Pesquisador do projeto de História transnacional da extrema direita, da Universidade George Washington, o historiador francês Nicolas Lebourg conhece como poucos a dinâmica, o desenvolvimento e o funcionamento de grupos radicais dessa parte do mundo político europeu. Autor da obra As Extremas Direitas na Europa, Lebourg afirma que a Rússia financiava esse grupos porque Vladimir Putin representava um mundo multipolar com lideranças “cesaristas”.
Integrante do Observatório das Radicalidade Políticas (ORRAP), da Fundação Jean-Jaurès e professor da Universidade de Montpellier, Lebourg diz a extrema-direita europeia foi atropelada pela covid-19 e pela guerra na Ucrânia e explica as razões do fracasso da tentativa de Steve Bannon, ex-conselheiro de Donald Trump, de montar uma internacional populista – The Movement. E o reflexo disso se faz sentir nas duas principais candidaturas desse campo – Marine Le Pen e Éric Zemmour – à eleição presidencial na França, que tem o presidente Emmanuel Macron como favorito á reeleição. O eleitorado que chegou a flertar com Zemmour decidiu voltar à segurança de Macron em vez de embarcar em uma aventura.
Como você acha que o grupo Identidade e Democracia (ID) no Parlamento Europeu deve se comportar em relação à Rússia após a invasão da Ucrânia? A Rússia ainda deve ser o assunto sobre o qual haverá mais acordo entre eles, como foi no passado?
Os eurodeputados de extrema-direita alinharam-se com a Rússia durante a guerra da Rússia contra a Ucrânia em 2014. Em seguida, votaram contra as resoluções que se opunham aos interesses do Kremlin em 93% das votações, uma pontuação bem acima da coerência geral do grupo, em que seus integrantes apenas concordavam entre si durante aquele mandato com 69% dos votos. Durante a votação no Parlamento Europeu em 28 de fevereiro (após a invasão da Ucrânia), os representantes eleitos do ID simplesmente se abstiveram. Existem nuances, mas os partidos de extrema direita se dissociaram da invasão, mesmo que em alguns casos, como na Grécia, a polarização em relação a Vladimir Putin permaneça muito forte.
Como a Rússia dividiu a extrema direita europeia? E quais serão as consequências da guerra nas relações com a extrema direita europeia?
A Rússia polarizou a extrema direita porque a financiava, financiava a mídia que os apoiava em casa, mas também por razões ideológicas. A extrema direita é fundamentalmente a favor de um mundo multipolar e de uma prática cesarista de poder: a Rússia de Putin representou ambos. No caso do conflito russo-ucraniano (2014), vimos voluntários de vários países se juntarem aos dois campos. Esses voluntários eram de cerca de cinquenta países, o que ajudou a treiná-los em violência. Quando voltaram para casa, eles trouxeram isso na bagagem: desde 2015, o aumento da violência de extrema direita no mundo é de 320%. No entanto, não há uma distribuição igualitária do apoio nesse campo entre Rússia e Ucrânia: é a primeira que representa a principal atração da extrema direita.
Como as eleições na França e na Hungria podem ser decisivas para o destino da extrema direita europeia?
O Front National / Rassemblement Nacional tem sido a bússola da extrema direita europeia. Desde o fracasso de Marine Le Pen em 2017, a liderança foi ocupada por Matteo Salvini, que, por sua vez, a perdeu. Enquanto falamos, Marine Le Pen não tem chance de ganhar a eleição presidencial, e a extrema direita francesa se dividiu em dois campos, com o ex-polemista de televisão Éric Zemmour reunindo aqueles com uma perspectiva mais étnica, de nacionalidade e mais liberal na economia. Já Viktor Orbán encarna o Estado e o sucesso há muito tempo. No entanto, ele sempre jogou seu próprio jogo em relação à extrema direita europeia e, portanto, esnobou Marine Le Pen por muito tempo. Na verdade, a extrema direita europeia é poderosa hoje, mas sem nenhuma perspectiva clara.
Marine Le Pen disse que o Putin que ela apoiou no passado não é o mesmo homem que invadiu a Ucrânia. Em outras palavras, quem mudou foi Putin. Que peso pode ter o apoio de longo prazo a Putin e à Rússia no destino eleitoral de Marine Le Pen?
Tradicionalmente, questões de política internacional importam muito pouco no voto dos franceses. No caso de Marine Le Pen, sua base são as classes trabalhadoras, sem dúvida mais sensíveis aos seus problemas de poder aquisitivo. Éric Zemmour perdeu quase um quarto de suas intenções de voto desde o início do conflito. De acordo com a imprensa francesa, é devido a uma rejeição ao excesso de “Putinismo”. Mas é tão certo assim? Ao mesmo tempo, o presidente Macron anunciou que ia concorrer novamente. Zemmour atrai as classes média e, às vezes, alta. Não teria sido uma burguesia que se encantou com a aventura extremista e agora retornou ao presidente que era ao mesmo tempo liberal e tranquilizador? Parece-me que as duas perspectivas menos excludentes podem ter se alimentado mutuamente: a entrada de Macron na campanha e o início da guerra fizeram com que essas classes médias pensassem que era melhor um homem de experiência do que um “aventureiro”.
Que peso a pandemia pode impor à extrema direita europeia nas próximas eleições? A onda populista vai retroceder?
A pandemia mostrou que a globalização fez com que a Europa perdesse seu aparato industrial em benefício da Ásia, o que é bastante positivo para a imaginação da extrema direita. Por outro lado, o peso da questão da imigração caiu na opinião pública, o que é ruim para a extrema direita. Por enquanto, o “software” da extrema direita europeia continua sendo aquele que foi forjado entre o ataque de 11 de setembro e a crise de refugiados de 2015: toda o problema se resume ao Islã. Obviamente, em um momento em que a opinião pública está preocupada com a pandemia e com a Rússia, isso é um pouco limitado. Portanto, toda a questão é se eles serão capazes de se renovar.
Você considerou a possibilidade de uma internacional populista como uma subestimação da coerência ideológica entre os extremistas. O que os impede de ter uma ação comum?
Desde a década de 1950, houve inúmeras tentativas de construir tal Internacional. Mas mesmo com um grupo formado no Parlamento Europeu, nunca se conseguiu reunir todos. Há uma questão institucional: aliar-se no nível internacional é globalmente excluir alianças com outros partidos dentro de seu país, porque os outros partidos se aproveitam disso para destacar seus aliados extremistas. Depois, há um aspecto cultural: os partidos nacionalizados tendem a favorecer seu egoísmo nacional. Por fim, há um aspecto ideológico: o que construir juntos? Por exemplo, a extrema direita ucraniana de que Putin tanto fala defende o Intermarium, a criação de uma unidade política do Mar Báltico ao Mar Negro, enquanto o RN defende uma união de estados-nação, incluindo a Rússia, etc.
Por que a estratégia de Steve Bannon falhou na Europa? O que mobiliza a extrema direita europeia que a diferencia da extrema direita americana?
Steve Bannon veio à Europa para explicar que um americano iria liderá-los, sem entender o quão indelicada era essa atitude em relação aos nacionalistas europeus. Mas, além disso, seu discurso foi o da aliança transatlântica das nações ocidentais contra a China, enquanto conversava com pessoas que sonhavam com uma aliança com a Rússia contra o Islã. Resumindo, Bannon é o cara que manda um aleijado comprar um par de sapatos para si e sai murmurando que o outro é um mal-agradecido...
Por que as pessoas que ingressam no mercado de trabalho com as qualificações mais baixas são mais suscetíveis ao populismo xenófobo do que as pessoas com diploma universitário? Do que elas têm medo?
Temos um continente que produz serviços e tem turismo, mas perdeu grande parte de suas indústrias. Inevitavelmente, as pessoas não qualificadas são as menos adequadas ao mercado de trabalho. Como resultado, o discurso contra os “aproveitadores de baixo” (imigrantes que seriam “assistidos”) e os “aproveitadores de cima” (um capitalismo transnacional muito teórico, a extrema direita europeia defendendo o capitalismo nacional) funciona melhor entre essa pessoas. Além disso, as classes média e alta estão mais convencidas do caráter positivo do capitalismo: quando Marine Le Pen quis defender um Estado estratégico intervindo muito na economia, com muitas medidas sociais, e deixando o euro e a União Europeia , ela pensou que isso lhe daria credibilidade, que aumentaria sua base eleitoral ter propostas econômicas e legais. Ao contrário, confinou-a às classes trabalhadoras. Ela se viu em 2012 e 2017 com um resultado eleitoral pior do que seu pai (Jean Marie Le Pen) em 1988 entre as profissões intelectuais (professores, jornalistas etc.).
Como o Estado russo se comporta em relação a grupos como a Legião Imperial e o MIR e como esses grupos julgam o governo de Volodmyr Zelensky? Com a guerra, essa parte da extrema direita pode continuar o processo de radicalização violenta?
O MIR representa um nacionalismo anti-ucraniano e freneticamente anti-semita: para eles, o governo de Kiev é o dos judeus. Sua estratégia tem sido construir bases através da diáspora russa (uma estratégia clássica que existe entre os nacionalistas russos desde a Revolução de 1917). Mas se Moscou tem todo o interesse neste empreendimento de desestabilização, os nacionalistas da Europa simplesmente não têm interesse nisso, especialmente porque muito claramente, no nível eleitoral, o anti-semitismo é a pior das coisas. Como resultado, o MIR não tem vínculos com partidos importantes: quando seu líder foi recebido em Madri, em 2019, foi pelo pequeno grupo Democracia Nacional e não pelo Vox, e, na França, foi apoiado pelo pequeno grupo Les Nationalistes (Os Nacionalistas, com cerca de cinquenta ativistas) e não por Marine Le Pen.
Renunciar a todos os vínculos com esses grupos extremistas e negacionistas é essencial para o sucesso da estratégia de Marine Le Pen. Para vencer, Marine Le Pen, Matteo Salvini e outros representantes da extrema direita devem buscar a normalização de seus partidos políticos. Mas é possível fazer isso sem perder seus eleitores?
É um paradoxo e um problema constante: se um partido de extrema-direita é muito radical, fica marginalizado; se for muito moderado, será marginalizado. Marine Le Pen sempre citou o caso do italiano Gianfranco Fini: esse neofascista acabou mais centrista, moderado, respeitoso com o Estado de direita do que o primeiro-ministro Silvio Berlusconi. Como resultado, seu partido está morto hoje. A extrema direita está sempre no fio da navalha, daí o fato de que o FN na França ou o Vlaams Belang na Bélgica podem ser partidos antigos, com votações muito honrosas, sem nunca conseguir derrubar a mesa e tomar o poder.
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