Para solucionar a escassez de soldados disponíveis na Rússia para enviar à linha-de-frente da guerra na Ucrânia, o grupo mercenário Wagner parece estar fazendo uma oferta que espera ser irrecusável para criminosos condenados: um cartão de saída da prisão.
“Depois de seis meses (de guerra) você recebe um perdão, e não há opção de você voltar para a prisão”, disse um homem vestido com uniformes bege, dirigindo-se a uma multidão de presos russos sob um cartaz que dizia “Escolha a vida”. “Aqueles que chegam (na linha-de-frente) e dizem no primeiro dia que aquilo não é para eles levam um tiro”, acrescentou o homem.
A gravação, capturada em vídeo, apareceu na noite de segunda-feira, 12, em canais russos de Telegram, e o homem de uniforme que fez a oferta parece ser Yevgeni Prigozhin, o bilionário apelidado de “chef de Putin”, que também é o conhecido financiador do grupo Wagner.
Com o presidente russo, Vladimir Putin, se recusando a declarar um esforço de guerra nacional, temendo que tal medida seja politicamente prejudicial, o grupo Wagner tem desempenhado um papel cada vez mais importante e público na invasão da Ucrânia.
Não está claro quando o vídeo foi filmado, mas parece fornecer a primeira evidência registrada de uma estratégia de recrutamento que é alvo de rumores há meses: solicitar que pessoas condenadas troquem uniformes de detento por uniformes militares como forma de reabastecer as fileiras da Rússia no campo de batalha.
A falta de reforços russos aparentemente foi parte do motivo pelo qual as tropas de Moscou não estavam preparadas para uma contraofensiva ucraniana nos últimos dias, que expulsou os ocupantes russos da maior parte da região nordeste de Kharkiv. O bem-sucedido avanço ucraniano só aumentou os problemas da Rússia, com alguns analistas dizendo que o país não é mais capaz de operações ofensivas, mas só pode defender o território que agora controla.
Prigozhin, cujo apelido de chef vem dos lucrativos contratos de catering (tipo de serviço de buffet à la carte) concedidos a ele pelo Kremlin, é conhecido como um ativo defensor dos objetivos políticos de Putin e é procurado pelo FBI por supostamente interferir nas eleições dos EUA. Durante anos, porém, ele negou ligações com o grupo Wagner, apesar das crescentes evidências de que lucra com o envio de mercenários ao Oriente Médio e à África para promover clandestinamente a agenda de Moscou.
Para Entender
No vídeo, ele começa seu discurso dizendo abertamente que representa o grupo Wagner e está procurando recrutas, pois a guerra na Ucrânia “é difícil e nem se compara às guerras da Chechênia ou a qualquer outra”.
A empresa de catering de Prigozhin, Concord, disse timidamente em um comunicado na quinta-feira, 15, que “pode confirmar que a pessoa no vídeo tem uma enorme semelhança com Yevgeni Viktorovich (Prigozhin)”.
“A julgar por sua retórica, ele de alguma forma lida com a implementação das tarefas da operação especial e o faz com sucesso… além disso, a pessoa que fala no vídeo tem uma ótima entrega, assim como Yevgeni Viktorovich (Prigozhin)”, disse a empresa em sua declaração.
Outra declaração postada pelo serviço de imprensa de Concord veio do próprio Prigozhin: “Se eu fosse um prisioneiro, sonharia em me juntar a esse time amigável para não apenas redimir minha dívida com a Pátria, mas também pagá-la com juros”.
“Aqueles que não querem que mercenários ou prisioneiros lutem… que não gostam deste tópico, mandem seus filhos para o front”, disse Prigozhin. “São eles ou seus filhos, decida por si mesmo”.
O grupo Wagner vem liderando um esforço duplo para recrutar homens em toda a Rússia no que os especialistas chamaram de “uma mobilização das sombras”, já que Putin rejeitou os pedidos de mobilização nacional de várias autoridades. Tal conformação quase certamente causaria um alvoroço do público, que foi informado por meses que Moscou está executando apenas uma “operação militar especial” limitada na Ucrânia.
Além de anúncios on-line e banners em dezenas de cidades convidando russos comuns a se alistarem, os recrutadores do grupo Wagner têm percorrido as prisões em busca de homens entre 22 e 50 anos - mas dizem que uma exceção é possível para homens mais velhos se estiverem em “boa forma física”.
No vídeo, Prigozhin diz que o primeiro grupo de condenados lutou na Ucrânia em 1º de junho, quando as tropas mercenárias estavam ajudando a Rússia a tomar a usina de Vuhlehirska, na região de Donetsk. O sucesso em capturar o local foi exibido na TV estatal russa, no primeiro cumprimento público à “orquestra” - como o Exército privado é frequentemente chamado, em referência ao seu homônimo, o compositor clássico alemão Richard Wagner.
“Havia 40 pessoas de São Petersburgo, (de uma) instalação de alta segurança, reincidentes”, disse Prigozhin. “Eles entraram nas trincheiras inimigas, cortaram-nas com facas; houve três mortos e sete feridos. Dos três mortos, um tinha 52 anos e já havia cumprido pena de 30 anos. Ele morreu como um herói.”
A Gulagu Net, uma organização russa de direitos humanos que ajuda condenados, recebeu pela primeira vez ligações e cartas de presos relatando sobre os esforços de recrutamento do grupo Wagner em março. O chefe da Gulagu Net, Vladimir Osechkin, disse ao The Washington Post em entrevista no mês passado que o esforço era muito limitado na época.
“Aquelas eram colônias para ex-policiais. Eles estavam procurando por pessoas com experiência em combate, que participaram de operações de contraterrorismo e várias hostilidades”, disse Osechkin.
“Estamos falando de forças especiais aqui, pessoas que sabem o que é uma arma”, acrescentou. “Eles foram informados de que seriam comandantes, que a Pátria precisa deles, mas até onde entendemos, esta campanha falhou porque eles não conseguiram recrutar muitos deles”.
Mas como a campanha militar da Rússia na Ucrânia estagnou desde os ganhos iniciais, o esforço para encontrar novos recrutas ganhou uma nova urgência.
A partir de julho, o número de ligações que recebemos cresceu exponencialmente, dizendo que o grupo Wagner lançou uma campanha de recrutamento em massa em colônias regulares
Vladimir Osechkin, chefe do Gulagu Net
A abordagem de alistamento teve duas vertentes: alguns condenados receberam funções de apoio, como cavar trincheiras e fazer vários trabalhos de construção perto de áreas controladas pelos separatistas na região de Donbas. Outros foram recrutados para unidades de 12 pessoas encarregadas de “missões especiais de combate”, embora muitas vezes tivessem pouco treinamento militar.
“Tudo aponta para o fato de que o Exército russo tem escassez de pessoal e eles estão tentando reabastecê-lo usando prisioneiros com os quais não se importam”, disse Osechkin.
Outra organização de direitos civis, a Russia Behind Bars, que há muito investiga as condições horríveis nas prisões russas, estimou que cerca de 7 mil a 10 mil condenados já foram enviados para lutar na Ucrânia.
Ambas as organizações expressaram preocupação de que os prisioneiros estejam sendo levados a participar de uma missão suicida em potencial sem garantias legais, bem como a preocupação de libertar criminosos condenados potencialmente violentos que cumprem sentenças de décadas por assassinato ou agressão agravada.
“Além de ser imoral e muito perigoso, também significa que o conceito de ‘crime’ não existe mais na Rússia; eles enxugaram os pés no sistema judicial”, escreveu a chefe da Russia Behind Bars, Olga Romanova, em um post no Facebook.
De acordo com o Gulagu Net, Putin premiou pelo menos um condenado russo que lutou na Ucrânia com uma medalha de bravura: Ivan Neparatov, membro de um grupo do crime organizado que cumpriu 12 anos de sua sentença de 25 anos por assassinato, roubo e sequestro.
No vídeo, Prigozhin disse aos detentos da colônia penal, que o The Washington Post identificou como sendo na pequena república de Mari El, na Rússia central, que ele estava procurando os “stormtroopers” mais descarados, dispostos a serem jogados nas zonas de guerra mais acirradas como infantaria.
“Você tem cinco minutos para tomar uma decisão”, disse ele.
Quanto à confiança e garantias, você tem alguém que possa tirá-lo vivo da prisão? Alá e Deus podem tirá-lo (morto). Vou tirar você daqui vivo. Mas não é sempre que eu te trago de volta vivo.
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