Regimes autoritários fazem aposta de risco em ‘cidades do futuro’, como a da Arábia Saudita

Baixo conhecimento tecnológico de governos e busca por projeção política faz projetos de novas cidades explodirem em duas décadas, mas raramente são concluídos e possuem alto risco

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Foto do author Carolina Marins
Atualização:

Uma cidade com dois arranha-céus espelhados no meio do deserto, com trabalhadores robôs e onde tudo está a cinco minutos a pé de distância. Esse foi o projeto apresentado pelo príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed Bin Salman, há algumas semanas para a sua cidade futurística Neom. A ideia, no entanto, está longe de ser inovadora. É comum principalmente entre regimes autoritários e países pobres da África e Ásia, onde só nos últimos vinte anos mais de 150 projetos semelhantes já surgiram em mais de 40 países, com raros casos de sucesso.

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Desde meados dos anos 1990, governos apresentaram projetos semelhantes ao de Bin Salman, com propostas de cidades inteligentes, tecnológicas, ecológicas, inclusivas e sustentáveis. A ideia é criar do zero uma cidade futurística, superando os velhos problemas das metrópoles tradicionais, como superpopulação, moradias inadequadas e, mais recentemente, desastres ambientais causados pelas mudanças climáticas.

Essa explosão de “novas Dubais” e “novos Vales do Silício” é comum em países com um perfil similar ao da Arábia Saudita. Nações minúsculas como o Kuwait chegam a ter quase 10 projetos dentro do próprio território. Mas a campeã nesses projetos é a China, que financia planos não só dentro de seu território, quanto em outros países como Indonésia, Casaquistão, e outros.

Imagem dos dois arranha-céus chamados A Linha que devem ser o centro da cidade futurística de Neom Foto: NEOM/AFP

“O público e os governos são muito suscetíveis à ideia de começar uma cidade do zero e construir algo novo que resolva todos os nossos problemas”, explica Sarah Moser, professora no Departamento de Geografia da Universidade McGill e chefe do laboratório New Cities que está mapeando o surgimento dessas cidades desde os anos 2000. “É uma ideia muito sedutora quando alguém apresenta uma bela cidade utópica construída do zero”.

Seu mapeamento vai desde projetos de enormes distritos construídos para serem conjuntos habitacionais como Cidade do Povo no Acre, até megaprojetos como Masdar, nos Emirados Árabes Unidos. “As pessoas ficam muito empolgadas com isso, mas não são especialistas e não sabem quais são as consequências ou quais são os riscos. Estes são projetos de muito alto risco”, enfatiza.

Exemplos de ‘sucesso’

Uma megacidade do futuro pode ter diferentes objetivos. No caso de Neom, a intenção é reduzir a dependência da economia saudita ao petróleo. Songdo, na Coreia do Sul, foi construída para ser um hub de negócios internacional e uma cidade “onipresente”, e é o primeiro exemplo considerado de sucesso em parte do que se propõe. Outro nome famoso é Khorgos (ou Horgos), da China, que se propõe a ser um porto seco e uma zona econômica especial.

“Estilo de vida confortável. Conveniência. Educação de qualidade. Arquitetura diferenciada. A próspera comunidade verde de Songdo oferece tudo isso. Os moradores da cidade encontram tudo o que precisam. Trabalho, casa, escola e lazer estão sempre a apenas 15 minutos a pé”, diz a campanha de divulgação no site oficial da cidade de Songdo.

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Já Khorgos, localizada na fronteira com o Casaquistão, faz parte de um imenso projeto chinês da Nova Rota da Seda para conectar Oriente e Ocidente a fim de escoar produtos com muito mais fluidez. “Khorgos é um projeto emblemático deste trabalho em andamento, um centro de transporte marítimo internacional e zona de livre comércio que seus promotores dizem estar prestes a se tornar a próxima Dubai”, escreveu o The New York Times ao fazer um perfil da cidade em 2019.

Mas há um problema: ninguém quer morar nessas cidades. Songdo abriga um terço do que planejou e sua meta de inauguração já foi adiada de 2020 para 2022 e ainda não está concluída. “As pessoas querem viver em Seul, porque é onde está a cultura, a vida noturna, suas famílias”, afirma Moser. “Quem se mudou para Songdo foi sem muita vontade. É uma cidade muito pequena, muito parada. E está profundamente atrasada”.

O mesmo fenômeno acontece em Sejong, também na Coreia do Sul e em Ordos Kangbashi, na China, conhecida como “a maior cidade fantasma do mundo”, construída para ter 1 milhão de habitantes e tem 150 mil.

“E Neom promete abrigar nove milhões de pessoas. Eu não consigo encontrar uma única pessoa que gostaria de morar lá”, afirma Moser. “Todo mundo com quem falei nas últimas semanas me disse que odiaria morar lá. Dizem que seria como morar em um shopping center em que você nunca estivesse realmente do lado de fora. Se Bin Salman conseguir encontrar nove milhões de pessoas para morar lá, eu vou ficar bem surpresa”.

Febre de projetos inacabados

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Moser explica que a criação de novas cidades, mais modernas e inovadoras, é algo antigo da humanidade. Mas nunca se viu uma explosão tão grande de projetos ao mesmo tempo como dos anos de 1990 pra cá e novamente após a crise de 2008, todos localizados no “sul global”, uma onda impulsionada principalmente por busca de investimento estrangeiro e empresas de tecnologia.

Neom não é o único projeto da Arábia Saudita, há cerca de cinco no reino inclusive o megaprojeto King Abdullah Economic City. A Indonésia tem mais de 10, a Tanzânia tem 11 e o Marrocos passa das duas dezenas de projetos. “Empresas privadas da Rússia, Coreia do Sul, China e outras estão envolvidas na construção de novas cidades na América Latina, África e Golfo”, aponta o relatório produzido pelo laboratório de Moser em 2020.

“Promotores imobiliários estão procurando novos mercados o tempo todo e definitivamente estão lucrando com esses projetos, a indústria da construção também e as empresas de tecnologia estão tentando lucrar com este logo de ‘smart cities’ que foi associado com tecnologia, o que não é necessariamente verdade”, aponta Moser.

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O resultado é uma série de projetos não executados ou inacabados com custos elevados para os Estados. Um caso próximo é a Ciudad del Conocimiento Yachay, no Equador, planejada para ser “o Vale do Silício dos Andes”, que começou com uma universidade inspirada no MIT americano onde estudantes poderiam viver com direito a creches e serviços no campus. Em seis anos, o projeto recebeu um investimento de US$ 600 milhões em recursos públicos, e abriga somente mil estudantes, segundo relatório da Assembleia Nacional do país.

O Estado equatoriano foi o maior investidor do projeto, que contou com a participação de duas empresas estatais chinesas. “Capital chinês está circulando globalmente e estão construindo cidades por toda parte. Por exemplo, no Sri Lanka, na Malásia, em Mianmar, em Omã, muitos lugares que são geopoliticamente estratégicos para seus interesses nacionais”, pontua a professora.

Ciudad del Conocimiento Yachay foi projetada para ser um polo científico no Equador Foto: Divulgação/Presidência do Equador

Autoritarismo e exclusão

O fato de todos esses novos projetos estar localizado no chamado sul global não é por acaso. É onde concentra os países com menores rendas e, portanto, os maiores problemas envolvendo suas cidades atuais. Nessas condições, a ideia de fazer novos locais de moradias e centros econômicos parece sedutora, ainda que o custo seja alto para os governos. E também porque é nesta região geográfica que está a maior concentração de governos autoritários.

“Se esses projetos surgissem no Canadá, por exemplo, haveria protestos e os políticos iam perder as suas carreiras. Porque é uma democracia e os cidadãos comuns são capazes de pesar essas decisões que são custosas. É por isso que muitas dessas novas cidades estão surgindo em um contexto autoritário onde os cidadãos não têm conhecimento sobre o que está acontecendo e não há nenhum tipo de processo de participação pública”, pontua.

Neom faz parte de um projeto muito maior do príncipe herdeiro saudita, o Vision 2030, que busca superar a imagem de autoritarismo e violação de direitos humanos que seu governo tem, por meio da modernidade. “Seu principal problema é que todos o odeiam porque ele assassinou aquele jornalista e ele é uma espécie de tirano, então, se anunciar este novo projeto faz com que as pessoas falem sobre algo além do fato de que ele mata jornalistas, isso responde ao problema dele”, afirma Moser.

Além de não resolver os problemas econômicos e sociais dos países, essas megacidades acabam acentuando outro problema: a exclusão social. O continente africano concentra mais de 70 projetos que prometem ser para “pessoas de baixa renda morarem”, mas os preços da moradia tornam a promessa inviável. “Há um no Quênia em que as casas custavam US$ 200.000 e um salário da classe média no Quênia é de cerca de US$ 20 por dia. Então a hipoteca seria de 500 anos. É impossível para qualquer um pagar isso. Eles estão basicamente mentindo e deturpando o projeto para evitar críticas.”