para comer e eram sufocados, amordaçados e pendurados pelas pernas, de acordo com o canal Kan, a emissora pública de Israel.
Os pais de Hersh Goldberg-Polin, um refém americano-israelense morto no fim de agosto, disseram em um vídeo postado no Instagram que esperam se encontrar com Or Levy, que foi sequestrado junto com seu filho. Os relatos horríveis pronunciados pelos reféns que retornam são “um soco no estômago para todos nós e mostram que precisamos fazer mais”, disse o pai de Hersh, Jon, no vídeo, implorando para o presidente Donald Trump e seu enviado ao Oriente Médio, Steve Witkoff, “pensar grande e mais rápido” para libertar os outros 76 reféns.
A equipe médica israelense para reabilitação de reféns está de plantão há mais de um ano e desenvolveu um protocolo complexo para receber os libertados. “Os reféns que sobrevivem são incrivelmente resilientes, mas têm feridas abertas em seus corpos e suas almas”, afirmou o diretor da equipe médica do Fórum de Famílias de Reféns, Hagai Levine.
Ele disse que os hospitais têm tratado desnutrição severa, desidratação e massa muscular deteriorada. Os ex-reféns também têm ferimentos relacionados a falta de exposição à luz solar ou a períodos prolongados de isolamento, e alguns precisam de cuidados para ferimentos sofridos em 7 de outubro de 2023 ou durante o cativeiro, disse Levine. As equipes médicas também estão repondo cuidadosamente os nutrientes, para evitar condições como “realimentação”, uma síndrome perigosa na qual corpos de pessoas subnutridas não conseguem digerir porções de alimento de tamanho normal.
Os ex-reféns pediram privacidade. Mas nas enfermarias isoladas em hospitais e nos centros de reabilitação, estão falando por meio de suas famílias e em postagens nas redes sociais, pedindo que todos os reféns voltem para casa, mesmo com a fragilidade do acordo de cessar-fogo. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO