Desde a derrota do nazismo, a Alemanha devotou-se autoconscientemente a promover “paz” e integrar-se a uma ordem de segurança europeia e transatlântica cujo lema tem sido o consenso. Agora, a guerra da Rússia na Ucrânia está forçando Berlim a repensar ideias presentes há décadas a respeito de seu lugar na Europa, sua relação com a Rússia e o uso de força militar.
A Alemanha construiu sua economia no pós-2.ª Guerra com base na energia barata dos russos e em um supostamente apolítico comércio com a Europa Central e do Leste, a União Soviética e a China, acreditando que comércio produz mudança, moderando, de alguma maneira, regimes autoritários.
A invasão russa à Ucrânia contrariou isso tudo, foi um choque tanto psicológico quanto político para a Alemanha, solapando muitas de suas percepções a respeito da Rússia, seu presidente, Vladimir Putin, e o papel da Alemanha em uma Europa subitamente em guerra.
Em nenhum outro aspecto a desorientação da Alemanha está mais aparente do que em sua relutância, neste momento, em enviar para a Ucrânia seu principal — e excelente — tanque de batalha, o Leopard 2, e permitir que outros países o façam. Essa posição tem arriscado isolar a Alemanha em relação aos seus exasperados aliados. Mais importante, afirmam os ucranianos, a hesitação alemã ameaça a capacidade da Ucrânia de resistir ou reagir à ofensiva russa prevista para a primavera.
Ainda que os alemães apoiem esmagadoramente a Ucrânia em sua luta, a hesitação em enviar os tanques reflete uma profunda ambiguidade em uma nação com uma história catastrófica de agressão durante a 2.ª Guerra e que permanece profundamente dividida a respeito de atuar como líder militar e arriscar um confronto direto com a Rússia. Pesquisas de opinião mostram que metade dos alemães não quer que seu governo envie os tanques.
“Esta relutância alemã pode ser resumida em uma palavra: ‘história’”, afirmou Steven Sokol, presidente do Conselho Americano para a Alemanha.
“Os alemães querem ser vistos como parceiros, não agressores, e possuem uma sensibilidade particular em relação a mandar armas para regiões em que armas alemãs foram usadas na história para matar milhões de pessoas”, afirmou ele, citando Rússia, Polônia e Ucrânia. “Eles não querem armas alemãs nas linhas de frente sendo usadas para matar pessoas nessas regiões.”
Mas os alemães arriscam interpretar mal as lições de sua história, afirmou Timothy Garton Ash, historiador especialista em Alemanha e Europa, da St. Antony’s College, de Oxford. “A posição alemã está profundamente confundida, com o antigo pensamento morto e o novo ainda não nascido”, afirmou ele.
De fato, apesar da declaração do chanceler Olaf Scholz no início do ano passado de um “Zeitenwende”, ou ponto de virada histórica, para a Alemanha, seu governo e seu país têm tido dificuldades para seguir adiante com o fortalecimento de suas corporações militares. Ainda que a guerra na Ucrânia tenha ocasionado um debate sério na democracia alemã, esse processo não acabou, afirmou Garton Ash.
Para Entender
O resultado tem sido o que críticos do chanceler consideram uma liderança demasiadamente vacilante de Scholz neste momento de crise. A confusão está especialmente pronunciada dentro do Partido Social-Democrata, de Scholz, de centro-esquerda e que lidera o atual governo, afirmou Boris Ruge, um dos vice-presidentes da Conferência de Segurança de Munique.
Mas a política também está no jogo. Tanto os social-democratas quanto os verdes, integrantes mais majoritários da coalizão de governo, possuem fortes alas pacifistas que líderes partidários, como Scholz, não podem ignorar.
“Scholz também tem de pensar em política doméstica”, afirmou Ruge. “Em assuntos de estratégia e política, muitos social-democratas são pacifistas intransigentes, e ele deve levá-los em conta.”
Em certa medida, Scholz lidera uma coalizão de cinco partidos, não três, se contarmos as alas pacifistas dos verdes e dos social-democratas. E os social-democratas possuem muitos eleitores na região da ex-Alemanha Oriental, que tem sido mais simpática a Moscou.
Há também a preocupação — e não apenas entre os alemães — de que escalar a guerra com os tanques ocidentais apenas aumente a matança, sem alterar fundamentalmente o curso da guerra.
Eleitores alemães querem que seus líderes sempre “pressionem pela chamada opção da paz, sejam os últimos a se movimentar ou se movimentem em coalizão”, afirmou Thomas Kleine-Brockhoff, do German Marshall Fund, em Berlim. “Isso mostra que você não é belicista, não está avançando com uma agenda militar.”
O padrão claro para Scholz é se movimentar vagarosamente, tentando trazer o apoio de seus eleitores (apesar da insistência de seus aliados na Otan), e finalmente concordar em enviar os tanques uma vez que convença o público alemão de que isso na verdade fará a paz se aproximar, por pressionar Putin a negociar.
A estratégia é uma tentativa tanto de respeitar quanto de contornar a memória histórica, num país em que muitos dos nomes dos campos de batalha ucranianos são familiares para os mais velhos ou até para jovens que os escutaram nas bocas de seus pais.
“Por que conhecemos Azovstal?” perguntou Kleine-Brockhoff, referindo-se às enormes siderúrgicas em Mariupol que os russos atacaram por meses durante a guerra. “Quem foram os últimos a ocupar Azovstal? Os alemães”, afirmou ele.
“Todos que são mais velhos por aqui sabem o que são os campos da morte. Os nomes lhes são familiares. Mandar tanques para lá? Uau. Mandar obuses para lá? Bem, para muitas pessoas mais velhas, isso ainda é difícil”, afirmou ele. História importa: “Você pode contá-la do jeito que quiser, mas a memória existe”.
Essas memórias repletas de culpa são da guerra contra a União Soviética. Mas mesmo após a queda do Muro de Berlim, em 1989, alemães associavam sua culpa com a Rússia enquanto Estado sucessor, não com outras nações pós-soviéticas, como Ucrânia e Belarus, onde os nazistas mataram ainda mais gente, afirmou Claudia Major, do Instituto Alemão para Assuntos Internacionais e de Segurança. “Nós dizemos que fizemos tanto mal à União Soviética que não podemos fazer isso de novo, mas a igualamos à Rússia e esquecemos que a Ucrânia sofreu o pior.”
Os social-democratas de Scholz foram forjados pela “Ostpolitik” e seus esforços para normalizar relações com nações que foram ocupadas pela União Soviética na Europa Central e do Leste, que também se provaram muito lucrativos para a indústria alemã e garantiram toda aquela energia barata da Rússia. Grande parte do partido é orientada pela “convicção de que a paz não pode ser alcançada por meios militares”, declarou o próprio Scholz em um discurso no fim dos anos 80, segundo Garton Ash.
“Então é muito difícil para ele imaginar seu caminho em sua própria Zeitenwende e acreditar que, em certas circunstâncias, a guerra pode ser um mal menor e o caminho mais curto para uma paz duradoura na Ucrânia”, afirmou ele.
Dessa perspectiva, disse Garton Ash, “a Alemanha tem uma responsabilidade histórica singular para ajudar a defender uma Ucrânia livre e soberana e forjar uma resposta europeia maior para acabar com a criminosa guerra de terror de Putin”.
Jeffrey Herf, pesquisador de história alemã e europeia da Universidade de Maryland, afirmou que muitos alemães suprimiram a realidade de que os nazistas foram derrotados somente por força militar, não por envolvimento diplomático ou comercial. “Essas lições sobre pacificação e seus perigos são ultrapassadas no mundo político do qual Scholz emergiu”, afirmou ele.
Ao mesmo tempo, a relação de séculos da Alemanha com Moscou possui a característica de uma obsessão, afirmou Garton Ash, notando “uma fascinação com a Rússia, assim como um medo dela, o que criou uma cegueira para a Ucrânia e o medo paralelo de uma guerra nuclear”.
Esta é uma das principais explicações para o desejo de Scholz de enviar tanques apenas se os Estados Unidos também o fizerem, para que a Rússia não possa culpar Berlim. Ele quer evitar que uma decisão da Alemanha — de não apenas enviar os Leopards, mas também autorizar sua exportação — seja denunciada por uma Rússia armada com armas nucleares, uma Rússia com que muitos alemães querem manter relações decentes após esse conflito inevitavelmente terminar.
Scholz e seus assessores argumentam que a Alemanha já fez muito até aqui, quebrando seu próprio tabu sobre fornecer armas para um país em guerra enviando a terceira maior parcela de ajuda militar à Ucrânia.
Em entrevista, no mês passado, o chefe de gabinete de Scholz, Wolfgang Schmidt, afirmou que o chanceler percebeu seu papel em aliviar a transição para uma nova política externa entre uma população acostumada a décadas de pacifismo.
“Uma tradição duradoura de todos os partidos políticos — nada de armas em zonas de conflito, quem dirá em uma guerra — foi completamente alterada pelo chanceler Scholz e ainda assim recebeu amplo apoio do público”, afirmou Schmidt. “Nós sempre tentamos garantir que, com nossas ações, sejamos capazes de sustentá-los e não apenas pontualmente — mantendo nossa sociedade unida e o apoio do público.”
A opinião pública não parece estar mudando sob a pressão dos aliados e em função dos horrores da guerra, afirmou Thorsten Benner, diretor do Instituto de Políticas Públicas Globais, de Berlim, que estuda os social-democratas. “Se Scholz se dirigir ao público e afirmar que agora é o momento, acho que consegue seu apoio”, afirmou ele. “É possível mudar números de pesquisas. O nome disso é liderança.”
Políticos alemães favoráveis ao envio dos tanques afirmam que a resistência da Alemanha em “agir sozinha” agora arrisca isolar o país. Johann Wadephul, um dos vice-presidentes do partido de oposição União Democrata-Cristã, afirmou que o argumento de Scholz foi contrariado pela insistência de seus aliados. “Na verdade, ‘agir sozinha’ foi a recusa e inação da Alemanha”, afirmou ele.
O ex-general alemão Heinrich Brauss, atualmente analista do Conselho Alemão de Relações Exteriores, argumentou que é do interesse da Alemanha que a Rússia seja derrotada na Ucrânia porque os ucranianos lutam pela segurança da Europa. Se a relutância da Alemanha se transformar em recusa, alertou ele, isso seria desastroso para a reputação do país. “E reduzirá significativamente a confiança na Alemanha enquanto aliada na Otan.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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