Exibições clandestinas de arte contra a guerra na Ucrânia reúnem russos contrários a Putin

Repressão sobre artistas contrários ao conflito na Ucrânia produz exposições secretas de arte nas principais cidades do país

PUBLICIDADE

Por Robyn Dixon

SÃO PETERSBURGO — O ponto de encontro para visitar a exposição é uma parada de ônibus diante de um parque coberto de neve, na cidade de São Petersburgo, no norte da Rússia, ao anoitecer. Não há venda de ingressos, e nenhum website promove o evento – uma mostra secreta, clandestina, de arte russa de protesto contra a guerra.

PUBLICIDADE

Pouca gente se junta, seus olhos vagueiam curiosos de rosto em rosto. Uma artista esguia trajando calças pretas e justas, uma jaqueta escura e acolchoada e um xale preto cobrindo o cabelo chama nossa atenção, acena positivamente com a cabeça discretamente e nos pede que desliguemos os celulares, para evitar rastreamento dos agentes de segurança.

Em meio à repressão sobre ativistas defensores de direitos humanos, advogados e jornalistas promovida pelo presidente Vladimir Putin, artistas russos contrários à guerra estão entrando na clandestinidade, reeditando as exposições secretas dos tempos soviéticos, encontrando-se em segredo e transmitindo detalhes boca a boca.

Artistas da Rússia se opõem à guerra na Ucrânia com exposições secretas. Obras de arte exibidas criticam Vladimir Putin Foto: Mary Gelman/The Washington Post

Para alguns, entrar na clandestinidade é libertador. Para outros, é uma escolha dolorosa, à medida que o regime asfixia o dissenso público e retrata a guerra como uma batalha existencial pela sobrevivência da Rússia à qual somente traidores se opõem. Na Rússia, criticar as Forças Armadas ou até tornar públicos abusos de militares russos cometidos na Ucrânia é crime.

A gente se afasta do ponto de ônibus em grupo, desordenadamente. Delineando um grande arco passo a passo em torno de meio quarteirão, nós mergulhamos num jardim de poças de neve, passamos por um café e finalmente entramos por uma porta — e subimos muitos lances de degraus estreitos. Disseram-nos para não conversar com ninguém que encontrássemos descendo as escadas.

Publicidade

Dentro do corredor fino do apartamento, casacos e sapato empilhados. Um grupo de ativistas e amigos está reunido na cozinha, tomando chá a uma mesa abarrotada de pratos de bolo, cookies, marshmallows e docinhos.

As luzes diminuem conforme a artista que nos buscou no ponto de ônibus se transmuta em guia. É a segunda mostra por aqui, organizada por artistas que foram presos por protestar contra a guerra ou que tiveram obras apreendidas pela polícia em exposições após a invasão.

“Tivemos medo de que se fizéssemos uma exposição a polícia apareceria para nos prender, então decidimos entrar na clandestinidade. É como voltar no tempo, para os anos soviéticos”, afirmou a artista, conduzindo o grupo para uma sala com imagens de ativistas presos, prisioneiros políticos e cenas da polícia russa antidistúrbio colocando manifestantes para correr. Há imagens sinistras de Putin, que é retratado como uma figura demoníaca e cercado de caos e guerra.

As obras não são refinadas, são majoritariamente arte de protesto visceral revelada em cores vivas — e incluem alguns dos cartazes contra a guerra que as pessoas empunharam em protestos. Um pequeno banheiro, com seu cheiro úmido, é adornado com imagens sangrentas de Putin e do porta-voz do Kremlin, Dmitri Peskov.

“A arte exibida aqui é feita por jovens que foram presos por protestar; são pessoas que nós conhecemos”, afirmou a artista. “Aqui tudo é livre, você simplesmente vem e exibe seu trabalho. Não há censura.”

Publicidade

Mas a própria mostra underground é produto do medo. Mesmo enquanto desfrutam de sua liberdade secreta, os artistas sabem que sua clandestinidade atende ao regime.

Obra de arte exposta secretamente na Rússia mostra criança com semblante de tristeza Foto: Mary Gelman/The Washington Post

“Esse processo de medo, esse complexo russo de se sentir uma pessoa pequena, é um estado metal”, afirmou a artista. “Nós crescemos com ele e ficamos constantemente com medo. Você é uma pessoa minúscula, contra um país enorme, que trata a gente como ferramenta para servir ao seu propósito.” Ela acrescentou: “A gente tem supostamente de seguir as regras e ficar quieta, e se você for diferente, eles te esmagam”.

Fora desta mostra clandestina de arte, o mundo mais amplo da arte russa está sob controle cada vez maior do Estado.

No mês passado, em Moscou, Zelfira Tregulova, diretora da renomada Galeria Estatal Tretiakov, foi substituída por Yelena Pronicheva, filha de uma graduada autoridade do Serviço Federal de Segurança (FSB), após o Ministério da Cultura exigir que o museu promova valores morais e espirituais russos.

Em janeiro, uma pintura do renomado artista contemporâneo Dmitri Shagin, de São Petersburgo, foi removida do Museu Russo de Arte Decorativa porque retratava figuras com um cartaz que continha “implicações políticas”.

Publicidade

O lema ofensivo no cartaz, “Os mitki não querem derrotar ninguém”, faz referência ao coletivo Mitki, um popular grupo de artistas hippies da era soviética que Shagin fundou nos anos 80, quando as obras vibrantes, coloridas e brincalhonas de seus integrantes desafiavam a rabugice da era soviética. Na época, Moscou combatia no Afeganistão.

Pintura exibida em galeria secreta de São Petersburgo mostra caixões cinzas com a frase "Nós somos a juventude da nação", fazendo alusão aos jovens russos enviados à guerra Foto: Mary Gelman/The Washington Post

Shagin afirmou que o slogan foi criado em 1984 e resumia com simplicidade a filosofia pacifista do grupo. “A maior ideia por trás da arte mitki é a gentileza”, afirmou ele. “E, sabe, nós tentamos levar alegria para as pessoas. Nossas obras são muito humanistas, pacíficas e positivas.”

Shagin cresceu frequentando exposições de arte organizadas secretamente nos apartamentos das pessoas. O pai dele, Vladimir Shagin, foi um artista underground e não conformista que passou seis anos na cadeia em razão de sua arte no período soviético.

Depois de se graduar na faculdade de arte, Dmitri Shagin começou a produzir no fim dos anos 70, mas também arrumou emprego alimentando uma caldeira a carvão — como muitos artistas não conformistas — porque entre os turnos intensivos havia folgas em que ele podia pintar. Na Rússia de denúncias abundantes da guerra de Putin até artistas consagrados estão hoje vulneráveis.

“Para artistas, como nós, o ambiente não é favorável, porque vemos a censura voltando”, afirmou Shagin. “Eu comecei como artista no fim dos anos 70, e a última vez que uma pintura minha acabou banida foi em 1986.” Ele acrescentou: “O ambiente está estranho. Não sei se eles vão banir os mitki ou nos deixar existir”.

Publicidade

Muitos artistas deixaram o país porque não é possível fazer arte por aqui em razão da censura

Yelena Osipova, artista de São Petersburgo

Yelena Osipova, artista de São Petersburgo, de 77 anos, e importante ativista pela paz, é com frequência afastada de piquetes pela polícia. No mês passado, policiais invadiram uma exposição de seus pôsteres contra a guerra e apreenderam as obras. Ela afirmou que está desolada com a indiferença dos russos em relação à guerra e com o espaço cada vez menor para dissidência e expressão artística.

“Muitos artistas deixaram o país porque não é possível fazer arte por aqui em razão da censura”, afirmou Osipova. “Há muito menos liberdade agora. As exposições estão cada vez mais clandestinas. Ninguém fala delas abertamente, mas elas acontecem o tempo todo.” Osipova disse que não teme ser presa e exibe seu trabalho abertamente.

Mas o apartamento vago em São Petersburgo, de uma russa que se mudou para os EUA, é um santuário acolhedor para artistas underground e ativistas. A emigrante disse para os organizadores usar o espaço como quiserem, mas manter as cortinas fechadas e evitar barulho à noite.

Nossa guia aponta para suas obras penduradas em uma parede, cenas pintadas em tinta acrílica azul e amarela, as cores da Ucrânia. Quando pinta cenas externas, ela usa apenas essas duas cores, no que ela qualifica como “um protesto silencioso”.

Pintura de um coração, exibida em uma galeria de arte secreta em São Petersburgo Foto: Mary Gelman/The Washington Post

Outra artista, mãe de duas crianças que estavam sentadas à mesa da cozinha no apartamento, afirmou que ver vídeos e imagens de civis mortos por forças russas na cidade ucraniana de Bucha foi “como um terremoto. Senti que precisava tirar isso de dentro de mim. Eu não podia ficar calada”.

Publicidade

Ela foi presa em uma manifestação no ano passado, mas posteriormente parou de sair para protestar por temer que as autoridades a prendessem e a afastassem de seus filhos — prática que se torna cada vez mais comum. Em vez disso, ela direcionou seus sentimentos para os traços de um ícone da Mãe de Deus observando, em lágrimas, um míssil voar. “Eu comecei a desenhar apenas para não ficar calada”, afirmou ela. “Eu sentia que palavras não eram suficientes para descrever o que eu estava sentindo.”

Outro artista, Nicolai, instalou um tijolo vermelho, quebrado, sobre uma base preta, assemelhando-o a um edifício arruinado. O título da obra é “Mariupol” — a cidade ocupada pelos russos no sudeste da Ucrânia que acabou quase totalmente destruída por bombardeios. Algumas das obras de Nicolai foram apreendidas pela polícia em exposições. “Estamos numa situação em que o governo nos chama de criminosos porque somos contra a guerra”, afirmou ele.

A artista que guiava os visitantes pela exposição afirmou que o evento é fonte de apoio mútuo e conforto para os artistas. Mas ela vê tempos difíceis diante da Rússia. “Às vezes nos sentimos muito mal, porque nem tanta gente vê o que nós estamos fazendo e não existem maneiras de influenciar os acontecimentos”, afirmou ela. “Minha sensação é que os protestos e a arte não são suficiente para mudar as coisas. Eu não acredito na salvação do país.”

Mas Shagin, otimista a vida toda, afirmou que os artistas, como seu pai na repressiva União Soviética dos anos 50 e 60, não podem ser tripudiados. “A arte é livre”, disse o artista. “Ela não pode ser controlada pelo que lhe é externo, ela sempre será livre.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.