THE NEW YORK TIMES, WASHINGTON - O teto da dívida pode ser o elemento mais sem sentido da lei americana. O Congresso dos Estados Unidos decide gastar dinheiro e depois agenda uma votação em separado para decidir se o governo vai pagar suas dívidas. Se o governo não o fizer, a calamidade se instala.
A Moody’s Analytics estima que mesmo uma ruptura breve do teto da dívida pode provocar uma recessão. Uma análise feita pelo Conselho de Assessores Econômicos da Casa Branca modelou uma moratória mais prolongada e previu um crash comparável à crise financeira de 2008. As bolsas caem 45%, o desemprego sobe em cinco pontos percentuais e os custos de empréstimos de longo prazo dos EUA ficam muito, muito mais altos. Tudo isso para pagar dinheiro que já estamos devendo e que podemos emprestar sem dificuldade. É uma insensatez.
Os defensores do teto da dívida lhe dirão que o limite está presente há muito tempo e que de maneira geral tem tido efeito benéfico. Os EUA nunca deixaram de pagar suas dívidas, mas o teto da dívida muitas vezes já levou os dois partidos a chegarem a um acordo. Pode ser verdade, mas é um pouco como dizer que, como Washington ganhou todas as roletas russas que já jogou até agora, deveria continuar a jogar.
Assim, eu entendo –e compartilho— o interesse por maneiras de invalidar o teto da dívida. Os democratas deveriam haver eliminado o teto da dívida quando estavam no controle do Congresso e da Casa Branca, em 2021 e 2022. Mas não o fizeram. Agora duas táticas mais anticonvencionais estão se mostrando especialmente populares na imaginação progressista.
Em uma delas, Joe Biden simplesmente declara o teto da dívida anticonstitucional, apontando para a 14ª Emenda, que reza que “a validade da dívida pública dos EUA [...] não será questionada”.
Cinco senadores democratas, incluindo Bernie Sanders, independente do Vermont, e Elizabeth Warren, do Massachusetts, estão circulando uma carta pedindo que o presidente faça exatamente isso. Na sexta-feira (19), 66 democratas do Congresso enviaram carta a Biden apresentando um argumento semelhante.
Na outra tática, o Departamento do Tesouro utiliza uma brecha em uma lei de 1997 para cunhar uma moeda de platina de qualquer valor que escolher –um trilhão de dólares, digamos--, e usa o dinheiro novo para continuar a pagar as dívidas do governo.
Para entender
Após reunião com o presidente da Câmara, o republicano Kevin McCarthy, da Califórnia, Biden disse que “considera” o argumento segundo o qual o teto da dívida é anticonstitucional. O problema, prosseguiu, é que “ele teria que ser litigado”. Esse é o problema de todas as ideias, e por isso mesmo, no fim das contas, é pouco provável que Biden ou qualquer democrata tente colocá-las em prática.
A legalidade do teto da dívida ou de uma moeda de platina de US$ 1 trilhão não depende de como os progressistas interpretam a Constituição ou a lei da cunhagem. Depende de como três conservadores as interpretarão: John Roberts, Brett Kavanaugh e Neil Gorsuch, que são o que a Suprema Corte agora tem que mais se aproxima de juízes cujos posicionamentos podem variar.
É muito fácil imaginar argumentos contrários que os juízes conservadores da Suprema Corte provavelmente achariam persuasivos. Michael McConnell, ex-juiz do 10º Tribunal do Circuito de Apelações, cargo para o qual foi nomeado pelo presidente George W. Bush, acaba de apresentar um deles.
“Se os EUA deixassem de pagar os juros ou a parte principal de sua dívida, isso seria financeiramente catastrófico, mas não afetaria a validade da dívida”, escreveu. “Quando devedores deixam de fazer pagamentos de dívidas contraídas legalmente, isso não coloca em questão a validade dessas dívidas; suas dívidas são tão válidas quanto eram antes. Os devedores estão inadimplentes, só isso.”
É igualmente fácil criticar a opção da moeda, se quisermos. Preston Byrne, sócio da firma de advocacia Brown Rudnick, observa que a Suprema Corte frequentemente já analisou estatutos para os quais uma leitura simples de uma lei limitada aparentemente daria poderes quase irrestritos ao Executivo. Em muitos dos casos a Corte rejeitou essas interpretações.
O que estou querendo dizer não é que as leituras mais conservadoras tenham razão em algum sentido absoluto. É que nenhum sentido absoluto como esse tem importância. Acabamos de ver esta Suprema Corte desprezar décadas de precedente para derrubar Roe vs Wade. Repetidas vezes ela já considerou casos que mesmo os juristas conservadores consideravam absurdos alguns anos atrás.
Ainda me recordo de Orin Kerr, professor de direito que trabalhou para o juiz da Suprema Corte Anthony Kennedy, me dizer no início do caso Obamacare que havia “menos de 1% de chance de que os tribunais invalidem a autoridade individual”, apenas para atualizar essa estimativa para “50% de chances” quando a Corte se preparou para anunciar sua decisão.
A Suprema Corte faz o que ela quer fazer. Ela quer deixar a administração Biden dissolver o teto da dívida usando uma teoria legal que não foi aplicada até agora? Se colocar a questão à prova não custasse nada, não haveria mal algum em tentar. Mas não acredito que não teria custo nenhum. A força da posição política da administração Biden é o fato de ela representar a normalidade.
O teto da dívida sempre foi elevado antes e precisa ser elevado agora. Mas se a administração declarar o teto da dívida anticonstitucional e então a Suprema Corte declarar a manobra anticonstitucional, então Biden será responsabilizado pelo caos conseguinte no mercado. Nesse cenário, em quem os eleitores colocariam a culpa? Os republicanos, que dizem que apenas queriam negociar o Orçamento, conforme a tradição? Ou Biden, que fez algo que nenhum outro presidente já fez e fracassou?
Neste momento as posições estão claras. A Casa Branca está aberta a negociações orçamentárias, mas se opõe a jogadas de risco envolvendo o teto da dívida. São os republicanos que estão ameaçando com um calote se suas exigências não forem atendidas. Eles estão puxando o pino de sua granada, em plena vista do povo americano. Biden deveria pensar bem antes de correr o risco de agarrar a granada das mãos deles e segurá-la ele próprio.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.