THE WASHINGTON POST, CALAIS, França — Uma jovem mãe ucraniana e um sul-sudanês de 41 anos tinham histórias parecidas para contar numa manhã recente em Calais, no norte da França. Ambos descreveram sua fuga da guerra: Yuliia Vishnivecka escapou da invasão russa com a filha de 4 anos; Ahmed deixou seu país em meio a uma guerra civil. Ambos estavam famintos, exaustos e diante da possibilidade de jamais conseguir chegar ao destino que almejavam: o Reino Unido.
“Se eu não conseguir o visto, volto para a Ucrânia”, disse Vishnivecka, quase chorando.
Mas ao fim daquele dia, a sorte de ambos os refugiados havia divergido dramaticamente. Horas depois de chegar a Calais, Vishnivecka e sua filha foram recebidas por autoridades de imigração britânicas e colocadas num ônibus destinado ao Reino Unido. Anos depois de chegar em Calais, Ahmed continua bloqueado.
“Elas são europeias”, afirmou Ahmed a respeito das refugiadas ucranianas, arregaçando as mangas de seu abrigo e apontando para sua pele. “Para africanos, a coisa é diferente.”
A selva de Calais
Poucos lugares passaram a simbolizar de maneira tão marcante as restritivas políticas de imigração da Europa quanto Calais. E agora, com a chegada dos primeiros refugiados da Ucrânia, poucos lugares ilustram mais vividamente o tratamento discriminatório que refugiados têm recebido.
Calais é famosa por ser um lugar onde a polícia com frequência confisca barracas e sacos de dormir de refugiados e migrantes instalados em campos desolados nas periferias da cidade. Longos trechos crivados de arame farpado destinam-se a manter solicitantes de asilo longe do Eurotúnel, que conecta a Inglaterra à Europa continental.
E milhares já morreram tentando se pendurar em caminhões que rumam ao território britânico ou arriscando a traiçoeira travessia marítima em pequenos botes. Os que conseguem chegar ao Reino Unido têm geralmente sido recebidos com frieza por um governo britânico determinado a estancar esse fluxo — se necessário acionando a Marinha Real.
Mas enquanto ondas anteriores de refugiados e migrantes foram submetidas a longos e com frequência malsucedidos procedimentos de solicitação de asilo, governos europeus se apressaram para flexibilizar e suspender as regras existentes para acolher os ucranianos. Enquanto outros migrantes têm de pagar traficantes de pessoas para atravessar o Mediterrâneo, empresas de trem europeias emitem bilhetes gratuitos para refugiados da Ucrânia.
O governo francês lançou um website para conectar voluntários dispostos a hospedá-los. Em Calais, apesar de o acampamento ainda existir, a municipalidade está hospedando refugiados da Ucrânia num hostel nas proximidades da praia central da cidade.
Grupos de ajuda a refugiados que têm trabalhado há anos em Calais ficaram estarrecidos com a diferença de tratamento. As entidades pleitearam junto a consecutivos governos britânicos a abertura de centros de solicitação de asilo na costa francesa, para evitar que as pessoas se arrisquem na traiçoeira travessia de barco ou caminhão. Em um dos incidentes mais graves, 27 pessoas morreram afogadas quando o barco que as transportava naufragou, em novembro.
Defensores de direitos dos refugiados também insistiram com as autoridades francesas para que ofereçam um acolhimento mais humano ou pelo menos impeçam os policiais de confiscar sacos de dormir das pessoas no meio do inverno.
“Sempre nos disseram que isso era impossível”, afirmou William Feuillard, coordenador da ONG L’Auberge des Migrants em Calais. Aceitar essas demandas, concordavam autoridades francesas e britânicas havia muito tempo, apenas estimularia a migração ilegal.
A ‘seletividade’ do acolhimento
Mas da noite para o dia, o que antes era impossível já não é — mesmo que para um único grupo de refugiados.
Entidades de assistência aplaudiram o tratamento mais acolhedor aos ucranianos, mas querem que o mesmo nível de humanidade seja garantido a outros grupos. As entidades reconhecem que há diferenças entre refugiados ucranianos e outros grupos em Calais.
Enquanto muitos dos recém-chegados são mulheres e crianças, a vasta maioria dos refugiados e migrantes empacados nos acampamentos são homens jovens, vindos do Oriente Médio e do Norte da África. Entidades de ajuda humanitária discordam da sugestão comum de que esses grupos possuem motivações diferentes ou que algum seja mais merecedor universalmente.
L’Auberge des Migrants e outras ONGs locais estão considerando processar o município a respeito do que consideram uma hipocrisia sem base jurídica. Privadamente, as autoridades de Calais são sinceras a respeito das discriminações que estão fazendo.
“Você não pode comparar (os refugiados ucranianos) com outros refugiados aqui. Eles estão apenas de passagem, esperando obter seus vistos”, afirmou no hostel um homem que se apresentou como um funcionário do governo que monitora os procedimentos na chegada dos refugiados.
Em entrevista ao The Washington Post, a conservadora prefeita de Calais, Natacha Bouchart, rejeitou acusações a respeito de padrões distintos. Refugiados que chegaram a Calais há muito tempo podem requerer abrigo em outras cidades, mas escolheram, em vez disso, arriscar a jornada para a Inglaterra, afirmou ela.
“Não podemos deixá-los se matar sobre trilhos de trem ou pequenos barcos”, afirmou ela. “Há lugares para acomodar esses refugiados — enquanto refugiados ucranianos aceitam isso, outros refugiados recusam auxílio humanitário e do Estado.”
Há pouca evidência, porém, de que migrantes e refugiados em Calais tenham rejeitado ajuda do governo ou de ONGs. Muitos estão aqui porque suas solicitações de asilo foram rejeitadas em outros países da União Europeia.
Suas chances de entrar legalmente no Reino Unido — que deixou de integrar a UE — são praticamente zero. Mas permanecer aqui legalmente também pode ser impossível. Se eles solicitarem asilo na França, arriscam ser mandados de volta para o país pelo qual entraram no bloco europeu.
Essa regra, conhecida como Convenção de Dublin, foi suspensa para refugiados ucranianos. A UE está lhes oferecendo residência temporária, juntamente com o direito de trabalhar e usar serviços públicos, em qualquer país-membro por até três anos.
De Calais para o Reino Unido
O caminho de Calais até o Reino Unido não é livre de obstáculos. O primeiro-ministro Boris Johnson afirmou que seu governo “será tão generoso quanto possível” em relação aos ucranianos. Mas seu país — que deixou a UE em parte para poder controlar suas próprias fronteiras — não acompanhou o bloco na suspensão da exigência de vistos para os ucranianos. Os registros mais recentes mostram que o Reino Unido concedeu cerca de 5,5 mil vistos, em comparação aos aproximadamente 2 milhões de ucranianos que atravessaram para a Polônia.
Os ucranianos em Calais estavam profundamente confusos a respeito do processo na semana passada, e muitos aparentavam estar incertos até o último momento antes de conseguir admissão no Reino Unido. À espera da aprovação de seus vistos, eles se sentavam agrupados em círculos, sobressaltando-se cada vez que recebiam notícias de ataques aéreos e bombardeios na Ucrânia e rezando pelos parentes que deixaram para trás.
Somente em face a reações negativas do público o governo de Johnson expandiu gradualmente o universo de quem tem a entrada permitida no Reino Unido. Inicialmente, eram apenas ucranianos com parentes próximos já no país, e os candidatos tinham de comparecer a centros biométricos específicos para o registro de suas impressões digitais.
O Ministério do Interior britânico afirmou diretamente que não instalaria um centro de processamento de vistos em Calais, por causa do “risco de criminosos operando ativamente na área”. O governo sugeriu que os refugiados poderiam tomar um trem Eurostar gratuitamente de Calais para um centro de emissão de vistos em Lille. Mas, como notou o jornal The Independent, nenhum trem Eurostar tem parada em Calais.
O ministro francês do Interior, Gérald Darmanin, que no passado perseguiu políticas imigratórias linha-dura, acusou o Reino Unido de “falta de humanidade” em relação a refugiados “em perigo”.
O governo de Johnson relaxou, desde então, suas regras, para permitir solicitações de visto completamente digitais. E também inaugurou uma nova rota para o visto, chamada “Lares para a Ucrânia”, que permite aos britânicos se voluntariar para apadrinhar e hospedar refugiados ucranianos apontados por eles.
Yaroslava Stojkiw, uma enfermeira de 55 anos que trabalha na Inglaterra, afirmou que foi uma provação trazer sua família da Ucrânia para o Reino Unido.
Ela telefonou para um número indicado pelo governo para encontrar alguma maneira de reassentar seus parentes, que estavam na Polônia depois de fugir da guerra. Mas não conseguia contato com ninguém. “Tu, tu, tu, tu”, disse ela, imitando o som que escutou no telefone do governo.
No fim, Stojkiw, que sofre de covid longa e faltas de ar, voou para a Polônia para buscar por conta própria sua cunhada e seu sobrinho. Depois, eles empreenderam uma viagem de ônibus de 20 horas até Calais e ouviram que as regras atuais exigiam que se apresentassem presencialmente a um centro britânico de emissão de vistos. Levou mais quatro dias para obterem permissão para cruzar o Canal da Mancha.
Depois de dois anos em Calais, Ahmed, o sul-sudanês de 41 anos, afirmou ter esperança de que conseguirá chegar ao Reino Unido. Mas com os vistos disponíveis para os ucranianos fora do alcance de refugiados como ele, sua única opção realista continua sendo a travessia que pode lhe custar a vida.
“Não é justo”, disse ele, apontando o olhar para um carro de polícia do outro lado da estrada, que patrulhava o acampamento. “É uma vida triste”, afirmou Ahmed. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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