Reforma do Judiciário de Netanyahu não é antidemocrática e ajudará Israel; leia a análise

A Justiça de Israel é anormalmente poderosa e tem feito com que metade do país perca a fé no governo. A reforma judicial ajudará, contanto que não faça a outra metade sentir o mesmo

PUBLICIDADE

Por Evelyn Gordon*

Este artigo foi originalmente publicado na revista online israelense Mosaic.

PUBLICIDADE

O texto foi dividido em três partes para facilitar a leitura. A segunda parte está aqui. A terceira parte está aqui.

Qualquer um que leia a imprensa de Israel nestes tempos provavelmente concluiria que o país logo deixará de ser uma democracia.

Em janeiro de 2023, menos de um mês após assumir, o governo de Israel apresentou um pacote abrangente de reformas que pretendem reduzir o poder da Suprema Corte do país, sob o argumento de que o tribunal superior tem minado a democracia e se intrometido em funções tradicionais do Executivo e do Legislativo.

A oposição, alegando que as reformas, não a Suprema Corte, são a verdadeira ameaça à democracia, respondeu quase imediatamente com protestos massivos. Conforme passaram-se as semanas, as manifestações se intensificaram e se espalharam além dos círculos tradicionais da oposição, e Israel começou a descambar para o caos.

De onde vem esta questão? Quem está certo? E o que Israel deveria fazer agora?

Como uma pessoa que escreve a respeito da necessidade de conter o ativismo excessivo da corte há décadas — desde muito antes do assunto se tornar partidário-eleitoral para tantos israelenses — em vários ensaios extensos e dezenas de textos mais curtos, eu considero que a maioria dessas reformas não apenas atende aos limites da prática da normalidade democrática, mas de fato é de fato essencial para melhorar a democracia israelense.

Publicidade

Manifestações contra a reforma do judiciário em Israel levaram milhares de pessoas para as ruas do país  Foto: Oded Bality / AP

A atual situação, na qual metade do povo desconfia profundamente da Suprema Corte, é claramente insustentável para qualquer país que pretenda permanecer democrático; porque os tribunais são mecanismos cruciais para a resolução de disputas sem apelar para a força, e se uma fatia expressiva da população não confia neles, torna-se mais provável apelar para a força. Ao mesmo tempo, porém, algumas das preocupações levantadas pela oposição são válidas e merecem ser levadas a sério. Dada a convicção generalizada de que a sociedade de Israel atingiu um ponto de ruptura, equilibrar esses dois imperativos é tarefa urgente.

Dois pacotes de reformas estão sendo sugeridos pela coalizão governante. Um foi redigido por Yariv Levin, membro da Knesset do partido Likud, que ocupa atualmente o cargo de ministro da Justiça, e o outro por Simcha Rothman, membro da Knesset do Partido Sionista Religioso, que atualmente preside a Comissão de Constituição, Lei e Justiça do Parlamento israelense. (A proposta de Levin deveria ter sido a única, mas como é ministro do gabinete, ele não pode apresentar projetos de lei antes de que seu texto tenha sido revisado pela Procuradoria-Geral, que tem de aprová-lo e ainda não o fez. Para acelerar o processo, Rothman começou a introduzir seu projeto de legislação similar, mas não idêntico, em nome da comissão, já que uma comissão da Knesset tem capacidade de apresentar propostas legislativas sem a aprovação da Procuradoria-Geral. Ambos os legisladores planejam negociar mutuamente uma versão comum em audiências da comissão de Rothman.)

Os pacotes são compostos por sete elementos, cada um destinado a lidar com problemas específicos criados pela revolução judicial israelense das décadas de 80 e 90; juntas, as reformas se destinam a restaurar a situação jurídica à das primeiras décadas da existência de Israel (um tempo em que ninguém colocava em questão as credenciais democráticas do país). Consequentemente, para entender a reforma e formar opinião a respeito, primeiro é necessário entender aquela revolução e como ela ocorreu.

I. A Revolução Judicial em Israel

Israel, como se sabe, é uma nação que não possui constituição. O que não torna o país singular nesse sentido; algumas outras democracias, como o Reino Unido, também carecem de constituições escritas. Mas Israel é singular em relação ao papel desemprenhado por seu Judiciário. Em Estados sem constituições escritas, tribunais superiores costumam ter menos poder do que em nações com constituições.

CONTiNUA APÓS PUBLICIDADE

Mas ao longo das três últimas décadas, a Suprema Corte de Israel tem explorado a ausência de constituição para aumentar gradualmente sua intervenção em políticas, julgamentos de valor e prerrogativas do Legislativo e do Executivo. Como resultado, a confiança do público no tribunal se dividiu acentuadamente seguindo as fileiras da política e da religião. De acordo com o Índice da Democracia Israelense, estabelecido anualmente pelo Instituto da Democracia de Israel, a confiança na Suprema Corte ronda 84% entre esquerdistas e apenas 26% entre direitistas; e 63% entre judeus seculares e apenas 3% entre ultraortodoxos.

A revolução judicial começou nos anos 80, quando a Suprema Corte aboliu, unilateralmente, duas restrições cruciais ao seu poder de julgar casos: de posição, abrangendo os entes com direito de peticionar ao tribunal, e de justiciabilidade, abrangendo os temas sob jurisdição do tribunal. As normas aceitas até então — conforme ainda é o caso em muitos países atualmente, incluindo os Estados Unidos — determinavam que apenas entes diretamente afetados por uma determinada decisão do Executivo tinham posição para acorrer à corte e que a maioria dos temas políticos era inculpável, significando que o tribunal não tinha capacidade para decidir sobre esses assuntos porque eles eram propriamente campo dos poderes eleitos do governo.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, conversa com membros do parlamento israelense antes da votação de uma das emendas da reforma do judiciário israelense  Foto: Maya Alleruzzo / AP

A nova prática permitiu que qualquer ente, incluindo organizações ou indivíduos não afetados diretamente pela política em questão mas que a desgostem, possam peticionar à corte em relação a qualquer tema. O resultado, conforme definiu famosamente o ideólogo chefe da revolução, o ex-presidente da Suprema Corte Aharon Barak, é que hoje “tudo é justiçável”. Virtualmente todas as questões controvertidas a respeito de políticas — assim como muitos temas triviais — agora chegam à corte, que decide sobre todas elas. (Para saber mais a respeito das motivações de Barak para esse esforço e os estágios subsequentes da revolução judicial, leia este artigo, de 1998, ou este, de 2016.)

Publicidade

Mas em vez de meramente julgar se as políticas estão de acordo com a lei existente, a Suprema Corte também determinou que ações do governo podem ser “irrazoáveis ao ponto de ser ilegais” mesmo que não violem nenhuma lei. Esta foi a segunda parte crucial da revolução. Razoabilidade era originalmente um padrão usado para proteger direitos individuais determinando de uma dada maneira de alguma autoridade ou agência do governo lidar com um caso em particular seja uma interpretação razoável de sua autoridade prevista legalmente. Mas derrubar políticas genéricas em vez de decisões individuais sob o argumento de que elas são “irrazoáveis” decorreu de uma nova interpretação desta doutrina; tribunais de outras democracias geralmente se atêm a determinar se políticas violam suas leis ou constituições.

Desde então, a Suprema Corte de Israel tem usado sua doutrina expandida de razoabilidade para derrubar políticas em uma ampla gama de questões pertencentes ao cerne das responsabilidades do governo. Para citar apenas alguns exemplos: essa doutrina essencialmente furtou dos ministros do gabinete o direito de nomear autoridades que compartilham de seus pontos de vista barrando a nomeação de colegas de partido ou amigos mesmo quando os indivíduos são completamente qualificados; o que resultou, por exemplo, na desqualificação de um dos mais importantes criminalistas israelenses para a disputa ao cargo de procurador-geral meramente porque ele tem amizade com o ministro da Justiça.

Colonos israelenses reagem durante um protesto de ativistas de esquerda contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no assentamento de Kdumim, na Cisjordânia Foto: Maya Alleruzzo/AP

A Suprema Corte sob essa doutrina forçou um gasto orçamentário massivo ao ordenar que o Estado fortificasse todas as escolas localizadas a até uma distância determinada de Gaza para as salas de aula resistirem a ataques de foguete, sobrepondo-se ao entendimento do governo de que crianças mais velhas teriam tempo para se esconder em bunkers. O tribunal proibiu a detenção de dois graduados comandantes de duas organizações terroristas como meio de obter informações a respeito de um soldado israelense desaparecido em serviço, apesar de ambos os homens estarem envolvidos pessoalmente no desaparecimento; impediu o governo de revogar direitos de residência em Israel de dois palestinos eleitos para a legislatura palestina, um governo estrangeiro, representando o Hamas, uma organização terrorista; paralisou governos de transição determinando que era irrazoável eles adotarem medidas triviais, como nomear autoridades de nível médio, a não ser que elas se comprometessem a se aliar a governos futuros, mas considerou razoável que um governo de transição oferecesse aos palestinos um amplo acordo de status final após sua coalizão ter colapsado em virtude desta mesma questão.

Trata-se de um problema tanto no princípio quanto na prática. Primeiramente, em um país democrático, decidir se uma determinada política é ou não razoável não cabe ao Judiciário. Determinar políticas é a principal responsabilidade do governo, e decidir se as políticas do governo são razoáveis ou não é função dos eleitores. Se os eleitores consideram as políticas do governo irrazoáveis, eles podem mandá-lo embora na eleição seguinte. Além disso, a razoabilidade de uma determinada política é uma questão a respeito do que pessoas razoáveis podem discordar.

Na decisão sobre o soldado desaparecido, por exemplo, dois de cinco ministros da Suprema Corte consideraram a conclusão dos outros três extremamente irrazoável. E ainda que magistrados sejam especialistas em interpretar a lei, eles não são mais qualificados do que nenhuma outra pessoa para decidir se uma política é razoável ou não. Na realidade, eles são, pode-se argumentar, muito menos qualificados para isso, dada sua falta de experiência em tantos campos cruciais das políticas (defesa, economia etc.).

Além disso, em um nível prático é difícil para um governo satisfazer seus eleitores se suas políticas emblemáticas são repetidamente derrubadas em razão de um punhado de ministros da Suprema Corte considerá-las “irrazoáveis”. O que constitui um motivo relevante para os eleitores direitistas e religiosos virem reclamando há décadas que continuam “votando para a direita e rumando para a esquerda” e também porque “governabilidade” virou palavra de ordem da direita. Considere, por exemplo, o caso de Moshe Kahlon, um oponente enérgico à reforma judicial que liderou um partido de centro-direita chamado Kulanu e foi nomeado ministro das Finanças em 2015.

O Kulanu era um partido monotemático; sua bandeira era baixar o custo de vida, especialmente o preço das moradias. Mas a Suprema Corte anulou repetidamente as políticas de Kahlon, incluindo seu projeto emblemático de reformulação nos preços de imóveis (um imposto sobre várias residências), que o tribunal rejeitou sob o argumento absurdo de que o debate apressado na Knesset — uma prática comum para a discussão de peças orçamentárias — era “irrazoável” nesse caso em particular (e como na maioria dos aumentos de impostos, a medida era impopular demais para ser aprovada desatrelada do orçamento geral). Quatro anos depois, Kahlon disse a um repórter que não estava mais disposto a bloquear uma reforma judicial: governar fica impossível quando os governos são impedidos repetidamente de determinar políticas.

Publicidade

O terceiro estágio da revolução judicial ocorreu em 1995, quando a Suprema Corte decidiu unilateralmente que duas Leis Básicas de 1992— as primeiras a tratar de direitos individuais em vez de arranjos institucionais — eram uma constituição que lhes conferia poder para derrubar legislações ordinárias, mesmo que a Knesset jamais as tivesse projetado para essa função. Conforme determinado pela primeira decisão da Knesset, de 1950, de postergar a redação de uma constituição e, em vez disso, promulgá-la gradualmente, as Leis Básicas tinham objetivo de estabelecer os fundamentos de uma futura carta.

Mas todas as legislaturas e formações da Suprema Corte as consideraram despidas de qualquer status constitucional até que uma constituição fosse concluída e ratificada. Isso se deveu em parte ao fato das Leis Básicas existentes terem sido e ainda serem desprovidas de certos dispositivos vitais. Apesar de várias Leis Básicas terem sido aprovadas ao longo dos anos tratando de arranjos institucionais, incluindo as legislações que regem o funcionamento da Knesset, do governo e do Judiciário, alguns temas institucionais críticos nunca foram abordados; nem direitos cruciais, como liberdade de expressão. Além disso, uma das principais lacunas institucionais é até hoje não existirem processos rigorosos para adoção ou ratificação de Leis Básicas, que é a segunda razão que explica o fato delas jamais terem sido consideradas uma constituição de facto: sem a existência de tal processo, Leis Básicas podem ser aprovadas sem refletir o amplo consenso social que as constituições devem representar.

Um processo mais rigoroso de adoção de Leis Básicas deveria ter sido estabelecido por meio de uma Lei Básica das legislações, mas ainda que vários rascunhos tenham sido discutidos ao longo dos 75 anos recentes, nenhum texto foi aprovado em razão de desentendimentos a respeito do que o processo de adoção de Leis Básicas deveria implicar a respeito dos poderes que a Suprema Corte deveria possuir para derrubar legislações.

Portanto, quando a Knesset aprovou as leis de 1992, sua intenção era que elas fossem tratadas da mesma forma que as Leis Básicas anteriores: como parte de uma futura constituição, não como a constituição existente. A Knesset não suspeitar que estava aprovando uma constituição de facto evidencia-se não apenas pelo conteúdo de seus debates — o presidente da comissão parlamentar que preparou as leis de 1992 disse explicitamente aos seus colegas na Knesset que elas não confeririam poder à Suprema Corte para anular outras leis — mas pelo fato de mais da metade de seus legisladores não ter aparecido para votar. Quando legisladores entendem que uma votação é importante, todos comparecem à Casa. Mas a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade foi aprovada por 32 votos a favor e 21 contra; e a Lei Básica: Liberdade de Ocupação foi aprovada por 23 a zero. Em outras palavras, ambas as legislações foram aprovadas por cerca de um quatro ou menos da legislatura de 120 assentos.

O resultado é que Israel se tornou a única democracia moderna a ter uma “constituição” aprovada por uma proporção tão diminuta da legislatura de seu país e por meio de um processo “quase clandestino”, conforme Barak escreveu famosamente. Precisamente em razão de constituições deverem refletir um amplo consenso social, elas devem ser aprovadas por amplas maiorias em processos nos quais todos os envolvidos saibam o que estão fazendo.

Ainda mais, desde 1995, a Suprema Corte tem expandido constantemente sua constituição auto-outorgada adicionando direitos repetidamente à Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade, que a Knesset havia considerado explicitamente mas rejeitado. Um exemplo particularmente emblemático foi sua decisão dando conta de que o direito à “dignidade” inclui direitos econômicos como direito à seguridade social, concedendo-se o direito de aumentar pensões e benefícios.

Em 1992, quando a Knesset aprovou a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade, a legislatura também discutiu uma Lei Básica a respeito de direitos sociais como emprego e aposentadoria. Já que os legisladores debateram simultaneamente as legislações, eles certamente não consideraram que “direitos sociais” estavam incluídos em “dignidade”. E desde que a Casa rejeitou o projeto de lei de direitos sociais, da mesma forma que suas outras 14 versões anteriores, ela claramente não quis ver esses direitos garantidos precisamente para evitar que o tribunal superior fizesse o que fez: intrometer-se em uma das prerrogativas mais fundamentais do governo, o direito a decidir quanto gastar em diferentes prioridades orçamentárias. Mas a corte ignorou as visões explícitas da Knesset, afirmou que esses “direitos” são parte do direito à dignidade e posteriormente usou esse argumento para derrubar determinações do gabinete e da Knesset.

Publicidade

Acima de tudo, a Suprema Corte também afirmou repetidamente seu direito de derrubar Leis Básicas, apesar de nunca tê-lo feito. (O tribunal derrubou leis ordinárias, em parte ou totalmente, em 22 ocasiões.) Dada sua própria alegação de que as Leis Básicas são a constituição de Israel, isso significa que a Suprema Corte tem afirmado o direito de derrubar a própria constituição. Apesar disto não ser inédito globalmente — o Judiciário indiano já derrubou emendas constitucionais — trata-se de algo virtualmente sem paralelo no Ocidente democrático.

Reservistas militares israelenses cantam juntos após assinar uma promessa de suspender o serviço voluntário se o governo aprovar a reforma do Judiciário  Foto: Amir Cohen/Reuters

Precisamente em razão de constituições deverem refletir amplos consensos sociais a respeito das regras básicas do processo democrático, todas as democracias as adotam e ratificam por meio de algum dispositivo democrático (a própria legislatura ou uma assembleia constituinte); o papel do Judiciário é intencionalmente limitado a interpretar a constituição e determinar como ela se aplica em casos concretos. Mas ao afirmar o direito de derrubar Leis Básicas, a Suprema Corte de Israel reivindica poder não apenas para interpretar a constituição, mas também de efetivamente redigi-la.

Adicionando ultraje à injúria, a Suprema Corte israelense é capaz de derrubar leis com muito mais facilidade do que tribunais superiores de outras democracias. Na maioria das democracias, somente uma maioria do plenário da corte tem capacidade para derrubar leis, porque decisões de representantes eleitos pelo povo não podem ser revertidas facilmente. Em Israel, qualquer quórum a partir de 3 dos 15 ministros pode decidir sobre esses casos, o que significa que leis, a princípio, podem ser derrubadas por 2 votos a 1. Na prática, porém, conformações de três magistrados são raras nesse tipo de caso.

Mas esses casos também nunca são julgados pelo plenário da corte, com frequência costumam ser considerados por menos da metade dos ministros. O quórum tem variado de 5 a (numa única ocasião) 13. De fato, um painel de cinco ministros tomou a decisão seminal de 1995 na qual a Suprema Corte derrubou uma lei pela primeira vez. Portanto, leis podem ser e são derrubadas por até mesmo um quinto do tribunal — três membros de um painel de cinco ministros. Além disso, já que os casos nunca são julgados pelo plenário da corte, o presidente do tribunal tem capacidade de efetivamente determinar o desfecho de qualquer caso escolhendo qual ministro presidirá que julgamento. Normalmente, presidentes da Suprema Corte israelense deixam os casos serem distribuídos aleatoriamente. Mas em julgamentos de maior importância — como costumam ser os que envolvem políticas do governo ou legislações — os presidentes do tribunal com frequência optam por eles mesmos presidirem os julgamentos.

O elemento final da revolução judicial foi singular no sentido de que aumentou o poder não das cortes, mas dos advogados do próprio governo — o procurador-geral e outros conselheiros jurídicos. Como os próprios termos implicam tanto em inglês quanto em hebraico — a expressão que define procurador-geral em hebraico é “conselheiro jurídico do governo” — procuradores-gerais e outros conselheiros jurídicos eram originalmente, bem, advogados e conselheiros.

Sua função era aconselhar o governo como um todo e assessorar os ministérios individualmente a respeito de como definir políticas dentro dos limites da lei, o que obviamente inclui lhes dizer quando uma determinada política viola a lei. Mas já que com frequência há mais de uma maneira de interpretar a lei, ninguém durante as primeiras décadas do Estado de Israel teria sonhado em afirmar que a opinião de um conselheiro jurídico deveria ser tomada como palavra final. Tratava-se apenas de aconselhamento, e um ministro do governo que discordasse da interpretação se seu conselheiro podia aplicar sua política e deixá-la ser testada na Justiça.

Encontro entre Joe Biden (esquerda), então vice-presidente dos EUA, e o primeiro-ministro israelense, Binyamin Netanyahu, em Jerusalém Foto: Debbie Hill/Reuters

Isso começou a mudar em 1968, quando o então procurador-geral, Meir Shamgar, numa nova interpretação de sua própria posição, declarou sua função não consultiva, mas “de natureza judicial”. (Para uma explicação mais completa dessa decisão de da evolução da função do procurador-geral, clique aqui.) Em outras palavras, ele não era mais advogado do governo, mas um juiz que determina a legalidade de suas decisões. Mas apenas em 1993 esse poder se tornou absoluto, quando Shamgar e Barak, então presidente e vice-presidente da Suprema Corte, respectivamente, determinaram que a decisão de um procurador-geral sobre o governo é vinculante. Isso transformou o governo de Israel no único ente no país privado do direito básico de acorrer à Justiça; desafiar a decisão de um procurador-geral na Suprema Corte não teria sentido, porque o tribunal, tendo declarado a autoridade do procurador-geral vinculante, a sustentaria automaticamente.

Publicidade

Principalmente, qualquer governo que tentasse isso seria privado do direito básico à representação legal, já que, segundo o entendimento da corte, um procurador-geral poderia não apenas se recusar a representar a posição do governo, mas até impedi-lo de contratar um advogado que o representasse. Como se não a coisa já não fosse absurda o suficiente, o governo também tem capacidade limitada de nomear ou demitir procuradores-gerais. Procuradores-gerais cumprem mandatos fixos de seis anos (o mandato de um governo é de quatro anos ou menos), e candidatos à posição precisam de aprovação de uma comissão de cinco membros dominada pelo establishment legal (com três membros escolhidos, pelo presidente da Suprema Corte, pela Ordem dos Advogados e por reitores de faculdades de direito do país; o gabinete e a Knesset escolhem os outros dois). Tanto o governo quanto membros da comissão podem indicar nomes, mas a comissão tem capacidade de forçar o governo a escolher um dos indicados por seus membros vetando todos os seus candidatos — o que de fato já aconteceu.

Evidentemente, já que os conselheiros jurídicos ministeriais são servidores públicos que respondem à Procuradoria-Geral em vez de aos ministérios, essa mudança no status do procurador-geral também os afetou. Se as decisões do procurador-geral obrigam cumprimento por parte do governo, então, por inferência, conselheiros jurídicos ministeriais possuem a mesma autoridade vinculante sobre os ministérios em que atuam porque são representantes do procurador-geral nesses ministérios. E já que os conselheiros jurídicos são servidores públicos que não são escolhidos pelo ministro, eles costumam ter visões de mundo bem diferentes dos titulares das pastas, o que leva os conselheiros a vetar políticas que outros especialistas em direito com perspectivas diferentes poderiam apoiar. Isso estrangula o governo de uma forma que parece absurda para quem olha de fora.

Em razão da revolução judicial ter conferido à Suprema Corte tamanho poder sobre as políticas do governo, ela também tornou altamente controvertida uma instituição anteriormente incontroversa, a Comissão de Nomeações Judiciais. A comissão possui nove membros — o ministro da Justiça e outro ministro indicado pelo gabinete; dois legisladores escolhidos pela Knesset, normalmente, mas nem sempre, um integrante da coalizão e outro da oposição; dois advogados escolhidos pela Ordem dos Advogados de Israel; e três ministros da Suprema Corte em exercício da função escolhidos pelo presidente do tribunal superior. Uma maioria simples do painel tem capacidade de nomear juízes ordinários, e sete votos são necessários para nomear um ministro da Suprema Corte; o que significa que tanto ministros do tribunal superior em exercício da função quanto a coalizão de governo têm poder de veto.

Na prática, contudo, os ministros da Suprema Corte comandam uma maioria absoluta, porque os representantes da Ordem dos Advogados quase sempre se alinham com os magistrados. O sistema Judiciário de Israel tem apenas três instâncias — primeira, distrital e superior — e um direito inalienável a apelações. Consequentemente, qualquer caso que comece nos tribunais distritais acaba subindo para a Suprema Corte, o que significa que qualquer advogado de estatura suficiente para compor a comissão aparece regularmente diante da Suprema Corte e, portanto, hesitaria em se antagonizar com seus ministros. De modo que, longe de ser “equilibrada”, a comissão é pesadamente enviesada para um lado — qualquer lado que os ministros da Suprema Corte favoreçam; no caso, o progressista. Quando uma coalizão progressista está no governo, pode se aliar aos ministros da Suprema Corte e aos advogados e indicar magistrados progressistas. Mas quando um governo conservador está no poder, os ministros da Suprema Corte normalmente vetam seus candidatos conservadores, então, exceto em raras ocasiões, na melhor das hipóteses, seus indicados são moderados.

Quando esta Suprema Corte julga rotineiramente casos que envolvem grandes controvérsias ideológicas e políticas, o sistema torna-se problemático por várias razões.

Virtualmente nenhuma outra democracia permite que ministros da Suprema Corte no exercício da função se envolvam na escolha de seus próprios sucessores, muito menos lhe conferem poder de veto sobre a escolha colegiada, e por um bom motivo. Conceder poder de veto aos magistrados cria rapidamente uma Suprema Corte sem quase nenhuma diversidade ideológica, porque ministros de tribunais superiores, como qualquer ser humano, preferirão naturalmente indivíduos que compartilhem de suas visões de mundo em detrimento dos que se opõem às suas posições — e, no caso de Israel, isso significou a predominância de uma visão de mundo progressista-ativista. Se você é progressista, imagine uma situação na qual a atual maioria na Suprema Corte dos EUA fosse capaz de garantir a nomeação de ministros que compartilhem de sua ideologia vetando perpetuamente qualquer postulante progressista que um presidente democrata indicasse. Quanto tempo levaria até que todos os progressistas desacreditassem e desprezassem o tribunal? Se você é conservador, tente o mesmo experimento com ultraesquerdistas na mente. De qualquer maneira, acabaríamos com uma Suprema Corte desacreditada e desprezada por metade do país — e não importa qual seja essa metade — que é exatamente o que ocorre em Israel neste momento. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Leia a segunda parte do artigo neste link.

Publicidade

Leia a terceira parte do artigo neste link.

* Evelyn Gordon é comentarista e ex-repórter de assuntos jurídicos, imigrou a Israel em 1987. Além de escrever no Mosaic, publicou no jornal Jerusalem Post, nas plataformas Azure, Commentary e em outros meios. O endereço de seu blog é evelyncgordon.com.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.