Depois que a China recuou da sua rigorosa política de “covid zero”, uma piada tem circulado nas redes sociais a respeito da súbitas guinada.
Três homens que não se conhecem estão em uma cela na prisão. Cada um deles explica por que foi detido:
“Fui contra os testes para a covid.”
“Defendi os testes contra a covid.”
“Administrei os testes para a covid.”
A piada ainda não foi censurada. Isso indica o quanto o Partido Comunista Chinês, habitualmente um mestre do controle das mensagens, enfrenta dificuldade para apresentar uma explicação coerente para a mudança de política e uma diretriz clara para o que deve ser feito diante da explosão de casos que agora ameaça os recursos médicos do país.
A mudança foi tão atordoante que, mesmo duas semanas depois, o poderoso sistema de propaganda e censura do governo ainda não alcançou a torrente de confusão e críticas que vaza pelos controles da internet do estado, normalmente muito rigorosos.
Além de definir novas regras para lidar com a covid, a mídia oficial chinesa ainda não ofereceu muita orientação por parte do alto escalão da liderança quanto à situação. Os centenas de milhares de censores da internet no país não receberam orientação quanto ao que deve ser permitido e o que deve ser apagado, dizem os especialistas — e talvez estejam confusos, levando em consideração que aquilo que era proibido um mês atrás tornou-se agora a política oficial. Muitos chineses estão perguntando por que tiveram que suportar anos de rigorosos lockdowns e restrições de viagem para então ver a liderança abandoná-los e permitir a disseminação descontrolada do vírus.
Para a liderança da China, a conservação da confiança do público depende, em parte, de uma tarefa difícil: encontrar uma narrativa que dê sentido à reversão.
Nas semanas desde o fim da “covid zero”, a máquina de propaganda e censura da China, que tudo controla, retomou a antiga rotina de apagar a publicidade negativa e disseminar publicações de “energia positiva” que celebram as dificuldades dos indivíduos e do governo. Mas os especialistas disseram que o trauma de três anos causado pelas rigorosas medidas de combate à pandemia e a guinada radical de última hora serão difíceis de superar para a população.
“Será impossível para todos esquecer completamente. Muitos se lembrarão da época da ‘covid zero’ profunda e claramente”, disse Fang Kecheng, professor-assistente da Universidade Chinesa de Hong Kong que estuda a propaganda da China. Entretanto, talvez isso não leve a uma perda generalizada de confiança no governo, acrescentou ele, destacando que “as pessoas ainda têm maneiras de se convencer de que as coisas não parecem tão ruins agora”.
Até o momento, os propagandistas se ativeram às normas anteriores para enfrentar a crise. Evitaram menções excessivas à mudança na política, em vez de enfatizar a estabilidade social. A mídia estatal descreveu a situação como “desgastante”, mas no geral a retratou como decisão bem orquestrada para vencer um vírus que já não é mais tão mortífero como antes.
Em todo o país, uma aguda escassez de medicamentos, vídeos de pessoas em hospitais lotados, e as longas filas do lado de fora de crematórios e funerárias formou um notá
vel contraste com as sete mortes informadas pelo governo esta semana. Na terça feira, as autoridades de saúde explicaram que apenas mortes causadas por pneumonia e falência respiratória decorrentes do coronavírus seriam atribuídas à covid.
A fúria logo irrompeu na internet, com muitos acusando as autoridades de aplicar dois pesos e duas medidas com base nos seus frequentes e detalhados informes das estatísticas de óbitos da covid no exterior, em especial na Europa e nos Estados Unidos. Muitos usaram a hashtag #WhatIsTheCriteriaForDeathBycovid (qual é o critério que define um óbito por covid?) ao se queixarem na terça feira. Na quarta, os censores começaram a bloquear tais publicações.
Pessoas escreveram a respeito da morte de seus parentes, insistindo aos demais para que não confiassem na propaganda segundo a qual a covid atualmente seria como uma gripe. Um banco de sangue fez um apelo a universitários em busca de doações urgentes. Os cancelamentos de reservas de viagem para o feriado do Ano Novo Chinês que se aproxima aumentaram muito conforme as pessoas decidiram ficar em casa.
A cobertura da mídia estatal a respeito do alto escalão da liderança do país evitou completamente o surto em andamento. Na segunda feira, um comentário do Diário do Povo justificou a nova política, dizendo que ela trará um “efeito positivo significante” para a recuperação econômica. Ainda que o texto mencionasse que “há muito trabalho a ser feito”, não chegou a reconhecer o caos criado.
De certas maneiras, a abordagem é semelhante àquela adotada durante o surto inicial do vírus em Wuhan há quase três anos. Na época, mesmo com a crise se intensificando, os pronunciamentos oficiais do Partido Comunista enfatizavam o controle da situação por parte do governo, evitando conteúdo que pudesse estimular o alarme. O líder chinês Xi Jinping desapareceu das vistas do público para isolar-se de potenciais críticas. Depois que o vírus foi contido, Xi apareceu triunfante na cidade.
Dessa vez, talvez demore mais até que as autoridades chinesas recuperem o controle da mensagem em relação a uma crise médica impulsionada por um vírus que, em países grandes como Índia e Estados Unidos, matou centenas de milhares conforme as ondas de contágio sobrecarregavam as instalações médicas. Afora os comentários gerais a respeito da coordenação das medidas de prevenção contra a covid, Xi permaneceu em silêncio. Ele nada disse diretamente a respeito do mais recente surto de casos.
Por agora, disseram os especialistas, tanto os censores e as autoridades incumbidas da propaganda parecem estar perdidos sem saber o que fazer.
“Não acredito ter visto em preparação um plano de propaganda orquestrado. A situação é mais complicada porque a direção geral mudou, e a propaganda precisa acompanhar de uma hora para a outra”, disse Fang. Um grande teste ocorrerá quando o vírus chegar às áreas rurais menores, que carecem de recursos médicos suficientes, disse ele.
Um coro pequeno e ruidoso na internet denunciou as mudanças abruptas e desconexas na política. Asong Yu, 30 anos, que trabalha no setor de finanças no nordeste da China, questionou de maneira sardônica e indireta as súbitas mudanças e a falta de explicações.
Em uma publicação, Yu compartilhou uma resposta do chatbot ChatGPT, movido por inteligência artificial, para a pergunta, “há porcos que conseguem mudar de direção 180 graus?” Ele se mostrou particularmente mordaz com aqueles que chama de “entusiastas da prevenção epidêmica”, nacionalistas que antes repetiam o posicionamento do governo a respeito da “covid zero”, para finalmente serem rechaçados pela guinada de Pequim. Na internet, ele os chamou de “cachorrinhos abandonados que apanham dos próprios donos”.
“A propaganda anterior é completamente oposta à atual. Me parece que, por mais que algumas pessoas sejam burras, elas terão que despertar”, disse Yu em entrevista.
Por enquanto, as publicações de Yu evitaram a tesoura da censura. Em parte, isso ocorre porque não há maneira óbvia de lidar com tamanha guinada. Os censores precisam decidir se apagam parte das publicações oficiais defendendo a “covid zero” durante anos e até que ponto tolerar um novo zelo pelo fim dos lockdowns.
Na internet, alguns já incentivaram outros a contrair a covid como forma de reforçar sua imunidade. Alguns universitários, por exemplo, lamentaram o fato de não terem conseguido pegar a doença ao longo do mês passado, preocupados com a possibilidade de ficarem doentes durante os exames de admissão na pós-graduação, agendados para esta semana.
A súbita mudança na política da China criou caos e confusão entre as empresas de tecnologia que contratam seus próprios censores, e as contas que defendem o partido e reproduzem sua linha oficial, disse Eric Liu, ex-censor que trabalhava para o Weibo e atualmente um analista do China Digital Times, site jornalístico que rastreia a censura na China.
“Ainda não vi uma ordem bastante clara e autoritária para a censura, então, acho que isso tem a ver com o caos criado e o fato de eles estarem se contradizendo”, disse Liu, destacando que provavelmente Pequim ainda não tinha elaborado uma narrativa oficial. Isso, por sua vez, impediu que a Administração Ciberespacial da China, autoridade que regula a internet no país, emitisse ordens uniformes para os censores.
“Uma narrativa regulada vai certamente emergir, mas não sabemos quando”, disse ele./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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