Em meio a preocupações com a falta de alimentos no mundo por causa da guerra na Ucrânia, a Rússia afirmou nesta quinta-feira, 19, que está condicionando a abertura dos portos do Mar Negro à suspensão das sanções ocidentais. Ao mesmo tempo, a Organização das Nações Unidas (ONU) voltou a alertar que dezenas de milhões de pessoas estão em risco de passar fome por causa do bloqueio russo aos portos ucranianos que impactam no fornecimento global de grãos.
“É preciso não apenas apelar para a Federação Russa, mas também analisar profundamente todo o complexo de razões que causaram a atual crise alimentar e, em primeiro lugar, são as sanções que foram impostas contra a Rússia pelos EUA e pela UE que interferem no livre comércio normal, abrangendo produtos alimentícios, incluindo trigo, fertilizantes e outros”, afirmou o vice-ministro das Relações Exteriores da Rússia, Andrei Rudenko, citado pela agência Interfax.
O Ministério das Relações Exteriores russo disse que só considerará abrir o acesso aos portos ucranianos do Mar Negro se a remoção das sanções contra a Rússia for considerada. “O Kremlin não impôs restrições. Não precisamos rever nada aqui, as restrições impostas pelos Estados Unidos, países europeus e outros devem ser levantadas. São essas restrições que não nos permitem avançar”, afirmou o porta-voz do governo russo, Dmitri Peskov na última terça-feira, 17.
E completou: “De fato, a situação é preocupante. Tudo isso não é culpa nossa, nossos fornecedores estão interessados em manter seus contatos comerciais internacionais, mas, infelizmente, essas sanções foram introduzidas, que estão crescendo em todo o mundo”, disse, citado pela Interfax.
O ministro das relações exteriores da Ucrânia, Dmitro Kuleba respondeu às declarações russas. “A Rússia tem total responsabilidade não apenas por matar, torturar e estuprar ucranianos, mas também por pessoas famintas em todo o mundo, inclusive na África”, escreveu no Twitter.
As declarações ocorrem em meio a pedidos da ONU para que a Rússia libere os portos do Mar Negro a fim de evitar o colapso na alimentação global. “A guerra na Ucrânia, além de todas as outras crises globais, ameaça dezenas de milhões de pessoas com insegurança alimentar, desnutrição, fome em massa e fome”, disse o secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, no Twitter.
A Ucrânia é um grande exportador de trigo, alimentando bilhões de pessoas com pão, massas e alimentos embalados. Mas os navios de guerra russos impossibilitaram as exportações pelos portos do Mar Negro, como Odessa, no sul da Ucrânia.
Desde a invasão, a Ucrânia foi forçada a exportar seus grãos por trem ou por meio de seus pequenos portos no rio Danúbio. A interrupção é um fator importante no aumento deste ano nos preços globais do trigo.
Em 2020, a Ucrânia foi o quarto e quinto maior exportador mundial de milho e trigo, respectivamente, em valor, de acordo com o Observatory of Economic Complexity, um site de dados. A Rússia foi o maior exportador mundial de trigo e fertilizantes em 2020, mostrou o mesmo banco de dados.
O presidente ucraniano Volodmir Zelenski já havia feito um apelo para que a Rússia liberasse o porto de Odessa para permitir o embarque de trigo. Segundo ele, o porto está sem movimento mercante pela primeira vez desde a Segunda Guerra Mundial. Após o alerta de Zelenski, a Rússia conseguiu expandir ainda mais seu domínio pelo sul, ao conquistar também a cidade portuária de Mariupol, com acesso ao mar de Azov.
As forças russas apreenderam a extensa usina siderúrgica Azovstal de Mariupol na terça-feira, completando a captura da cidade em grande parte destruída. Com isso, as preocupações com o fornecimento de grãos pelos portos ucranianos se renovaram.
O alerta de Guterres vem em cima de uma declaração do diretor-executivo do Programa Mundial de Alimentos, David Beasley, que disse em uma reunião especial das Nações Unidas sobre segurança alimentar na quarta-feira que o bloqueio está levando o mundo a um caos induzido pela fome.
“A falha em abrir os portos será uma declaração de guerra à segurança alimentar global, resultando em fome, desestabilização de nações e migração em massa por necessidade”, disse Beasley. “Se você tem algum coração, por favor, abra esses portos”, Beasley implorou diretamente a Putin. Segundo ele, o programa da ONU alimenta cerca de 125 milhões de pessoas e compra 50% de seus grãos da Ucrânia.
Andrei Rudenko, disse que o presidente Vladimir Putin discutiu a questão das exportações de grãos da Ucrânia com Guterres em Moscou no mês passado. “Esperamos que sejam encontradas soluções que sejam benéficas para todos”, disse ele, segundo a agência de notícias Interfax.
O impacto do conflito no abastecimento de alimentos também foi sentido internamente, já que o controle russo sobre partes do sul e leste da Ucrânia bloqueou o acesso a terras agrícolas e estoques de grãos.
Na quarta-feira, um relatório parlamentar ucraniano disse que a Rússia havia roubado 400.000 toneladas de grãos no território que Moscou controla nas regiões de Kherson, Zaporizhzhia, Donetsk e Luhansk e disse que isso poderia levar à fome na região.
“Além disso, as tropas russas destroem elevadores, armazéns, máquinas agrícolas e infraestrutura com seus ataques de mísseis e bombas, interrompendo assim a campanha de semeadura”, disse o relatório, escrito por um comitê de desenvolvimento econômico.
O Kremlin também afirmou nesta quinta que a Rússia veio se preparando desde o final de 2021 para a crise de alimentos que afeta o mundo. “A principal causa da fome no mundo neste ano são as medidas econômicas impensadas dos Estados Unidos e da UE”, disse um conselheiro do Kremlin, Maxim Oreshkin, durante um fórum de jovens em Moscou.
Oreshkin destacou, segundo as agências de notícias russas, que o presidente Putin preparou o país para as consequências de uma crise alimentar mundial a partir do final de 2021, ou seja, antes da ofensiva contra a Ucrânia que começou em fevereiro de 2022 e quando o temor de um conflito já provocava o aumento dos preços dos alimentos.
Putin “entendeu que as questões [alimentares] poderiam afetar a Rússia. Por este motivo, começamos desde o fim do ano a preparar a Rússia de maneira ativa para a fome no mundo”, acrescentou. Na época, a Rússia já enfrentava a inflação dos preços dos alimentos e adotou restrições ou tarifas sobre as exportações de cereais, óleos e fertilizantes./AFP, REUTERS, NYT e W.POST
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