Seis semanas de ‘inferno’: por dentro das detenções brutais da Rússia na Ucrânia

Famílias de ucranianos e a ONU acusam Moscou por desaparecimento de homens durante o conflito

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Por Carlotta Gall
Atualização:

Era um momento especialmente perigoso para um homem em idade militar no norte da Ucrânia ocupado pelos russos, onde as tropas russas perdiam terreno ante um feroz contra-ataque ucraniano.

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Soldados das forças de ocupação prenderam um jovem mecânico enquanto ele caminhava por sua aldeia com a mulher e um vizinho, o vendaram, amarraram suas mãos e o empurraram para dentro de um ônibus.

Foi o início de “seis semanas de inferno”, diz Vasili, de 37 anos — que, como a maioria dos entrevistados para esta reportagem, não quis dar seu sobrenome por medo de represálias. Levado de um local de detenção para outro, ele foi espancado e repetidamente submetido a choques elétricos sob interrogatório, sem entender onde estava e por que o haviam detido.

Vasili foi espancado e repetidamente submetido a choques elétricos sob interrogatório Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Ele não foi o único. Centenas de civis ucranianos, principalmente homens, desapareceram nos quase seis meses da Guerra da Ucrânia, detidos por tropas russas ou seus representantes, mantidos em porões, delegacias e campos de triagem em áreas controladas pelo Kremlin na Ucrânia e terminando encarcerados na Rússia.

Milhares passaram por esse amplo sistema de triagem improvisada na zona de conflito, mas ninguém sabe exatamente quantos foram enviados para prisões russas. A Missão de Monitoramento de Direitos Humanos da ONU documentou 287 casos de desaparecimento forçado e detenções arbitrárias de civis pela Rússia e diz que o total é certamente maior —na casa das centenas, não de milhares.

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Vasili é uma das poucas pessoas detidas na Rússia que retornaram à Ucrânia. Ele foi libertado após cerca de seis semanas e fez o caminho de volta por uma longa e tortuosa jornada, após um total de três meses distante. De volta ao trabalho numa oficina na cidade de Kharkiv, ele se diz feliz por ter sobrevivido.

“Foi vergonhoso, enlouquecedor, mas saí vivo”, afirma. “Poderia ter sido pior. Algumas pessoas foram baleadas.”

As forças russas têm detido ucranianos desde o início da invasão, em fevereiro, mas as experiências da maioria dos civis permanecem desconhecidas. Entrevistas com homens que foram presos e famílias de desaparecidos oferecem novos detalhes de um dos horrores duradouros da guerra.

Os agentes pediam informações sobre posições e grupos militares ucranianos, segundo Vasili, mas os interrogatórios muitas vezes eram inúteis, pois o golpe seguinte vinha antes que ele pudesse responder a uma pergunta. “Eles não acreditam em nada do que você diz, mesmo que esteja dizendo a verdade”, diz. “Você não pode provar sua inocência.”

Desaparecidos

Outras famílias, menos afortunadas que a dele, continuam à procura de parentes desaparecidos, divididas pela ansiedade sobre onde estão ou se ainda vivem.

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“Vou dormir chorando e acordo chorando”, diz Olha, 64. Seu filho foi detido por tropas russas e espancado até ficar inconsciente, mas liberado três dias depois, e o neto, segundo foram informados pelo Comitê Internacional da Cruz Vermelha, está em um centro de detenção pré-julgamento russo.

Sua aldeia, Vilkhivka, nos arredores de Kharkiv, foi invadida por tropas russas no final de março. Aviões bombardearam a vila e soldados russos afirmaram aos moradores que tinham uma hora para sair, segundo ela. “Eles disseram que Vilkhivka seria arrasada.”

Ônibus escolar é destruído em Vilkhivka, perto de Kharkiv, durante ocupação russa  Foto: Mauricio Lima/The New York Times

Olha, parentes e vizinhos correram pelos campos por 8 quilômetros, até onde lhes disseram que um caminhão militar russo os levaria a ônibus que os esperavam. O filho e o neto não chegaram, então seu marido voltou para procurá-los. Enquanto ela estava sentada num veículo, soldados russos retiraram dois jovens enfaixados que ela pensou que poderiam ser soldados ucranianos feridos.

Ela conta que, na frente dos outros passageiros, os militares espancaram os homens e atiraram na cabeça deles. “Eles foram deixados naquela floresta. Eu fechei os olhos e chorei.”

Seu neto, Mikita, 20, não foi visto desde então. Olha foi levada com a nora para a Rússia, onde foram alojadas num albergue. Ela voltou para casa em julho e reencontrou o marido, que havia sobrevivido sozinho. Seu filho conseguiu se juntar a eles na Rússia, e ele e sua mulher permaneceram lá para tentar localizar Mikita.

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Eles não têm ideia se o rapaz enfrentará acusações. A Cruz Vermelha só pode lhes dizer que ele estava sob custódia, segundo a avó. A Rússia nega que torture ou mate civis ucranianos e afirma que só ataca alvos militares.

Alvos

A maioria dos civis detidos na zona de guerra é de homens com experiência militar ou em idade de combate. Nas áreas ocupadas, ucranianos com qualidades de liderança —ativistas, autoridades locais e jornalistas– têm maior probabilidade de serem detidos, disseram autoridades de direitos humanos. Mas muitos civis comuns foram apanhados no que é muitas vezes uma perseguição caótica e arbitrária.

Vasili conta que foi pego por acaso, porque estava andando por uma rua em Tsikuni, a nordeste de Kharkiv, quando membros das forças de segurança realizavam uma batida. Sua mulher e uma vizinha foram instruídas a ir para casa, mas ele teve as mãos amarradas com fita adesiva e foi empurrado para dentro de um ônibus enquanto homens de balaclava invadiam uma casa próxima disparando armas, forçando quatro homens a se jogar no chão. Eles foram atirados no mesmo ônibus.

Entre eles estava Vadum, 36, soldador que morava em Tsirkuni com a mulher e o filho pequeno. Vadim se aventurou para comprar fraldas e comida para o bebê, de acordo com a irmã, Daria Shepets, de 19 anos. Ela diz que alguns dos detidos serviram como guardas de fronteira durante as hostilidades com a Rússia em 2014, mas que ele não tinha vínculos com os militares.

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Os detidos foram levados para o porão de uma casa, onde foram espancados e interrogados, conta Vasili. Mais tarde, eles foram transferidos para outro vilarejo, mantidos em um grupo de cerca de 25. Após cerca de três semanas, ele foi levado com uma dúzia de homens para um centro de detenção na fronteira norte. Na terceira semana, Vadim e seus três amigos saíram e não foram mais vistos —Vasili pensou que estariam sendo libertados.

Mas quando chegou em casa, no final de junho, ficou chocado ao perceber que era o único a voltar. Ele teve sorte quando houve uma mudança na liderança da unidade que mantinha seu grupo; os detidos foram repentinamente jogados na rua. Por causa dos combates, eles tiveram que viajar para a Rússia, onde foram detidos novamente —desta vez por oficiais da agência de espionagem FSB, que, segundo Vasili, lhe ofereceu dinheiro e um emprego.

Ele se recusou e, depois de três dias, o soltaram. “Provavelmente perceberam que éramos inúteis para eles.” Com uma longa barba e cabelos despenteados, Vasili conseguiu pedir dinheiro emprestado a um amigo de um amigo para obter novos documentos e viajar de volta pelos países bálticos e pela Polônia.

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