ISTAMBUL -A noite de 15 de julho e a madrugada do dia 16 deste mesmo mês de 2016 entrarão para a história da Turquia como um ponto de inflexão: um violento, mas fracassado golpe de Estado foi aproveitado pelo governo islamita turco para levar adiante expulsões em todas as esferas do Estado, próprias de um levante bem-sucedido. Dezenas de milhares de pessoas foram detidas, dezenas de milhares de funcionários foram demitidos, dezenas de jornais e canais de televisão foram fechados e vários deputados presos em consequência da tentativa de golpe. Tudo isso sob um estado de exceção que dá poder ilimitado ao governo.
As reformas administrativas e legais empreendidas pelo governo turco como resposta ao golpe têm tanta envergadura que em apenas seis meses representaram uma mudança enorme na política e até na sociedade locais. A oposição turca e cada vez mais governos europeus criticam que a Turquia está se tornando uma autocracia, distanciada dos valores democráticos europeus. Os moradores das cidades de Istambul e Ancara ficaram apreensivos na noite de 15 para 16 de julho, ao ouvir o voo rasante de caças-bombardeiros e tiroteios isolados, enquanto uma unidade de tanques bloqueava uma das imponentes pontes do Bósforo que ligam Europa e Ásia. Às 23 horas, o primeiro-ministro Binali Yildirim chamou os veículos de imprensa para informar que se tratava de um golpe de Estado. Uma hora e meia mais tarde, foi a vez de o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan, de férias em um hotel do litoral, pedir aos cidadãos que enfrentassem os golpistas. Uma maré de cidadãos armados só com bandeiras foi enfrentar os blindados em diversos pontos de Istambul e Ancara. Em alguns lugares foram alvo do fogo dos golpistas, com um saldo final de 247 mortos no lado antigolpista, segundo números oficiais, enquanto os dados sobre o saldo de rebeldes mortos oscilam entre 20 e 104.
A polícia turca recuperou o controle na manhã de sábado e o governo anunciou que o levante era obra das redes de simpatizantes do clérigo exilado Fethullah Gülen, que era um fiel aliado do governo islamita, mas desde 2013 se tornou um feroz adversário. Nos meses seguintes foram detidas 50 mil pessoas, das quais 32 mil passaram a prisão preventiva, por suspeita de fazer parte da rede de simpatizantes de Gülen, frequentemente sem acusação de um crime concreto. A isso se somaram demissões em massa na administração pública - sobretudo no Ministério da Educação e academias privadas - com um total de 60 mil funcionários expulsos e 93 mil empregados suspensos de suas funções, entre eles 5.200 acadêmicos e 3.400 juízes, enquanto os militares destituídos superam os 3.500. A princípio, as expulsões só ampliavam o alcance da "limpeza" iniciada três anos antes contra a presença de "gülenistas" na polícia, judiciário, bancos e veículos de imprensa. No entanto, em setembro começaram a se dirigir também contra a esquerda e especialmente contra os defensores dos direitos da minoria curda na Turquia. Assim, entre setembro e novembro foram destituídos os prefeitos de 30 municípios, incluídas várias importantes capitais de província, em quatro casos por supostos vínculos gülenistas e, no restante, por suspeita de laços com o proscrito Partido de Trabalhadores de Curdistão (PKK), a guerrilha curda. Em novembro também foram detidos e presos de forma preventiva dez deputados do Partido Democrático do Povo (HDP), a terceira maior bancada do Parlamento, esquerdista e pró-curda, sob a mesma acusação. Ao mesmo tempo, o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP), no poder desde 2002, pretende agora convocar um referendo sobre uma emenda constitucional que daria todo o poder executivo ao presidente, algo firmemente rejeitado pelo HDP e o social-democrata Partido Republicano do Povo (CHP). Além disso, o AKP não descarta a possibilidade de reintroduzir a pena de morte na Turquia. Para a União Europeia, isso seria o ponto final às negociações de adesão do país eurasiático ao bloco, que duram mais de uma década sem grandes avanços. / EFE
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