Restrições anti-covid na China deixam chineses mais pobres e enfurecidos com governo

Moradores de metrópoles do país asiático relatam dificuldades financeiras após medidas de combate à pandemia

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Por Vivian Wang
Atualização:

Os becos estreitos do bairro de Haizhu há muito tempo atraem os esforçados da China, pessoas como Xie Pan, trabalhador têxtil originário de uma área montanhosa de cultivo de chá no centro da China.

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Um dos maiores mercados de tecidos do país, Haizhu abriga dormitórios de trabalhadores e fábricas têxteis em prédios amontoados, tão próximos que os vizinhos podem apertar as mãos pelas janelas.

Outrora um punhado de aldeias rurais, a área se tornou um centro industrial quando a China abriu sua economia, décadas atrás. O governo tinha prometido recuar e deixar as pessoas libertarem suas ambições, e milhões buscaram Haizhu para fazer exatamente isso.

Chineses vão as compras em Haizhu, pujante centro de comércio em Guangzhou, em novembro. Foto: CNS/ AFP - 30/11/2022

Xie fez a viagem esperançosa no ano passado, juntando-se a outros da província de Hubei que também se estabeleceram nesse denso bolsão da metrópole sulista de Guangzhou. Eles trabalhavam em fábricas barulhentas, vendiam tecidos ou macarrão com gergelim, um favorito da cidade natal.

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Mas quando o conheci, há alguns meses, sua esperança havia diminuído. Devido a uma economia em desaceleração, ele passou duas semanas sem moradia, até juntar dinheiro para alugar um quarto de 9 metros quadrados por US$ 120 (R$ 630) por mês.

“Não há trabalho suficiente para todos”, disse Xie, 31, um homem de fala mansa com ombros curvados devido aos muitos anos de trabalho em máquinas de costura. “Você não pode ir para a cama todas as noites tendo que procurar trabalho pela manhã. É muito cansativo.”

Ficaria muito pior depois que um rígido bloqueio contra a covid-19 silenciou as fábricas e fechou as casas de macarrão. Em outubro, Xie ficou em quarentena durante quase um mês.

Várias semanas depois, Haizhu explodiu em descontentamento. Após um fim de semana de protestos contra as restrições da “covid zero” em todo o país, centenas de trabalhadores desafiaram as regras de bloqueio e invadiram as ruas de Haizhu na terça-feira, 29, exigindo liberdade. Eles derrubaram barricadas nas ruas e atiraram garrafas de vidro. “Chega de confinamento!”, gritavam, enquanto policiais em trajes de alta proteção marchavam pelos becos, batendo com os cassetetes nos escudos.

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A erupção foi uma ilustração de como as restrições pandêmicas mais duras do mundo afetaram a vida na China. Xi Jinping está expandindo o domínio do Partido Comunista sobre a população além do que Mao Tsé-tung conseguiu. Xi vinculou o sucesso da covid zero à própria legitimidade como governante, e aplicar a restrição teve precedência sobre nutrir o espírito livre que tornou Haizhu e a China tão vibrantes.

A mudança atinge o antigo contrato social do partido com seu povo. Depois de esmagar violentamente as manifestações pró-democracia na Praça da Paz Celestial em 1989, Pequim fez uma barganha implícita: em troca de limitações nas liberdades políticas, a população teria estabilidade e conforto.

Mas agora a estabilidade e o conforto diminuíram, mesmo com o aumento das limitações. Quase 530 milhões de pessoas —cerca de 40% da população— estavam sob algum tipo de bloqueio no final de novembro. Pessoas morreram em razão da demora no atendimento médico, ou passaram fome.

O aparato de segurança da China já está se movendo para reprimir as manifestações contra a covid zero, os atos mais generalizados que a China viu desde Tiananmen. A polícia deteve e ameaçou participantes em todo o país. O governo, embora não reconheça publicamente os protestos, também tentou atenuar a indignação pública diminuindo as restrições, inclusive a retirada de alguns bloqueios em Guangzhou.

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Funcionários do governo chinês caminham por barricadas desmontadas após flexibilização das regras de 'covid zero'. Foto: Chinatopix via AP

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Mesmo que Xi leve o descontentamento de volta à clandestinidade, a desilusão que os protestos expuseram pode permanecer. A covid zero deixou clara a facilidade e a aparente arbitrariedade com que o partido pode impor sua vontade às pessoas. Para muitos chineses, esse domínio abalou suas expectativas de progresso constante e destruiu sua ambição e disposição a correr riscos.

Talvez em nenhum lugar essa mudança seja mais pungente do que nas maiores metrópoles do sul da China: Guangzhou e a vizinha Shenzhen. Foi aqui que as reformas de mercado chinesas decolaram pela primeira vez. Um colega e eu passamos duas semanas na região no início deste ano para ver como a mudança do contrato social alimentou frustração, resignação e ansiedade —sentimentos totalmente em desacordo com a visão triunfalista de rejuvenescimento nacional que Xi promoveu.

Xie foi liberado da quarentena no mês passado, antes dos protestos. Ele fugiu de Guangzhou, sem saber se voltaria. “Este lugar... se eu puder, o evitarei”, disse.

O principal apelo da região era a promessa de algo para todos. Havia fábricas para migrantes rurais, potências tecnológicas para aspirantes a programadores, lojas para empreendedores. Qualquer um com coragem e motivação poderia ter uma vida melhor.

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Sede da Tencent, a empresa mais valiosa da China, em Shenzhen, em novembro. Com situação do país, companhia teve que demitir milhares de trabalhadores neste ano. Foto: Qilai Shen/ Bloomberg

Xie mudou-se para Guangzhou no ano passado, em busca de um salário maior para sustentar seus dois filhos pequenos. Mas quando chegou encontrou uma agitação diferente da que esperava.

Muitas fábricas reduziram a produção à medida que a desaceleração da economia e os bloqueios sufocaram a demanda por roupas novas. Todas as manhãs, Xie abria caminho entre multidões quase paradas de candidatos a emprego para negociar com os chefes das fábricas preços cada vez mais baixos para trabalhos manuais, como o acabamento das bainhas de camisas ou pregas de saias. Em agosto, ele ganhava de US$ 40 a US$ 50 (R$ 210 a R$ 260) por dia, quando ganhava alguma coisa.

No trabalho, engolia apressadamente almoços de arroz branco e tofu, cercado por pilhas de tecido na altura dos joelhos e o zumbido das máquinas de costura.

Então, em outubro, o coronavírus começou a se espalhar em Haizhu, assim como os bloqueios. Confinado em seu quarto e depois num centro de quarentena, o dinheiro de Xie acabou.

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Fábrica têxtil em Haizhu, na China, onde Xie Pan trabalhava em agosto.  Foto: Vivian Wang/ The New York Times

Na manhã em que ele foi liberado, embarcou num trem de volta para Hubei. “Estou desempregado há tanto tempo que estou quase passando fome”, disse Xie ao chegar em casa.

Mesmo que a Covid zero desapareça, é improvável que a fixação de Xi por controle o faça. Nesse ambiente, resta saber se a ambição que alimentou a ascensão da China ainda pode prosperar.

Essa ambição levou Li Hong, 36, a assumir uma fábrica de roupas no ano passado em Haizhu. Desde que chegou de Hubei, há 16 anos, Li trabalhou desde o chão de fábrica até a gerência e estava ansiosa para continuar avançando e apostando em si mesma. Ela sabia que a economia estava instável, mas com tantas fábricas falindo, pôde comprar uma por um bom preço. “As oportunidades surgem para quem estiver preparado, mas mesmo que não haja oportunidades queremos encontrá-las”, disse ela no verão passado em seu pequeno escritório, onde mantinha um sofá para cochilos durante longos turnos.

Mas o bloqueio da primavera passada em Xangai interrompeu os pedidos de um grande cliente. Então veio o surto em Guangzhou. As fábricas em Haizhu receberam ordens de fechar. Li recebeu o diagnóstico de covid-19 e foi enviada para um hospital improvisado.

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Homem olha através de uma brecha em uma barreira em uma área residencial de Xangai, em junho. Foto: Aly Song/ Reuters - 07/06/2022

Depois de ser liberada, duas semanas depois, ela voltou para Hubei porque sua casa em Guangzhou estava fechada, disse por telefone. O aluguel de sua fábrica expira em janeiro; ela não sabia se iria renovar.

O controle das expectativas talvez seja melhor resumido por uma frase onipresente nas restrições na China: “A menos que seja necessário”. As autoridades instruíram os cidadãos: não se reúnam “a menos que seja necessário”; não saiam de casa “a menos que seja necessário”. Muitos chineses que aprenderam a sonhar com o progresso —até mesmo com o luxo— de repente foram instruídos a esperar só o essencial.

Ainda assim, alguns mantêm a esperança de que o recuo seja um momento passageiro. Apesar de todas as dificuldades atuais, os anos de crescimento extraordinário ainda estão frescos em muitas mentes.

No topo de uma colina no Parque Lianhuashan de Shenzhen, há uma estátua de seis metros de Deng Xiaoping, o líder pioneiro na adoção das forças de mercado pela China após a morte de Mao. Deng vigia a cidade que é um lembrete vivo da capacidade do país de mudar de direção. Deng é mostrado dando um passo à frente, para honrar seu lema de que a abertura deveria se acelerar.

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Estátua de Deng Xiaoping em Shenzhen. Foto: The New York Times

Chen Chengzhi, 80, funcionário público aposentado que caminha até a estátua todos os dias para se exercitar, credita a Deng a mudança de sua vida. Chen mudou-se para Shenzhen nos anos 1980, logo após Deng permitir a experimentação econômica aqui. A cidade tinha algumas centenas de milhares de pessoas, mas Chen, que havia passado pela fome e pela Revolução Cultural, acreditou na visão de Deng.

“No final das contas, todas as coisas boas na China estão relacionadas a Shenzhen”, disse Chen em uma de suas caminhadas diárias, acrescentando que comemorou quando o primeiro-ministro Li Keqiang visitou a estátua em agosto e prometeu que a China continuaria sua abertura para o mundo. Se não o fizer, disse Chen, “a China chegará a um beco sem saída”.

Mas Li está se aposentando, enquanto a era Xi de crescente controle estatal se prolonga. Por enquanto, Chen continua subindo a colina —olhando para a cidade que ajudou a construir e na qual ainda acredita.

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