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Opinião | Como o confuso sistema político alemão ajudou a popularizar a AfD

Alemanha é uma república federal democrática parlamentarista. Mas diferente do Brasil, o federalismo deles funciona de verdade

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Foto do author Rodrigo da Silva

Poucos países no mundo são tão influentes quanto a Alemanha. De Beethoven a Bach, de Kepler a Einstein, da Volkswagen à Bayer, a Alemanha não é só uma das maiores economias da Terra, mas uma potência política fundamental para a integração do continente mais rico do planeta.

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Entender como esse lugar funciona é, de inúmeras maneiras, importante para capturar como agem as forças que regem o mundo.

No próximo domingo, 23 de fevereiro, os alemães irão às urnas definir o seu futuro. Mas antes de falar sobre o que está em jogo nessa eleição, é preciso entender como ela funciona. E cá entre nós: é bem mais complicado do que você imagina.

Em primeiro lugar, tome nota: o sistema político alemão é estruturado como uma república federal democrática parlamentarista. Mas diferente da gente, o federalismo deles funciona de verdade: ele é baseado na divisão de poder entre o governo nacional e os seus 16 estados federados, conhecidos como Länder (“Land” = “estado” em alemão).

O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, discursa na Conferência de Segurança de Munique Foto: Thomas Kienzle/THOMAS KIENZLE

Cada Land tem a sua própria constituição, um parlamento e um governo regional, com poderes e responsabilidades estabelecidos pela Constituição alemã (também chamada de Grundgesetz). Se o Brasil concentra poder demais em Brasília, a Alemanha é consideravelmente mais descentralizada.

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Assim como no nosso caso, há três poderes na Alemanha: o Legislativo, o Executivo, e o Judiciário.

O Poder Legislativo alemão é bastante particular. Ele é composto por duas câmaras:

  1. Bundestag
  2. Bundesrat.

O Bundestag é o principal órgão legislativo da Alemanha. Ele é a casa dos parlamentares que foram eleitos diretamente pela população – e por conta disso, tem algumas características parecidas com a nossa Câmara dos Deputados.

Mas o Bundesrat é bem diferente do nosso Senado. Na Alemanha, os estados participam diretamente das decisões de Berlim que atingem os seus interesses. Isso é feito por meio do Bundesrat. Os membros do Bundesrat não são eleitos pela população – eles são nomeados pelos governos dos estados para defender as suas posições.

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Assim como no Brasil, a Alemanha também tem um presidente. Nesse momento, o presidente alemão é esse cara aqui: Frank-Walter Steinmeier.

O presidente da Alemanha, Frank-Walter Steinmeier, participa de uma reunião ao lado da ministra de Relações Exteriores do país, Annalena Baerbock, em Munique, Alemanha  Foto: Matthias Schrader/AP

Tecnicamente, Steinmeier é o chefe do estado alemão, mas não se engane com a pompa do cargo: na Alemanha, o presidente tem um poder bastante limitado. É tarefa dele sancionar as leis aprovadas pelo Bundestag, representar a Alemanha no mundo e carregar o fardo de dissolver o Bundestag quando uma grande crise política estourar.

Chanceler

A figura mais poderosa da política alemã é o chanceler, um cargo bem parecido com o de um primeiro-ministro. Desde 2021, Olaf Scholz, do Partido Social-Democrata, é quem ocupa esse papel.

Antes dele, por 16 anos, esse cargo pertenceu à Angela Merkel, da União Democrata-Cristã (mais conhecida como CDU).

O chanceler alemão é escolhido pelo Bundestag. Compreender como o Bundestag é formado é o primeiro passo para entender como o chanceler chega ao poder.

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Os alemães votam para o Bundestag usando um sistema misto. Cada cidadão alemão tem direito a dois votos. O primeiro voto (os alemães chamam de Erststimme) é majoritário. Ele é dado a um candidato que representa um distrito. A Alemanha é dividida em 299 distritos.

O segundo voto (os alemães chamam de Zweitstimme) é proporcional. Ele é dado a um partido político. Esse é o voto mais importante da Alemanha porque determina quantas cadeiras cada partido terá no Bundestag.

O chanceler da Alemanha, Olaf Scholz, conversa com repórteres em Paris, França  Foto: Behrouz Mehri/AFP

Se o Brasil adotasse esse sistema, seria mais ou menos assim:

Você votaria para deputado federal duas vezes. O seu primeiro voto seria dado para um candidato da sua região (por exemplo, o candidato João da Silva, do Partido do Povo). O segundo voto seria registrado para um partido político (por exemplo, o Partido do Brasil).

Na Alemanha, mesmo que um partido ganhe muitas cadeiras na primeira votação, o número final de assentos é sempre ajustado para refletir o resultado da segunda votação. Ou seja: se um partido receber 30% do segundo voto, ele terá direito a 30% dos assentos no Bundestag. Ponto final.

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Desde quando foi criado, o Bundestag nunca contou com um número fixo de cadeiras. Na primeira eleição, em 1949, eram 400 assentos mínimos. Mas esse número foi crescendo até chegar em 598, a partir da reunificação alemã.

A ex-chanceler Angela Merkel participa de uma palestra em Hamburgo, Alemanha  Foto: Gregor Fischer/AFP

Sistema político

Da queda do Muro de Berlim até a ascensão de Olaf Scholz, as eleições alemães sempre funcionaram dessa forma: se um partido político receber, por exemplo, 30% do segundo voto do eleitor alemão, ele terá direito a 30% desses 598 assentos mínimos do Bundestag (o que dá 180 cadeiras). Se na primeira votação, esse partido eleger, digamos, 100 candidatos, isso significa que ele ocuparia 100 desses 180 assentos com esses parlamentares.

Como ele preencheria as outras 80 vagas? Através de uma lista partidária definida antes das eleições – ou seja: esses 80 parlamentares não seriam eleitos diretamente pela população; eles seriam “chamados” para ocupar as vagas proporcionais que o partido conquistou na segunda votação.

Até aqui, fácil de entender.

Mas o que acontece quando um partido ganha mais cadeiras no primeiro voto do que deveria receber pelo segundo voto? E se um partido eleger, por exemplo, 135 parlamentares na primeira votação, mas só tiver direito a 100 assentos, porque fez 16% dos votos na segunda votação?

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É aí que o caldo engrossa. Por muito tempo, esse problema seria resolvido criando as chamadas cadeiras excedentes (Überhangmandate). Para manter a proporcionalidade, todos os outros partidos receberiam cadeiras compensatórias (Ausgleichsmandate) até que 135 parlamentares virassem o equivalente a 16% do parlamento. É por isso que os 598 assentos do Bundestag são mínimos.

Candidatos ao cargo de chanceler debatem em Berlim  Foto: Kay Nietfeld/AFP

Não dá para negar que esse é um sistema eleitoral bastante confuso. Mas mais do que isso: nos últimos anos, esse modelo passou a provocar problemas no funcionamento da democracia alemã.

Quanto mais fragmentada fica a política alemã (e isso vem acontecendo por inúmeros motivos), maior é o número de assentos no parlamento – o que ajuda a tornar a política alemã ainda mais fragmentada.

Por exemplo: em 2009, o Bundestag elegeu 622 assentos. Em 2013, esse número subiu para 631. E em 2017, 709.

Na última eleição, em 2021, o Bundestag conseguiu a façanha de eleger 735 assentos – o maior número da sua história. Ficou claro para todo mundo que o modelo é insustentável.

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Um Parlamento inflado como o Bundestag traz uma série de problemas. Mais parlamentares significam mais despesas públicas. Quanto maior o número de parlamentares, mais difícil é coordenar os debates e as votações. A tomada de decisões fica mais lenta e desorganizada. Os partidos maiores têm mais dificuldade em alcançar maioria necessária para formar governos estáveis. Isso leva a coalizões mais amplas e heterogêneas, que formam governos mais frágeis. Esses governos mais frágeis encontram dificuldades imensas para tomar decisões mais rápidas.

Com o tempo, os eleitores começam a perceber que o sistema político está cada ano mais caro e ineficiente. Isso abre espaço para partidos políticos extremistas e populistas – como a AfD. Esses partidos dificultam ainda mais o trabalho do governo e do Bundestag, piorando a qualidade da produção política. De quebra, exploram esse cenário para impulsionar discursos contra a política tradicional e a própria democracia, fragmentando ainda mais o país.

O chanceler Olaf Scholz participa de um compromisso de campanha em Munique, Alemanha  Foto: Michaela Stache/AFP

É uma bola de neve.

Reforma

Quando Olaf Scholz foi empossado chanceler, nenhuma democracia no mundo tinha um parlamento com tantos membros. Para resolver esse problema, o Bundestag aprovou uma reforma eleitoral, em 2023, que excluiu as cadeiras excedentes e compensatórias do sistema político.

Na eleição do próximo domingo, pela primeira vez, o Bundestag está disponibilizando 630 assentos fixos. A partir de agora, se um partido eleger, digamos, 200 parlamentares na primeira votação, mas tiver direito a 220 assentos pela segunda votação, esses 20 parlamentares extras continuarão sendo determinados por uma lista partidária. Mas se o partido eleger 220 parlamentares no primeiro voto, e ter direito a 200 assentos pelo segundo voto, 20 parlamentares eleitos ficarão de fora do Bundestag.

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É importante também entender que para que um partido consiga representação no Bundestag, ele precisa obter pelo menos 5% dos votos válidos na segunda votação, ou vencer em pelo menos 3 distritos eleitorais diferentes na primeira. É o que a gente chama de cláusula de barreira.

É só a partir da definição disso tudo que os partidos formam coalizões. É uma coalizão que escolhe o chanceler, através de uma votação no Bundestag. Ganha o cargo quem tiver pelo menos 50% dos votos + 1.

Em 2021, Olaf Scholz virou o chanceler alemão porque conseguiu formar um grupo bastante heterodoxo que ficou conhecido como Coalizão Semáforo (Ampelkoalition), com social-democratas (vermelhos), verdes e liberais (amarelos). Mas em novembro de 2024, essa coalizão chegou ao fim, quando Scholz demitiu o seu ministro das finanças, o liberal Christian Lindner.

Os alemães estavam preparados para irem às urnas apenas em setembro deste ano, mas a decisão de Scholz fez o governo alemão se desintegrar, e com isso, a eleição acabou sendo adiantada para o próximo domingo.

Agora, esses são os principais partidos políticos na disputa:

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A União Democrata-Cristã (CDU) representa a centro-direita. Ela conta com o apoio de um antigo parceiro regional, bastante importante: a União Social-Cristã (CSU), da Baviera. Esse bloco histórico costuma ser chamado na Alemanha de Partidos da União.

Além deles, há ainda:

A Alternativa para a Alemanha (AfD), liderando a direita populista.

O Partido Social-Democrata (SPD), de centro-esquerda.

Os Verdes, casa dos ambientalistas.

O Partido Democrático Liberal (FDP), lar dos liberais.

A Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), da esquerda populista.

E A Esquerda (Die Linke), representando a esquerda socialista.

Os partidos com melhores chances de vencer geralmente indicam os seus candidatos a chanceler antes das eleições.

Friedrich Merz, candidato a chanceler da CDU, participa de um evento de campanha em Berlim  Foto: Michael Kappeler/AFP

No domingo, Olaf Scholz buscará a reeleição pelo Partido Social-Democrata. Ele disputará o voto alemão contra Friedrich Merz, da União Democrata-Cristã, e Alice Weidel, da Alternativa para a Alemanha.

Nos últimos meses, Scholz, Merz e Weidel estrelaram o debate público alemão, oferecendo os seus pontos de vista sobre os assuntos mais importantes para a população em 2025 – nessa ordem: imigração, economia e política externa.

Quem deles irá vencer? Nós estamos às vésperas de descobrir. Mas a partir desse ponto, você tem o que é necessário para não apenas compreender como funciona a eleição na Alemanha, como apontar quais são os principais personagens desse jogo. Agora, basta seguir as plataformas do Estadão para acompanhar em tempo real cada atualização dessa disputa.

Opinião por Rodrigo da Silva

É jornalista e criador do canal Spotniks, do YouTube. Em suas colunas, usa texto, vídeo, gráfico, mapa e fotografia para ajudar o público a entender os maiores eventos globais, com clareza e contexto.

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