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Resposta do Kremlin a incursão em Kursk mostra como Putin gela durante uma crise

Incursão é a quarta afronta à autoridade russa desde o início da guerra na Ucrânia e sublinha fraquezas de autocracia despótica

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Por Robyn Dixon (The Washington Post)

Diante da crise, Vladimir Putin tende a gelar.

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A lenta e estabanada resposta militar da Rússia à ocupação surpresa por parte da Ucrânia de faixas da região de Kursk, no oeste russo, é o exemplo mais recente da incapacidade do chefe do Kremlin de reagir com as ações rápidas e decisivas propagadas por sua retórica beligerante.

A incursão em Kursk é a quarta grande afronta à autoridade de Putin desde o início de sua invasão à Ucrânia, em fevereiro de 2022, e sublinha as fraquezas de uma autocracia despótica que opera majoritariamente movida a temores e punições.

Imagem de satélite no dia 20 mostra incêndios próximos a região de Kursk, na Rússia Foto: Planet Labs Pbc/AP

Em cada caso — após a Rússia não conseguir derrubar o governo ucraniano no início da invasão, após o chefe mercenário do Grupo Wagner, Ievgeni Prigozhin, liderar uma rebelião contra o comando militar russo regular e após extremistas islâmicos atacarem a popular sala de espetáculos Crocus City Hall — a resposta do Kremlin tem sido aguardar, com Putin demorando 24 horas ou mais para tecer qualquer comentário público.

“O estilo é sempre o mesmo. Putin gosta de manter tudo em segredo. Quando aparece publicamente, ele não fala muito. Prefere não ser alarmista”, afirmou Tatiana Stanovaia, fundadora do grupo de análise R.Politik, sediado na França.

Graduadas autoridades, enquanto isso, com frequência marcaram seus fracassos para não arriscar desagradar o presidente. Imediatamente após o início do ataque ucraniano a Kursk, no começo deste mês, o general Valeri Gerasimov, chefe do Estado-Maior, que cuida pessoalmente do comando operacional da guerra na Ucrânia, insistiu — falsamente — que o ataque ucraniano tinha sido repelido.

Durante uma reunião entre autoridades de segurança televisionada na segunda-feira, Putin pareceu estar mais agitado que o normal conforme leu anotações escritas com caneta preta em um grosso bloco de notas. Ele também interrompeu rispidamente o governador em exercício de Kursk, Andrei Smirnov, quando ele ousou revelar abertamente a escala da incursão: 28 vilarejos capturados e pelo menos 2 mil russos desaparecidos em territórios tomados pela Ucrânia.

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“Mesmo assim, ele agiu como de costume, dizendo mais ou menos, ‘Resolvam logo isso’, e sem delinear nenhum comando significativo nem estratégia sobre como proceder”, afirmou o especialista em segurança russa Mark Galeotti, do Royal United Services Institute, em Londres. “Novamente, eis Putin em sua forma clássica: escondendo-se da crise.”

Putin ordenou que suas autoridades expulsem as forças ucranianas — depois seguiu com sua agenda de reuniões, incluindo encontros com governadores regionais e com o presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, nos dias seguintes, sem mencionar publicamente a crise. Na sexta-feira, Putin participou da reunião regular com seu Conselho de Segurança, para “discutir novas soluções técnicas” para a guerra na Ucrânia e depois anunciou planos de visitar o Azerbaijão como se não houvesse nada mais importante para resolver em Moscou.

“Assim Putin vai esperando que as outras pessoas façam todo o trabalho duro. E reivindicará o crédito sobre qualquer coisa que vá bem e culpará os outros por qualquer insucesso”, afirmou Galeotti.

Guerra força saída de civis na região de Donestk, em imagem do dia 21. Civis fugiram de áreas próximas ao front na Ucrânia Foto: Genya Savilov/AFP

Quatro dias depois de Putin ordenar que os militares russos expulsassem as forças ucranianas, ficou claro que um ataque considerado inicialmente um empecilho momentâneo — uma “provocação”, nas palavras de Putin — dava cada vez mais a parecer que demandaria semanas ou meses de dedicação das forças russas para ser repelido.

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“A ofensiva contra Kursk, nas últimas duas semanas, expôs a verdadeira natureza do regime de Putin: um sistema construído sobre mentiras, indiferença e autopreservação às custas das vidas e da segurança de seus cidadãos”, afirmou Mikhail Khodorkovski, magnata russo no exílio e opositor, que ficou 10 anos preso na Rússia, em um post publicado na sexta-feira pela rede social X.

Menos de duas semanas depois de iniciar a impressionante operação transfronteiriça, Kiev afirma ter ocupado cerca mil quilômetros quadrados e ordenado mais de 180 mil russos a deixar suas residências. A Ucrânia tem buscado expandir os combates para a região vizinha de Belgorod, mas o avanço ucraniano diminuiu de ritmo depois que a Rússia acionou reservas e incrementou sua resistência.

Gerasimov e o comandante das forças especiais Akhmat na região, Apti Alaudinov, têm declarado repetidamente que o avanço ucraniano foi impedido, e na sexta-feira o Ministério da Defesa afirmou ter aniquilado mais de 2,8 soldados ucranianos.

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Mas o contínuo desgaste à autoridade de Putin em meio a uma guerra catastrófica e os repetidos choques não se traduzem em nenhuma ameaça interna ao seu poder. E não há nenhum risco de seu regime cair no futuro próximo, segundo analistas

Mas os relatos do Ministério da Defesa são rejeitados e classificados como mentiras mesmo no lado russo, com blogueiros militares nacionalistas expressando indignação sobre as alegações da pasta e publicando seus próprios relatórios confirmando avanços ucranianos. A agência de jornalismo investigativo The Insider descobriu que imagens publicadas pelo Ministério da Defesa de supostos ataques russos contra ucranianos em Kursk eram falsas, oriundas de um vídeo gravado dentro da Ucrânia anteriormente neste verão (Hemisfério Norte).

Mas o contínuo desgaste à autoridade de Putin em meio a uma guerra catastrófica e os repetidos choques não se traduzem em nenhuma ameaça interna ao seu poder. E não há nenhum risco de seu regime cair no futuro próximo, segundo analistas.

Stanovaia afirmou que muitos russos, particularmente membros da elite, passaram a esperar o pior na guerra, mas perceberam que não existe alternativa a Putin no repressivo sistema político da Rússia.

“Eles estão tão acostumados a eventos chocantes, tão acostumados a viver situações imprevisíveis, que é muito difícil surpreendê-los. E também estão acostumados à sensação de impotência, de que não têm poder de mudar nada”, afirmou ela.

A crise, continuou Stanovaia, certamente minou a autoridade de Putin — mas não necessariamente seu controle sobre o regime.

Imagem do dia 23 mostra presidente russo Vladimir Putin com membros do Conselho de Segurança Foto: Aleksey Babushkin/AP

A incursão em Kursk humilhou os militares russos e comprova a resiliência da Ucrânia, mas não alterou a situação fundamental de uma longa e excruciante guerra de desgaste.

A Ucrânia sofre uma crescente pressão para negociar um acordo possivelmente cedendo território em troca da paz — após a fracassada contraofensiva do verão do ano passado, problemas de contingente, dúvidas sobre futuros fornecimentos de armas do Ocidente e temores de que, se virar presidente, Donald Trump forçará um acordo de paz favorável à Rússia.

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A Rússia tem castigado o leste da Ucrânia com bombas planadoras de até 3 toneladas, enquanto Kiev enfrenta dificuldades com envios de armas avançadas do Ocidente suficientes apenas para tentar manter suas posições, mas não para vencer. Enquanto isso, os ucranianos estão proibidos de usar armas ocidentais para atacar alvos profundos na Rússia.

Conforme algumas das forças ucranianas mais endurecidas pela guerra ganham terreno em Kursk, a Rússia avança sobre a cidade de Pokrovsk, em Donetsk, no leste ucraniano, em meio a relatos de que as forças de Kiev poderão ser forçadas a abandonar a localidade proximamente para evitar ficar cercadas.

A resposta de Putin à crise em Kursk tem sido descartar qualquer concessão mútua, na reunião da segunda-feira ele rechaçou o prospecto de negociações de paz com a Ucrânia.

Putin afirmou que o ataque de Kiev pareceu projetado para melhorar a posição ucraniana nas negociações, “Mas que tipo de negociação?”, escarneceu. “De que maneira nós conversaríamos com pessoas que atacam indiscriminadamente civis e estruturas civis e tentam criar ameaças à energia nuclear? O que nós temos para conversar com essa gente?”

Stanovaia afirmou que Putin não retrocedeu da posição maximalista que definiu sobre possíveis negociações de paz em junho, quando afirmou que a Ucrânia teria de ceder ainda mais território para a Rússia e desistir de aderir à Otan como condição para a paz.

“Quando falou anteriormente sobre uma proposta de paz da Rússia, ele deu um ultimato. Não foi uma proposta real. Os termos e condições dessas negociações são absolutamente inaceitáveis para a Ucrânia, e ele sabe disso”, afirmou Stanovaia. Agora, continuou ela, “será muito mais difícil para ele promover essa ideia de ultimato em prol da paz, porque nas atuais circunstâncias é impossível falar de paz”.

Sondagens do Levada Center, um instituto de pesquisas independente, publicadas em julho indicam que mesmo enquanto os meios de comunicação russos anunciam avanços de Moscou no leste da Ucrânia, 58% dos russos apoiam atualmente o fim da guerra, contra apenas 34% favoráveis à continuidade dos combates.

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O índice de russos favoráveis à guerra caiu 9 pontos porcentuais entre junho e julho, de 43% para 34%.

“São os índices mais baixos de apoio à opinião à necessidade do seguimento da ação militar ao longo de todo o período de observação”, afirmou o Levada Center em um comunicado sobre a pesquisa. Mulheres, jovens, pessoas a quem falta dinheiro para comprar comida suficiente e moradores de cidades pequenas e vilarejos tendem mais a apoiar o movimento por negociações de paz — cerca de dois terços em cada caso. Mas a maioria dos russos — 76% na pesquisa de junho do Levada Center — se opõe à Rússia abrir concessões para a Ucrânia em troca da paz.

Alguns comentaristas pró-Kremlin nos meios de comunicação estatais lamentaram nos últimos dias a propaganda de autoridades russas e outras partes reivindicando a supremacia russa sobre a Ucrânia, dada a chocante incursão em Kursk.

“Se esses disparates continuarem, nós poderemos perder”, disse à TV estatal Rossiya 1 o comentarista nacionalista Karen Shakhnazarov, que aparece regularmente em talk-shows de emissoras controladas pelo Estado falando sobre a guerra. “Não é derrotismo. Nem alarmismo. É apenas um entendimento absoluto sobre o preço que nós e nossa mãe-pátria teremos de pagar.”A Rússia precisa de um tranco, como a percepção da derrota enquanto possibilidade real, afirmou ele, “para a imagem do que nos acontecerá se perdermos se formar na nossa cabeça”. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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