MOSCOU - A Rússia disse nesta segunda-feira, 17, que interrompeu sua participação no acordo de grãos do Mar Negro, que permitia à Ucrânia exportar seus grãos por mar, apesar de um bloqueio durante a guerra, derrubando um acordo considerado essencial para manter os preços globais de alimentos estáveis.
O anúncio foi o golpe mais sério ao acordo de um ano que havia sido um raro exemplo de cooperação entre as nações em guerra e ajudou a aliviar parte da disparada dos preços dos alimentos no mundo em consequência da invasão em grande escala da Rússia.
O pacto - negociado pelas Nações Unidas e pela Turquia em julho passado - visava aliviar uma crise global de alimentos, permitindo que os grãos ucranianos bloqueados pelo conflito Rússia-Ucrânia fossem exportados com segurança. Sob o acordo, o último navio deixou a Ucrânia no domingo.
A invasão na Ucrânia em fevereiro de 2022 fez com que os preços globais dos grãos disparassem. O país e a Rússia estão entre os maiores exportadores de commodities do mundo.
Os russos ameaçaram sair do pacto porque suas demandas para melhorar suas próprias exportações de grãos e fertilizantes não foram atendidas. A Rússia também reclamou que não chegavam grãos suficientes aos países pobres.
As Nações Unidas argumentaram que o acordo beneficiou esses estados, ajudando a reduzir os preços de alimentos em mais de 20% globalmente. Quase 33 milhões de toneladas métricas de milho, trigo e outros grãos foram exportados pela Ucrânia sob o acordo.
O porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov, disse a jornalistas na segunda-feira que o acordo foi “suspenso”, mas acrescentou que a decisão não estava ligada ao ataque de horas antes na Ponte do Estreito de Kerch, que liga a Rússia à Crimeia ocupada. As autoridades russas culparam a Ucrânia pelo ataque à ponte, mas Kiev não assumiu a responsabilidade.
Falando sobre o acordo de grãos, Peskov disse: “Assim que a parte ucraniana for cumprida, o lado russo retornará imediatamente à implementação desse acordo”.
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O acordo, conhecido como Acordo dos grãos do Mar Negro, e negociado pelas Nações Unidas e pela Turquia, expiraria na segunda-feira. Não houve declaração imediata das Nações Unidas ou da Turquia sobre o anúncio da Rússia.
Um funcionário da ONU, que falou sob condição de anonimato ao The New York Times, devido à sensibilidade do assunto, disse que as Nações Unidas receberam notificação da decisão da Rússia.
Na semana passada, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, enviou uma carta com propostas ao presidente Vladimir Putin no esforço de atender às condições da Rússia para a prorrogação do acordo.
Os negociadores da ONU e da Turquia passaram o fim de semana esperando uma resposta de Moscou. As exportações de grãos dos portos da Ucrânia caíram quase a zero nos dias anteriores ao término do acordo. A Rússia reclamou inúmeras vezes do acordo, que considera unilateral a favor da Ucrânia.
Acordo bem-sucedido
Um raro exemplo de negociações frutíferas entre as partes em conflito, o acordo aliviou com sucesso a escassez resultante dos bloqueios nos primeiros meses da guerra, que fizeram disparar os preços globais do trigo. Isso permitiu à Ucrânia reiniciar a exportação de milhões de toneladas de grãos que havia parado por meses, e foi renovado várias vezes, mais recentemente em maio.
Mas Moscou argumentou que o acordo beneficiou apenas a Ucrânia, e as sanções ocidentais restringiram a venda de produtos agrícolas da Rússia. Na semana passada, em um esforço para atender às demandas da Rússia, Antonio Guterres enviou a Putin propostas que, segundo ele, “eliminariam os obstáculos que afetam as transações financeiras” por meio do banco agrícola da Rússia, permitindo a continuidade dos embarques de grãos ucranianos.
Além da esperança de transações financeiras mais tranquilas, a Rússia buscou garantias que facilitariam as exportações de seus próprios grãos e fertilizantes e a reabertura de um oleoduto de amônia que atravessa a Ucrânia.
Na semana passada, Putin disse que a Rússia iria “suspender nossa participação neste acordo”, de acordo com a Tass, uma agência de notícias estatal. “E se todos reiterarem que todas as promessas feitas a nós serão cumpridas – que cumpram essas promessas. E vamos aderir imediatamente a este acordo. De novo.” No ano passado, a Rússia interrompeu a participação nas inspeções que faziam parte do acordo, apenas para voltar em questão de dias.
A Ucrânia exportou 32,8 milhões de toneladas de grãos e outros alimentos desde o início da iniciativa, segundo dados da ONU. Sob o acordo, os navios têm permissão para passar por embarcações da marinha russa que efetivamente bloquearam os portos da Ucrânia desde o início da invasão em grande escala da Rússia em fevereiro de 2022. Os navios são inspecionados na costa de Istambul, em parte para garantir que não estejam transportando armas.
O que é o acordo de grãos ´do Mar Negro?
Em julho do ano passado, Ucrânia e Rússia assinaram um acordo em Istambul que permitiu a exportação de cereais ucranianos bloqueados nos portos do Mar Negro pela guerra e que são essenciais nos mercados mundiais.
Pelo acordo, a Rússia permitiria a exportação dos grãos ucranianos através do Mar Negro, com ajuda de um centro conjunto de comando e controle estabelecido em Istambul para monitorar as operações e resolver quaisquer disputas.
Pelo acordo, delegados das partes envolvidas, um ucraniano, um russo, um turco e um representante da ONU, assistidos por suas respectivas equipes, monitoram a passagem dos grãos para exportação.
A inspeção dos navios de transporte de grãos é uma exigência de Moscou, que quer garantir que armas não sejam entregues simultaneamente à Ucrânia.
Esses controles não eram realizados no mar como planejado por razões práticas, mas na Turquia, em Istambul, que possui dois importantes portos comerciais, na entrada do Bósforo (Haydarpasa) e no Mar de Mármara (Ambarli). Dirigidas por representantes das quatro partes, as vistorias aconteciam na saída e na chegada das embarcações.
Os russos e ucranianos concordam em respeitar os corredores de navegação pelo Mar Negro, livres de qualquer atividade militar. Os barcos partiam de três portos ucranianos - Odessa, Pivdenni e Chornomorsk - com “pilotos ucranianos” abrindo caminho para os cargueiros.
Após a partida da Ucrânia, os navios serão escoltados por embarcações ucranianas (provavelmente militares) abrindo caminho para a saída para as águas internacionais ucranianas.
Em contrapartida, a Rússia conseguiu firmar um acordo para facilitar a exportação de produtos agrícolas e fertilizantes russos a pedido de Moscou, que queria garantir que as sanções ocidentais não os afetassem direta ou indiretamente
Essa é uma exigência russa que se tornou uma condição indispensável para a assinatura do acordo./AFP, NYT e W.POST
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