A Rússia elevou sua produção de equipamentos militares para recompor estoques de armas e munições e, segundo analistas, provavelmente conseguirá sustentar sua ofensiva na Ucrânia pelo menos por mais dois anos — uma informação preocupante para Kiev, cujas forças estão acometidas por faltas de armamentos e soldados e perdem terreno nos campos de batalha.
Ainda que tenha dificuldades para expandir capacidades e desenvolver armas modernas capazes de melhorar o desempenho de combate de seu Exército, o Kremlin tem capitalizado sobre sua vantagem esmagadora em número de soldados, sua capacidade de armá-los, com armas antigas mas confiáveis, e sua disposição de tolerar baixas pesadas.
Ao recalibrar sua economia para um ritmo de guerra, forçando as fábricas existentes a incrementar a atividade para produzir ou renovar equipamentos antigos, comprando componentes do Irã, da China e da Coreia do Norte, a Rússia recuperou-se surpreendentemente de seus insucessos iniciais na Ucrânia.
“A Rússia não aumentou a produção de seu equipamento moderno de combate”, afirmou o economista russo Nikolai Kulbaka. “Mas elevou muito a fabricação de armamentos mais simples, como fuzis e projéteis; equipamentos em massa para a massa de soldados.”
Conforme a ajuda militar do Ocidente para Kiev diminuiu nos meses recentes, incluindo dos Estados Unidos, as forças russas retomaram a iniciativa na Ucrânia, onde conseguem agora disparar sistemas de artilharia e lançar drones a um ritmo muito maior que os ucranianos.
A Rússia rearmou suas forças reformando equipamentos antigos — muitos da era soviética. As peças de reposição fabricadas na China, na Coreia do Norte e no Irã são de baixa qualidade, afirmaram especialistas, mas ao adquiri-las Moscou demonstrou sua capacidade de driblar sanções.
O equipamento da era soviética, incluindo mísseis e bombas aéreas guiadas, compensou o fracasso russo, pelo menos até aqui, em produzir e acionar armamentos novos e avançados, como os tanques T-14 Armata, que teoricamente poderiam se rivalizar com os Abrams americanos e os Leopards alemães que o Ocidente forneceu para a Ucrânia.
Inicialmente, autoridades americanas acreditaram que a guerra na Ucrânia tinha degradado seriamente as Forças Armadas da Rússia. Mas o general Christopher Cavoli, chefe do Comando Europeu dos EUA, declarou ao Congresso americano este mês que Moscou tem agora mais soldados do que no começo da invasão e que suas Forças Armadas “mostraram uma capacidade acelerada de aprender e se adaptar a desafios no campo de batalha tanto taticamente quanto tecnologicamente”.
No fim do ano passado, o presidente russo, Vladimir Putin, aprovou um aumento-recorde no gasto militar em 2024, planejando destinar às Forças Armadas cerca de US$ 115 bilhões, quase um terço do orçamento total do país e o dobro do que foi alocado para os militares em 2021, ano anterior à invasão à Ucrânia.
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Nos meses recentes, graduadas autoridades russas, incluindo o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, divulgaram números-recorde, comunicando a Putin que o complexo industrial-militar quadruplicou a fabricação de veículos blindados, quintuplicou o fornecimento de tanques e elevou em quase 17 vezes a produção de drones e projéteis de artilharia.
Esses números, incluindo uma alegação de que 1,5 mil tanques foram fabricados em 2023, não puderam ser verificados independentemente porque o governo russo não revela estatísticas sobre produção de militar e os custos da guerra — e também porque militares com frequência são criativos nas contabilidades, misturando equipamentos novos e restaurados para mostrar resultados positivos.
“Minha impressão é que os montantes de Shoigu e o número de 1,5 mil tanques fornecido em 2023 são tecnicamente corretos, mas também incluem equipamentos recuperados”, afirmou o analista especializado em guerra terrestre Michael Gjerstad, do Instituto Internacional de Estudos Estratégicos (IISS), sediado em Londres. “Poderia haver uma porcentagem de tanques canibalizados e suas partes sendo usadas para fabricar outros tanques que também poderia ser adicionada à estatística.”
Gjerstad disse acreditar que a Rússia é capaz de fabricar até 330 tanques anualmente, mas está de fato construindo a metade disso. Ainda assim, a Rússia conseguiu repor os cerca de 1.140 tanques, que, estimou-se, suas forças perderam em 2023, restaurando blindados antigos.
Especialistas notam que o fornecimento de equipamentos já existentes é limitado e que desenvolver capacidade para construir novos veículos de combate quando os modelos antigos se esgotarem é um desafio crítico para a Rússia.
Os últimos cascos novos de tanques T-80 foram fabricados décadas atrás. A Rússia, em vez de produzir cascos novos, substituiu os equipamentos que eles continham e recuperou tanques fabricados mais de 50 anos atrás. Mas no outono (Hemisfério Norte), comandantes militares russos ordenaram a retomada da produção da Omsktransmash, a Fábrica de Engenharia de Transporte de Omsk, onde o T-80 é produzido.
“Essa é a tarefa seguinte”, afirmou na ocasião Alexander Potapov, CEO da fabricante de tanques Uralvagonzavod, empresa-mãe da Omsktransmash, ao meio de imprensa estatal Zvezda.
Em 2019, engenheiros da fábrica disseram à imprensa estatal que leva um mês para restaurar um tanque.
Mas Pavel Aksenov, analista militar e correspondente de defesa do serviço da BBC em língua russa, afirmou que até aqui o esforço não rendeu. “Eles não conseguiram reativar essa manufatura em série”, afirmou Aksenov. “É muito mais fácil aumentar os níveis de produção existentes.”
É similarmente improvável que a Rússia seja capaz de fornecer ao seu Exército equipamentos mais modernos, como o tanque T-14 Armata, que foi revelado juntamente com uma série de novos veículos de combate na parada do Dia da Vitória de 2015 e infamemente apresentou defeito durante os ensaios.
No início de 2023, a imprensa estatal russa publicou reportagens citando fontes militares não identificadas afirmando que os tanques Armata tinham sido testados nas linhas de frente na Ucrânia, ocasionando especulações de que logo seriam fornecidos às unidades nos campos de batalha.
Mas no mês passado o diretor da fabricante russa de armamentos Rostec, Sergei Chemezov, afirmou que os tanques Armata não serão acionados na Ucrânia em razão de seu alto custo.
“Evidentemente ele é muito superior aos outros tanques em termos de funcionalidade, mas também é caro”, afirmou Chemezov, de acordo com a imprensa estatal. “Portanto é improvável que o Exército use-o neste momento. É mais fácil comprar os T-90.”
Nem a Uralvagonzavod, que fabrica o Armata, nem autoridades revelaram o preço do tanque, mas em 2011 especialistas russos estimaram em cerca de US$ 7,9 milhões, em comparação com aproximadamente US$ 3,6 milhões pelos T-90S modificados.
Aksenov afirmou que não há evidência de que a produção do Armata foi finalizada.
“Eles não tiveram tempo suficiente para isso antes da guerra”, afirmou ele. “E apesar de ser lógico começar com esse nível de modernização, porque a tecnologia soviética é muito ultrapassada, e a invasão mostrou isso, uma guerra exige uma abordagem diferente.”
“Você precisa de equipamento confiável fornecido constantemente à linha de frente bem conhecido pelos soldados, sem defeitos de fabricação e com bastante peças de reposição para consertos”, continuou Aksenov.
Gjerstad afirmou que a Rússia buscou compensar os fornecimentos ocidentais de equipamentos avançados para a Ucrânia priorizando quantidade e dando os melhores tanques para as unidades mais bem treinadas, ao mesmo tem que forneceu veículos T-55 e T-62, mais velhos, para as unidades compostas por conscritos e ex-detentos.
“Você prefere três Fords ou um Cadillac?”, disse Gjerstad. “Esse tem sido o pensamento dos russos, algo como sua muleta.”
Na Ucrânia, drones — ou veículos aéreos não tripulados — são ainda mais vitais que tanques.
Para aumentar o fornecimento, a Rússia fechou um acordo com o Irã para construir uma fábrica no Tartaristão, cerca de 800 quilômetros a leste de Moscou, e pressionou por um grande aumento na produção doméstica dos drones-kamikaze Lancet, fabricados por uma subsidiária da gigante da indústria armamentista russa Kalashnikov Concern.
“Eles têm transformado antigos shopping centers em unidades de produção de drones, onde aparentemente foram capazes de aumentar bastante a escala”, afirmou o especialista em drones Fabian Hinz, do IISS.
“A Rússia não tem que virar o Exército mais inovador do planeta”, acrescentou Hinz. “Se os russos conseguirem fazer alguns sistemas funcionar bem, como o Lancet, e então conseguirem exercer força brutal por meio da produção, isso já é perigoso o suficiente.”
Para evitar sanções, a Rússia forjou novas cadeias de fornecimento para obter componentes ocidentais para equipamentos militares de alta tecnologia, com itens chegando através da Turquia, da China e do Casaquistão, afirmaram analistas, conforme o Ocidente tem dificuldades para fazer valer as restrições.
Um relatório recente da Escola de Economia de Kiev concluiu: “A Rússia continua capaz de adquirir grandes quantidades dos componentes que precisa para sua sua produção militar”. As importações dos itens prioritários caíram apenas 10% desde que as sanções foram impostas, constatou o relatório.
A Rússia também buscou matérias-primas. Autoridades de países bálticos pediram no mês passado o banimento da venda de minério de manganês, um componente essencial na produção de aços e ligas, depois que a imprensa da Estônia noticiou que fornecimentos para a Rússia tinham aumentado — com frequência através da Estônia e da Letônia.
A Rússia também tem conseguido adquirir nitrocelulose, um composto necessário na produção de explosivos como projéteis de artilharia, incluindo da Alemanha, de Taiwan e da China, segundo um relatório do Centro de Defesas Estratégicas da Ucrânia. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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