ENVIADO ESPECIAL A DETROIT E GRAND RAPIDS, MICHIGAN - Assim que o ônibus que vinha de Cleveland, em Ohio, para Detroit, em Michigan, abre suas portas, um de seus passageiros salta para desembarcar. Depois de pegar as malas, ele comenta com a motorista que o trouxe até aqui. “Ah, Michigan. É bom estar de volta!” A motorista ri, achando que se trata de uma ironia. Afinal de contas, por décadas, Detroit definhou e se tornou um símbolo da decadência industrial do cinturão da ferrugem, nos Estados Unidos.
Agora, no entanto, graças a uma mistura de investimentos públicos e privados a cidade vive um tímido renascimento, que pode ser crucial para a vitória democrata em Michigan, um dos Estados-pêndulo das eleições de 5 de novembro que opõe a vice-presidente Kamala Harris ao ex-presidente Donald Trump.
Berço da indústria automobilística americana no início do século 20, da soul music da Motown nos anos 60 e de equipes esportivas icônicas, como o Detroit Pistons, na NBA, e o Detroit Lions, na NFL, a cidade foi perdendo moradores por causa falta de oportunidade econômica, a violência urbana e a má administração pública.
Tanto descaso rendeu a Detroit o apelido de cidade-fantasma. Casas abandonadas, prédios vazios e negócios falidos se tornaram comuns na paisagem urbana da metrópole. Entre 1970 e 2020, a cidade perdeu 862 mil habitantes, mais de metade da sua população.
Primavera de Detroit
Foram 57 anos seguidos de encolhimento. Até que ano passado, pela primeira vez, o principal centro econômico de Michigan viu sua população aumentar. Foi pouco, quase 2 mil pessoas, mas a novidade serviu para coroar a recuperação econômica da região, iniciada após a pandemia.
Nenhuma zona da cidade exprime melhor esse renascimento que a área de Riverside, na margem do Rio Detroit. Ali, um parque novo embeleza a orla e prédios que outrora serviam de armazéns e fábricas tentam se converter em novos escritórios e negócios.
“A economia de Michigan se recuperou da recessão provocada pela pandemia muito rapidamente e no geral vem crescendo bem nos últimos anos. E isso é importante porque costumamos dizer que sempre que a economia americana pega um resfriado nós pegamos uma gripe, então isso é positivo”, diz o economista Gabriel Ehrlich da Universidade de Michigan. “A taxa de desemprego está em 4,5%, o que é baixo para padrões históricos, apesar de haver alguns sinais preocupantes para os próximos meses.”
Ainda de acordo com o economista da Universidade de Michigan, essa melhora contribui para o aumento da população no Estado, sobretudo em Detroit. “No fim das contas, é difícil seguir morando numa cidade que não te dá emprego. O declínio da indústria automotiva é a principal razão para o encolhimento da população de Detroit”, afirma Ehrlich. " Mas a economia da cidade estabilizou e tem crescido nos últimos anos.”
Os setores que mais têm contratado, segundo o economista, são os de alimentação, logística e construção civil. “É correto dizer que isso tem sido possível graças ao aumento dos investimentos públicos e privados na região”, diz o Ehrlich.
Uma memória viva dos velhos tempos
Em meio a esse novo cenário, um pub resiste a tudo. O Andrews’ Corner ocupa a mesma esquina desde 1918, administrado pela mesma família de imigrantes que vieram da Grécia. Tom Andrews, o dono, conta que o prédio na verdade é do século 19, e servia à época de taverna para os estivadores que trabalhavam no porto fluvial. Sua família o comprou, e, desde então, o negócio passa de geração para geração.
Os principais clientes no começo do século passado eram funcionários da farmacêutica Parke-Davis, que ficava no prédio em frente. À época, o distrito tinha se tornado uma zona boêmia, com clubes de jazz e pubs pela orla do rio. Com o tempo, o bar se tornou um ponto de encontro de fãs de esporte, principalmente de hóquei no gelo.
O bar fica num prédio de tijolos antigo, com uma decoração típica dos anos 20: mesas altas de madeira de lei, teto ornado com pequenos acabamentos em madeira e um balcão amplo com banquetas. Fotos históricas de Detroit nos últimos cem anos complementam a decoração.
Segundo Andrews, os anos em que Detroit esteve à beira do colapso foram difíceis, mas a situação agora está melhor. “Melhorou desde que o dono do Cleveland Cavaliers começou a colocar dinheiro na cidade”, conta.
Novos investimentos
Ele se refere aos mais de US$ 6 bi investidos por Dan Gilbert, que é nativo de Detroit, na revitalização da cidade desde 2010, quando ele mudou suas empresas para a cidade, em meio à crise econômica e demográfica.
De muitas maneiras, a decisão de Gilbert de levar seus negócios para Detroit, principalmente a Bedrock, sua empresa de construção civil, serviu de ponto de partida para a recuperação da cidade.
Mais recentemente, o governo do presidente Joe Biden também direcionou recursos federais e privados para Michigan, numa tentativa de revitalizar a economia do Estado, e principalmente, os empregos relacionados à indústria.
Os recursos fazem parte da agenda Investindo na América, lançada por Biden ainda no começo do mandato, com o objetivo de reconstruir a mão de obra industrial no cinturão da ferrugem e ao mesmo tempo deixar de depender da manufatura terceirizada por empresas americanas para a Ásia, sobretudo na China.
Segundo a Casa Branca, a iniciativa gerou US$ 12,3 bilhões em investimentos públicos em Michigan, especialmente em áreas como infraestrutura rodoviária, e energia limpa. O governo Biden também diz que o plano atraiu US$ 28 bilhões em investimento privado, principalmente na indústria automobilística, que agora tenta fazer a transição para os veículos elétricos.
Estadão nos EUA
Carros elétricos
Com isso, a Ford está construindo uma nova fábrica de carros elétricos em Marshall, nos arredores de Detroit, e a GM está fazendo outras quatro plantas no Estado. Uma fábrica de baterias elétricas também está sendo desenvolvida pela Fortescue, em Detroit.
Esses investimentos melhoraram o clima econômico na cidade e também no Estado. A taxa de desemprego em Michigan recuou desde a pandemia e chegou a 4,5% em setembro. Em 2010, esse número era de 14,7%. A taxa de casas sem inquilinos recuou de 14,1% em 2014 par 5% este ano. A renda anual per capita saltou de US$ 60 mil para US$ 71 mil em 2022.
Voto ‘blue collar’
Nos EUA, uma parte importante do eleitorado é chamado de ‘voto blue collar’. Ele é formado por trabalhadores sem formação universitária que trabalham no setor industrial e comercial. Em Michigan, sindicatos desses setores têm conseguido negociar acordos coletivos melhores e os preços aqui são menores que em outros estados, sobretudo nos setores de habitação, alimentação e energia.
Um dos principais sindicatos do país, o UFCW representa trabalhadores do setor alimentício, tanto na indústria quanto no comércio. Em Michigan, as lideranças sindicais dizem que houve uma melhora econômica para os seus afiliados, sobretudo trabalhadores sem formação universitária, que nas últimas duas eleições, foram o foco do republicano Donald Trump.
“Nossos 32 mil afiliados tem testemunhado uma melhora econômica aqui em Michigan e nós temos conseguido melhorar os salários por meio de acordos coletivos melhores”, disse ao Estadão o presidente da UFCW em Michigan John Cakmakci.
O sindicato, cuja a sede fica em Grand Rapids, no oeste do Estado, endossou Kamala Harris na eleição presidencial. O principal sindicato da indústria automobilística em Michigan, o UAW, também apoiou a vice-presidente.
Uma cidade negra
Grande parte da mão de obra em Detroit é de afro-americanos, que compõem 77% da população da cidade.
A cidade está melhorando e a revitalização está trazendo mais gente para o centro, mas queremos ver isso ocorrer em todas as áreas da cidade, porque isso significa mais crescimento e mais empregos para todos”, diz Khalil Thompson, da ONG Win With Black Men, dedicada a mobilizar eleitores negros em Detroit. “E acredito que para que isso ocorra nossa melhor opção é a vice-presidente Kamala Harris.”
Segundo a média de pesquisas do NYT, Kamala tem 49% da preferência do eleitor em Michigan, contra 48% de Trump.
Apesar do clima de otimismo econômico, no entanto, nem tudos são flores. Os prédios fantasmas ainda ocupam boa parte do centro da cidade e convivem com novos negócios abrindo. Alguns já se preparam para serem reformados e alugados para novos moradores. Outros, seguem fechados pelo Departamento de habitação da cidade.
Críticos do projeto de revitalização dizem que ele se concentrou no centro de Detroit e áreas mais afastadas ainda não se beneficiaram das mudanças.
As recentes altas nos juros da economia americana impostas pelo Fed para controlar a inflação também prejudicam duas indústrias essenciais em Michigan: a construção civil e a automobilística.
“Michigan ainda tem uma indústria pesada muito relevante na economia. Quando os juros aumentam para controlar a inflação, as indústria automobilística e da construção civil sofrem muito com isso”, diz Ehrlich. “Mas a notícia boa é que dessa vez o aumento dos juros não atrapalhou tanto porque a economia de Michigan está ficando mais diversificada.”
Outro problema é que, apesar dos investimentos do governo Biden, e das promessas de Trump, os empregos industriais que foram embora com a industrialização não vão voltar para os EUA. Pelo menos não na forma que eles estavam disponíveis durante a era de ouro do capitalismo do país, durante o período da Guerra Fria.
“Aqui em Michigan e nos EUA de modo geral ocorre um fenômeno que chamamos de polarização dos empregos. As vagas industriais antigas, que pagavam salários intermediários para a classe média não existem mais. Hoje, o que existem são empregos que pagam muito bem, para pessoas com formação universitária, ou que pagam mal, para o trabalhador ‘blue collar’. É muito difícil hoje encontrar um salário industrial que banque uma vida de classe média, resume o economista.
Ressentimento contra as mudanças
Tom Andrews, o dono do bar na orla, revela um certo ressentimento com a revitalização de Detroit, “Eles dão milhares de benefícios para quem quer trazer seu negócio, mas só sabem cobrar mais e mais (impostos) de quem está aqui há tempos”, diz.
Questionado sobre em quem vai votar, diz rejeitar ambos os candidatos. “Eu odeio os dois. Eles só sabem gastar dinheiro com anúncios na TV. Queria muito que houvesse candidatos diferentes”, afirma.
Segundo analistas, no geral, o cenário político em Michigan é favorável para Kamala, por unificar uma força regional do Partido Democrata, que controla as duas casas do Parlamento estadual e o Executivo, com uma das estrelas em ascensão da legenda, a governadora Gretchen Whitmer.
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