Rumores de voos de ajuda para Turquia provocam corrida de afegãos para aeroporto de Cabul

Situação ecoou as cenas caóticas na capital após a tomada de poder pelo Taleban e reflete crescente desespero da vida cotidiana no país

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Por Pamela Constable

CABUL - Em um eco surpreendente das cenas caóticas que se seguiram à tomada do poder pelo Taleban há 18 meses, milhares de afegãos correram para o aeroporto da capital, Cabul, na noite de quarta-feira, depois que se espalharam rumores de que aviões estavam levando voluntários para a Turquia para ajudar no socorro às vítimas do terremoto.

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A debandada irrompeu espontaneamente e vídeos mostraram multidões de homens - todos em trajes normais e sem bagagem de qualquer tipo - gritando e se empurrando no escuro enquanto corriam ao longo da avenida que leva ao aeroporto. Eles foram detidos pelas forças de segurança do aeroporto, que dispararam para o ar e deixaram várias pessoas feridas.

A corrida em direção ao aeroporto parece refletir o crescente desespero da vida cotidiana no Afeganistão, onde uma grave crise econômica fez com que as pessoas tentassem sair por todos os meios possíveis - até mesmo voos de ajuda para zonas de desastre.

Prédios destruídos na cidade de Antakya; regime Taleban envia ajuda à Turquia, de maioria muçulmana como o Afeganistão Foto: Hussein Malla/AP - 9/02/2023

Por volta das 22h, um porta-voz do governo, Zabihullah Mujahid, postou no Twitter que quaisquer rumores sobre voos especiais para a Turquia para “pessoas sem documentos oficiais” não eram verdadeiros. “Ninguém deve ir ao aeroporto com essa intenção e ninguém deve perturbar a disciplina no aeroporto”, disse.

O episódio parece ter sido desencadeado pelo anúncio do regime taleban de que doaria US$ 165 mil (R$ 870 mil) em ajuda aos esforços de resgate do terremoto na Turquia e na Síria, um gesto diplomático altamente incomum do governo islâmico sem dinheiro que foi condenado ao ostracismo por grande parte do mundo e enfrenta pesadas sanções financeiras.

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Em uma declaração formal na terça-feira, o Ministério das Relações Exteriores disse que a ajuda estava sendo enviada em solidariedade aos “irmãos muçulmanos” do Afeganistão em ambos os países. Ele também disse que “equipes de resposta de emergência e saúde” do Afeganistão estavam prontas para participar de operações de resgate na Turquia e na Síria, se solicitadas. Não foram fornecidos mais detalhes.

Internamente, a mensagem do anúncio desencadeou um boato boca a boca de que aviões estavam indo da Turquia para Cabul, oferecendo aos afegãos uma chance de escapar. Não havia verdade nos rumores, mas conforme eles se espalharam, homens em toda a capital simplesmente pularam e correram em direção ao aeroporto.

“Estávamos a caminho de uma festa de casamento quando vi pessoas correndo em direção ao aeroporto. Em um momento, ouvimos tiros e as pessoas disseram que o Taleban não estava permitindo a entrada de ninguém”, disse uma testemunha citada em um tuíte do jornalista afegão Mohammad Farshad. “As pessoas estavam dizendo que estavam levando pessoas para a Turquia. Meu irmão e eu também queríamos ir e tentar a sorte.”

Embora rapidamente reprimida e envolta na escuridão, a súbita tentativa de fuga em massa evocou o pânico muito maior e mais visível que tomou conta da capital quando as forças do Taleban entraram em Cabul em agosto de 2021. Em cenas arrepiantes mostradas em todo o mundo, pessoas foram espancadas e pisoteadas enquanto tentavam entrar no aeroporto, e vários morreram agarrados a aviões que decolavam cheios de passageiros que conseguiram embarcar.

Desde então, as pessoas em Cabul se ajustaram à vida sob o domínio do Taleban, a capital está sob forte segurança e o governo se tornou mais profissional. Mas o súbito impulso de fugir, desencadeado por um boato sem base e contra todas as probabilidades de sucesso, refletiu as terríveis condições em que muitos afegãos vivem ainda hoje.

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Em imagem de arquivo, forças taleban guardam aeroporto de Cabul; controle rígido Foto: West Asia News Agency/Reuters - 10/09/2021

Milhões de pessoas estão desempregadas, forçadas a mendigar, pedir emprestado ou catar lixo para sobreviver. Grupos de ajuda internacional estimam que quase metade da população de 40 milhões está passando fome neste inverno (Hemisfério Norte) e que 6 milhões deles enfrentam “insegurança alimentar em nível de emergência”.

Uma série de medidas repressivas tomadas pelo Taleban nos últimos meses também contribuiu para os temores do público em relação ao futuro. O regime proibiu as mulheres de frequentar o ensino médio ou a faculdade e de trabalhar para instituições de caridade estrangeiras. Também restabeleceu punições físicas severas por roubo, adultério e outras ofensas.

“Isso mostra a vulnerabilidade e o desespero daqueles que estão tentando fugir do regime do Taleban”, disse Khalid Amiri, ex-jornalista da TV afegã que vive no exterior, em um tuíte após a divulgação da debandada na quinta-feira.

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