A guerra de Israel contra o grupo terrorista Hamas completa seis meses neste domingo, 7, em um cenário muito distinto do que começou. Depois do ataque do grupo ao território de Israel que deixou quase 1200 israelenses mortos e outros 200 sequestrados para dentro da Faixa de Gaza, Tel-Aviv recebeu o respaldo internacional para seu “direito de defesa”. Agora, a nação enfrenta pressões crescentes, inclusive de seu maior aliado, os EUA, depois que mais de 30 mil palestinos morreram em resposta e a fome é uma iminência no enclave densamente povoado.
O primeiro-ministro Binyamin Netanyahu, que já não vinha de um histórico político tranquilo antes da guerra, agora lida com a suspeita de estar estendendo o sofrimento de israelenses e palestinos para se manter no poder.
“A população já não acredita que o Hamas vai ser aniquilado, Israel se endividou para essa guerra, virou réu no tribunal internacional, perdeu todo o respaldo que tinha de grande parte da comunidade internacional e a gente tá no impasse de não saber o que vai acontecer amanhã porque a gente não confia simplesmente em quem quem toca o país adiante”, avalia o historiador João Miragaya, editor do site Conexão Israel e colaborador do Instituto Brasil-Israel em entrevista ao Estadão.
No episódio mais recente, Netanyahu conversou por telefone com o presidente Joe Biden, onde foi intimado a lidar com a questão humanitária enfrentada no norte de Gaza. A pressão, que já era crescente, escalou esta semana depois que sete funcionários da ONG World Central Kitchen do chef José Andrés morreram em ataque israelense.
Em consequência, o G-20 tem avançado na construção de um consenso sobre a necessidade de constituição do um Estado da Palestina, como forma de encaminhar a paz no Oriente Médio, uma proposta que Israel rejeita completamente.
“Isso só mostra o quanto Israel está isolado da comunidade internacional, inclusive em relação aos debates que acontecem nos meios diplomáticos. O país não entende que o timing da história é favorável aos palestinos”, continua o historiador.
Confira trechos da entrevista:
Que avaliação podemos fazer do decorrer da guerra, desde o seu início até os seis meses que completam agora?
Quando a guerra começou havia uma sensação geral na sociedade israelense que depois de 7 de outubro não ia ser mais possível conviver com o Hamas controlando a Faixa de Gaza. Com o Hamas na verdade existindo como organização política que influencia o dia a dia na Faixa de Gaza. E hoje em dia parece claro para todo mundo que o Hamas não vai ser aniquilado por meio dessa guerra. Já tem pesquisa que saiu na semana passada no canal 13 da televisão de israelense que mostrou que 61% da população israelense não acredita que o Hamas possa ser expulso de Gaza. Contra 20 a 30% que acreditam que sim, o que é uma diferença brutal. A guerra se inicia com a sensação de que não havia o que fazer, que depois daquele massacre era fundamental, não era nem uma questão de escolha, que Israel trabalhasse para realmente aniquilar o Hamas da Faixa de Gaza e trocar a força que controla aquela região. E com o passar do tempo o que a gente foi vendo que isso não ia acontecer e por uma série de razões.
Quais razões?
A primeira dessas razões é que para que você alcance um objetivo político, porque a guerra é um meio para você alcançar objetivos políticos, você precisa de um plano que seja razoável e coerente com a realidade. O governo israelense só esboçou o princípio de um plano político com uma solução para a Faixa de Gaza no fim de fevereiro, e não era um plano detalhado e que nenhum ponto desse plano jamais foi colocado em prática. Com o passar do tempo o que a gente foi percebendo era que Israel se meteu num conflito cujo resultado a gente não vai saber nunca enquanto a gente não tiver um plano. E evidentemente quando a gente é levado para um conflito sem um projeto, ele tende a fracassar, que é exatamente o que está acontecendo agora. Mas mesmo esse plano de fevereiro ele só veio de uma demanda norte-americana e dos partidos israelenses que agora compõem o governo, o que não permitiu que Netanyahu continuasse empurrando com a barriga.
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E qual é a dificuldade de ter um plano?
Porque qualquer plano que o Netanyahu oferecesse para aquela região ia desagradar de uma maneira ou de outra algum componente político que é vital para sua sobrevivência no poder. Ou por um lado os radicais extremistas do próprio governo do Netanyahu que até hoje não desistiram de recolonizar Gaza e restituir os assentamentos e a presença de militares em Gaza de maneira permanente; ou por outro lado os elementos mais moderados da sociedade israelense, que são a maioria, e o governo dos Estados Unidos que insistem para que o plano pro dia depois da Guerra em Gaza inclua, de maneira óbvia, o comando da região por forças palestinas de maneira autônoma. Isso só vai acontecer quando a Autoridade Palestina exercer o controle, ainda que a população israelense tenha os dois pés atrás com essa organização. E o Netanyahu que passou uma década e meia tratando a Autoridade Palestina como inimiga de Israel, e subiu o tom inclusive depois que a guerra começou, não pode propor essa solução.
Então ele empurrou com a barriga, não trabalhou nenhum objetivo, foi empurrando com a barriga também a questão do reféns porque o cessar-fogo desagradava a parte radical do governo, então isso foi também sendo adiado e o que a gente vê hoje são seis meses de guerra dos quais mais da metade dos reféns segue em Gaza. A gente não sabe a situação deles, quantos estão vivos, quantos estão mortos... A população já não acredita que o Hamas vai ser aniquilado, Israel se endividou para essa guerra, virou réu no tribunal internacional, perdeu todo o respaldo que tinha de grande parte da comunidade internacional e a gente tá no impasse de não saber o que vai acontecer amanhã porque a gente não confia simplesmente em quem quem toca o país adiante.
Antes da guerra, Netanyahu se via em uma situação política delicada, com imensos protestos nas ruas pedindo a sua saída, que dão sinais de estarem voltando. Qual é o seu cenário político agora?
O Netanyahu, desde o início da guerra, não assume a responsabilidade sobre o fracasso que foi a defesa israelense ao ataque do Hamas no dia 7 de outubro. E não só o fracasso ao ataque do Hamas, mas também com a política dele que durou mais de uma década que se sustentava em cima da administração do conflito. Ele apostava que o Hamas era um grupo que desejava administrar a Faixa de Gaza e que era possível evitar confrontos se permitisse que o Hamas pudesse receber um orçamento de países árabes, especialmente do Catar, e se fizesse acordos políticos com eles. Através desse status quo ele queria administrar a situação ali. Isso tudo fracassou. E o Netanyahu até hoje, embora tenha sido muitas vezes questionado tanto pela impressa israelense tanto pela imprensa estrangeira, ele jamais admitiu responsabilidade, ele sempre adia a resposta diz: ‘no fim da guerra, a gente vai falar sobre responsabilidade minha e de todos os outros’.
A diferença dele, todo o corpo militar, as forças de segurança e até alguns poucos membros do governo assumiram responsabilidade. Ele não. Por que ele não assume a responsabilidade? Porque ele sabe que a carreira dele política tá finalizada com esse caso. Ele ainda tem esperança de que possa reverter essa situação construindo uma narrativa em cima da qual ele possa sair vencedor. Todas as tentativas que ele esboçou até agora não deram resultado, desde aquela de que a oposição vai trazer o Estado Palestino e só ele vai evitar o Estado Palestino, não surtiu efeito nas pesquisas; ou que outros membros da oposição são fracos e não podem sustentar a política de segurança; ou de que eleições agora são dar para o Hamas o que o Hamas deseja. Nada disso melhora a situação dele nas pesquisas. A população segue querendo eleições, segue desconfiando das reais intenções dele.
A sociedade acredita que Netanyahu está propositadamente prolongando a guerra para benefício próprio?
Sim. Ele aposta neste momento em empurrar a guerra o máximo possível até que ele consiga uma vitória relativa que ele possa apresentar como sua. Agora o discurso dele é falar em uma ‘vitória definitiva’. ‘A guerra não vai acabar até que haja uma vitória definitiva’. O que é essa vitória definitiva? Ele não explica o que é. É a cabeça do Yahya Sinwa, líder do Hamas? Não sei. Só sei que nada funcionou até agora e eu acho difícil que alguma coisa funcione, não porque a população virou de esquerda, mas sim porque a população não confia nele. Agora a situação dele está mais complicada do que nunca.
Houve também duas informações divulgadas pela mídia israelense, uma de que um membro do alto escalão das forças de defesas de Israel disse que se as famílias dos reféns soubessem a diferença que existe entre a exigência de Israel e a demanda do Hamas nos acordos para essa soltura dos reféns, elas ficariam absolutamente indignadas com tudo que está acontecendo. Ele não revelou essa diferença, porque existe uma censura militar devido ao estado de guerra que Israel vive desde 1949. E a outra questão que veio à tona é sobre a discussão do gabinete sobre a proposta norte-americana de cessar-fogo. Os próprios membros do partido do Netanyahu estão a favor dessa proposta, e o gabinete é formado por 11 pessoas com poder de voto, oito pessoas votaram a favor e só três votaram contra, entre os três estão os dois membros extremistas do governo que é o Itamar Ben-Gvir e o Bezalel Smotrich, e o Netanyahu. Então ele está trabalhando junto dos extremistas contra a questão da troca dos reféns, essa sensação que fica para a sociedade e essa informação chegou também a público. Quando parte importante das famílias dos reféns teve acesso a essas informações, eles decidiram que vão direcionar a sua luta política não só pela soltura dos reféns, mas também pela troca de poder, porque perderam a confiança que o governo atual tem a intenção e possa chegar ao acordo pela troca de reféns.
Como Netanyahu tem lidado com as pressões crescentes de aliados por soluções humanitárias? Israel está isolado internacionalmente?
O Biden tem subido o tom semana a semana, cada vez ele sobe mais eu. O caso que foi mais dramático essa semana foi o bombardeio ao comboio da World Central Kitchen, que foi um erro do Exército, mas um erro muito grave. Foi um evento muito dramático e obviamente que toda a comunidade subiu o tom. Mas todos os países que manifestaram apoio a Israel desde o início da guerra, praticamente todos, já não manifestam o apoio. Israel já não tem mais o respaldo que tinha anteriormente. A França cogita elevar ao Conselho de Segurança da ONU uma votação pela criação do Estado palestino, a Espanha disse que até junho vai reconhecer o Estado palestino, o Canadá deixou de vender armas para Israel os livros. O dois países que ainda mantêm relações com Israel de apoio, e mesmo assim ainda envolvidas em críticas, são Alemanha e Estados Unidos.
Eu me arrisco a dizer que se a gente não tivesse no contexto de ano eleitoral nos Estados Unidos, a pressão seria ainda maior. Possivelmente o Biden daria um passo que no momento ele não pode dar de pressão a Israel e de inclusive abandono de Israel e dizer ‘agora você está por conta própria’. Nesse momento o que favorece a situação do Netanyahu no contexto internacional é saber que o governo Biden não pode tomar decisões radicais em relação a Israel porque pelo menos metade do partido Democrata é pró-Israel. Israel está mais isolado do que nunca, mas acho que isso não tem como como trazer mais consequências drásticas do que já trouxe pra Israel.
Na comunidade internacional houve um novo impulso para os debates sobre a solução de dois Estados. Como está essa discussão na sociedade israelense?
Em Israel esse assunto está totalmente isolado. É um assunto que não faz parte do debate público. Inclusive, um dos membros do gabinete de guerra, o ex-general Gadi Eisenkot, que é um sujeito de centro ou centro-esquerda no mapa político, esboçou um plano pro dia depois muito mais detalhado que do Netanyahu. Sou crítico ao plano, mas um ponto importante é que ele vê que daqui cinco anos os debates sobre o Estado palestino não serão feitos para que não seja dado um prêmio ao Hamas pelo ataque de 7 de outubro. Em Israel é um assunto proibido falar em Estado palestino, nem a esquerda está tocando no assunto porque sabe que ninguém vai levar a sério. Se as pessoas nem comentam sobre a Autoridade Palestina governar a Faixar de Gaza, um Estado palestino é menos falado ainda. O que não quer dizer que não pode acontecer. Isso a comunidade internacional pode impor no futuro a médio prazo.
Isso só mostra o quanto Israel está isolado da comunidade internacional, inclusive em relação aos debates que acontecem nos meios diplomáticos. O país não entende que o timing da história é favorável aos palestinos. E esse argumento de que isso é prêmio ao ataque do Hamas é muito controverso, porque o Hamas não deseja a criação de um Estado palestino ao lado do Estado de Israel, o Hamas deseja um Estado palestino em toda a terra. Então, um acordo agora de um reconhecimento mútuo e a criação de um Estado palestino em paz com o Estado de Israel, no ambiente político palestino representa uma derrota ao Hamas.
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