Quando o presidente russo, Vladimir Putin, intermediou o fim da guerra entre Azerbaijão e Armênia em 2020, colocando dois mil soldados em missão de paz entre os dois lados no Cáucaso, a solução pareceu um golpe de mestre: em um só movimento, a Rússia passou a ter presença militar em uma ex-república soviética, o Azerbaijão, e aprofundou a dependência de outra, a Armênia, ao se tornarem garantidores da sua segurança.
Para Putin, a manobra rendeu uma imagem de patrocinador da paz e pareceu confirmar seu argumento de que a Rússia era a única potência capaz de manter a estabilidade em toda a esfera ex-soviética, legitimando a influência russa.
Pouco mais de dois anos depois, o conflito pela região de Nagorno-Karabakh, no Azerbaijão, volta a se agravar, e a Rússia, distraída e enfraquecida pela guerra na Ucrânia, não interferiu. Desafiando a presença russa, combatentes do Azerbaijão testam Moscou com objetivo de constatar se os russos ainda são capazes e estão determinados a impor sua vontade sobre vizinhos menores em meio às dificuldades que enfrenta na Ucrânia.
Desde 12 de dezembro, a estrada na região montanhosa que liga Nagorno-Karabakh à Armênia tem sido bloqueada em meio a protestos de ativistas do Azerbaijão que alegam se opor às operações de mineração na área. O governo do Azerbaijão apoia os protestos; os armênios dizem que o Azerbaijão fabricou as manifestações e critica as tropas de paz russas por não manter a estrada aberta.
“É perceptível que os recursos da Rússia na região estão ficando limitados”, afirmou Farhad Mammadov, um analista pró-governo em Baku, a capital do Azerbaijão. “A Rússia está enfraquecendo.”
Os bloqueios de estrada são uma nova escalada na sangrenta disputa, de décadas, por um enclave que é lar de dezenas de milhares de armênios étnicos dentro das fronteiras do Azerbaijão, que são reconhecidas internacionalmente.
Em Nagorno-Karabakh, os supermercados têm sido abastecidos com pouco mais do que bebidas alcoólicas e doces, e os fornecimentos de fraldas e medicamentos básicos são tão minguados que os moradores fazem posts no Facebook em busca dos produtos, de acordo com a jornalista local Tatev Azizyan. A partir da sexta-feira, os cidadãos terão de apresentar cartões de racionamento para comprar arroz, macarrão, trigo sarraceno ou açúcar.
Mais sobre a guerra entre Azerbaijão e Armênia
A invasão russa à Ucrânia reformulou relações em todo o planeta, mas talvez em nenhum outro lugar tão claramente quanto nas fronteiras entre Europa e Ásia, fortalecendo a influência da Turquia e do Irã, atualmente importantes fontes de comércio e armamentos para Moscou, ao mesmo tempo que mina a influência russa no Cáucaso.
A Armênia é parte da aliança militar liderada pela Rússia entre seis ex-repúblicas soviéticas, a Organização do Tratado de Segurança Coletiva, e tem uma base militar russa em seu território. Mas até aqui, o Kremlin, ocupado na Ucrânia, não adotou nenhuma ação para ajudar a aliada.
“Toda a concentração de atenção sobre a Ucrânia torna a situação ainda mais frágil e dá uma nova oportunidade ao Azerbaijão de usar força e ser mais agressivo”, afirmou em uma entrevista recente Vahan Kostanyan, conselheiro do ministro armênio de Relações Exteriores.
A Armênia venceu uma guerra contra o Azerbaijão por Nagorno-Karabakh no início dos anos 90, conquistando controle sobre 13% do território total do Azerbaijão — incluindo Nagorno-Karabakh. Ao lançar uma ofensiva em 2020, o Azerbaijão tomou de volta grande parte da região, valendo-se de seus lucros com gás natural para comprar armamentos superiores da Turquia e de Israel.
A guerra recente terminou após 44 dias de combates, com um cessar-fogo negociado por Putin, e tropas russas foram acionadas para proteger os armênios que continuam a circular por Stepanakert, a maior cidade da região, e pela estrada que conecta a localidade com a Armênia.
Agora, acreditam alguns armênios, a intenção do Azerbaijão é fazê-los passar fome por meio dos bloqueios nas estradas. “É para deixarmos nossa terra-natal”, afirmou em entrevista pelo telefone Azizyan, a jornalista que trabalha na região povoada por armênios em Nagorno-Karabakh. “Esse é o objetivo deles.”
O presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, afirmou na semana passada que “a estrada não está fechada, está aberta. Quem não quiser se tornar nosso cidadão pode partir quando quiser.”
Influência russa em queda
A influência da Rússia mingua em ambos os países. No Azerbaijão, a invasão à Ucrânia voltou a opinião pública ainda mais contra a Rússia e suas tropas de paz, afirmou Zaur Shiriyev, analista do Crisis Group em Baku. Na Armênia, o apoio militar do Kremlin parece menos vantajoso, já que a Rússia deixou de ser uma exportadora prolífica de armamentos — porque precisa deles na Ucrânia — e Putin tende a preservar as relações com a Turquia, a maior aliada do Azerbaijão.
O analista político armênio Tigran Grigoryan afirmou que a guerra na Ucrânia “criou um ambiente no qual a dissuasão russa não está funcionando na região”.
Há pouca claridade a respeito da maneira que a atual crise pode ser resolvida. O Azerbaijão insiste que não impôs nenhum bloqueio a Nagorno-Karabakh e que o fluxo de ajuda humanitária e médica está sendo permitido. Mas em campo a situação parece cada vez mais difícil para os armênios em Nagorno-Karabakh, que estão ilhados e com acesso limitado a alimentos e outros itens essenciais, isolados de parentes que estavam na Armênia quando a crise começou.
Azizyan afirmou que enfrentou seis horas de fila recentemente para sacar dinheiro em um caixa eletrônico e que artigos simples, como laranja, queijo ou medicamentos para baixar febre, se tornaram bens preciosos. Creches fecharam, afirmou ela, por causa da falta de comida.
Depois que soldados das tropas de paz russas foram filmados recentemente entregando ajuda humanitária diante de uma maternidade local, os moradores se dividiram em dois campos nas redes sociais, afirmou Azizyan: alguns agradeceram os russos, enquanto outros perguntaram por que eles não faziam mais.
“Ninguém entende”, afirmou Azizyan, por que a Rússia não consegue reabrir a estrada, “As pessoas começaram a se enfurecer e expressar sua indignação em relação às tropas de paz.”
Objetivos em aberto
Ainda que tenha vencido a guerra de 2020, o Azerbaijão ainda não alcançou seus objetivos — incluindo um corredor de transporte até Nakhchivan, seu exclave, uma fatia de território na fronteira sudoeste armênia que daria ao país ligação direta com a Turquia. O Azerbaijão também busca exercer maior controle sobre a estrada atualmente bloqueada, conhecida como Corredor Lachin, alegando que a Armênia está usando a via para transportar minas terrestres para dentro da região.
A Rússia tenta empreender um caminho do meio através da escalada. Ainda que a Armênia seja aliada militar dos russos, Aliyev desenvolveu uma relação próxima com Putin, e ambos os países são parceiros econômicos importantes para a Rússia em meio às sanções do Ocidente.
“Pedimos aos lados azerbaijano e armênio que demonstrem boa vontade e busquem juntos concessões mútuas”, afirmou na semana passada a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova.
O Kremlin continua a se envolver nas negociações entre Azerbaijão e Armênia, e Putin conversou em dezembro com Aliyev e o primeiro-ministro armênio, Nikol Pashinyan, em São Petersburgo. Em declarações televisionadas durante seu encontro com Putin, Pashinyan notou, com aparente frustração, que “na realidade o Corredor Lachin não está sob controle das tropas de paz russas”.
Na semana passada, Pashinyan foi além na reação a Moscou, cancelando exercícios militares da aliança liderada pelos russos planejados para ocorrer este ano na Armênia.
“A presença militar da Rússia na Armênia não apenas fracassa em garantir sua segurança, mas aumenta as ameaças de segurança da Armênia”, afirmou Pashinyan, de acordo com a Associated Press.
Mas analistas afirmam que há pouca chance da Armênia ser capaz de se desvincular de sua dependência em relação à Rússia no futuro próximo — a lição mais recente, de uma série, para ex-repúblicas soviéticas a respeito da dificuldade de se afastar da sombra de segurança de Moscou, especialmente quando a crise ameaça. Em Belarus em 2020 e no Cazaquistão no ano passado, líderes de ex-repúblicas soviéticas pediram ajuda de Putin em face a levantes populares, reforçando sua influência sobre ambas as nações.
“A Armênia tem um problema estratégico massivo”, afirmou Thomas de Waal, pesquisador-sênior do instituto Carnegie Europe que estuda o conflito há décadas. Pashinyan “gostaria de uma política externa muito mais equilibrada, mas está encalhado com a Rússia como sua principal aliada político-militar”.
Mas com os russos distraídos, a União Europeia e os Estados Unidos intensificaram seus esforços para intermediar uma paz duradoura e construir influência no Cáucaso. Pashinyan e Aliyev encontraram-se em agosto e outubro, em reuniões arranjadas pela UE, e os ministros de Relações Exteriores dos países se reuniram em Washington em novembro.
Analistas descreveram duas vias de negociação como algo incomum — uma liderada pela Rússia, outra pela UE, em um momento em que Moscou e o Ocidente travam seu conflito mais intenso em décadas. Mas o representante-especial da UE para o sul do Cáucaso, Toivo Klaar, afirmou em entrevista que esteve em contato com seu homólogo russo, o diplomata Igor Khovayev, e que ambos se reuniram presencialmente no último outono. “Nas atuais circunstâncias, há possivelmente mais espaço para Armênia e Azerbaijão de fato superarem seu conflito”, afirmou Klaar. “Resta saber se os países serão capazes de aproveitar essa oportunidade.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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