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Sem uma narrativa para a covid, censores da China não sabem o que fazer

O fim da política de ‘covid zero’ contrariou anos de propaganda oficial, e o vasto sistema de censura está com dificuldade em acompanhar

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Por John Liu e Paul Mozur

Depois que a China recuou da sua rigorosa política de “covid zero”, uma piada tem circulado nas redes sociais a respeito da súbitas guinada.

Três homens que não se conhecem estão em uma cela na prisão. Cada um deles explica por que foi detido:

“Fui contra os testes para a covid.”

“Defendi os testes contra a covid.”

“Administrei os testes para a covid.”

Um estande de testes que foi fechado desde que a China encerrou sua política de 'zero covid', em Pequim, em 20 de dezembro de 2022 Foto: Gilles Sabrie/The New York Times

A piada ainda não foi censurada. Isso indica o quanto o Partido Comunista Chinês, habitualmente um mestre do controle das mensagens, enfrenta dificuldade para apresentar uma explicação coerente para a mudança de política e uma diretriz clara para o que deve ser feito diante da explosão de casos que agora ameaça os recursos médicos do país.

A mudança foi tão atordoante que, mesmo duas semanas depois, o poderoso sistema de propaganda e censura do governo ainda não alcançou a torrente de confusão e críticas que vaza pelos controles da internet do estado, normalmente muito rigorosos.

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Além de definir novas regras para lidar com a covid, a mídia oficial chinesa ainda não ofereceu muita orientação por parte do alto escalão da liderança quanto à situação. Os centenas de milhares de censores da internet no país não receberam orientação quanto ao que deve ser permitido e o que deve ser apagado, dizem os especialistas — e talvez estejam confusos, levando em consideração que aquilo que era proibido um mês atrás tornou-se agora a política oficial. Muitos chineses estão perguntando por que tiveram que suportar anos de rigorosos lockdowns e restrições de viagem para então ver a liderança abandoná-los e permitir a disseminação descontrolada do vírus.

Para a liderança da China, a conservação da confiança do público depende, em parte, de uma tarefa difícil: encontrar uma narrativa que dê sentido à reversão.

Nas semanas desde o fim da “covid zero”, a máquina de propaganda e censura da China, que tudo controla, retomou a antiga rotina de apagar a publicidade negativa e disseminar publicações de “energia positiva” que celebram as dificuldades dos indivíduos e do governo. Mas os especialistas disseram que o trauma de três anos causado pelas rigorosas medidas de combate à pandemia e a guinada radical de última hora serão difíceis de superar para a população.

“Será impossível para todos esquecer completamente. Muitos se lembrarão da época da ‘covid zero’ profunda e claramente”, disse Fang Kecheng, professor-assistente da Universidade Chinesa de Hong Kong que estuda a propaganda da China. Entretanto, talvez isso não leve a uma perda generalizada de confiança no governo, acrescentou ele, destacando que “as pessoas ainda têm maneiras de se convencer de que as coisas não parecem tão ruins agora”.

Compra de remédios em uma farmácia em Pequim, 20 de dezembro de 2022. Os medicamentos desapareceram das prateleiras das farmácias em toda a China quando surgiram sinais de surtos de covid Foto: Gilles Sabrie/The New York Times

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Até o momento, os propagandistas se ativeram às normas anteriores para enfrentar a crise. Evitaram menções excessivas à mudança na política, em vez de enfatizar a estabilidade social. A mídia estatal descreveu a situação como “desgastante”, mas no geral a retratou como decisão bem orquestrada para vencer um vírus que já não é mais tão mortífero como antes.

Em todo o país, uma aguda escassez de medicamentos, vídeos de pessoas em hospitais lotados, e as longas filas do lado de fora de crematórios e funerárias formou um notá

vel contraste com as sete mortes informadas pelo governo esta semana. Na terça feira, as autoridades de saúde explicaram que apenas mortes causadas por pneumonia e falência respiratória decorrentes do coronavírus seriam atribuídas à covid.

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A fúria logo irrompeu na internet, com muitos acusando as autoridades de aplicar dois pesos e duas medidas com base nos seus frequentes e detalhados informes das estatísticas de óbitos da covid no exterior, em especial na Europa e nos Estados Unidos. Muitos usaram a hashtag #WhatIsTheCriteriaForDeathBycovid (qual é o critério que define um óbito por covid?) ao se queixarem na terça feira. Na quarta, os censores começaram a bloquear tais publicações.

Pessoas escreveram a respeito da morte de seus parentes, insistindo aos demais para que não confiassem na propaganda segundo a qual a covid atualmente seria como uma gripe. Um banco de sangue fez um apelo a universitários em busca de doações urgentes. Os cancelamentos de reservas de viagem para o feriado do Ano Novo Chinês que se aproxima aumentaram muito conforme as pessoas decidiram ficar em casa.

A cobertura da mídia estatal a respeito do alto escalão da liderança do país evitou completamente o surto em andamento. Na segunda feira, um comentário do Diário do Povo justificou a nova política, dizendo que ela trará um “efeito positivo significante” para a recuperação econômica. Ainda que o texto mencionasse que “há muito trabalho a ser feito”, não chegou a reconhecer o caos criado.

De certas maneiras, a abordagem é semelhante àquela adotada durante o surto inicial do vírus em Wuhan há quase três anos. Na época, mesmo com a crise se intensificando, os pronunciamentos oficiais do Partido Comunista enfatizavam o controle da situação por parte do governo, evitando conteúdo que pudesse estimular o alarme. O líder chinês Xi Jinping desapareceu das vistas do público para isolar-se de potenciais críticas. Depois que o vírus foi contido, Xi apareceu triunfante na cidade.

Dessa vez, talvez demore mais até que as autoridades chinesas recuperem o controle da mensagem em relação a uma crise médica impulsionada por um vírus que, em países grandes como Índia e Estados Unidos, matou centenas de milhares conforme as ondas de contágio sobrecarregavam as instalações médicas. Afora os comentários gerais a respeito da coordenação das medidas de prevenção contra a covid, Xi permaneceu em silêncio. Ele nada disse diretamente a respeito do mais recente surto de casos.

Por agora, disseram os especialistas, tanto os censores e as autoridades incumbidas da propaganda parecem estar perdidos sem saber o que fazer.

Uma sala de espera cheia em uma clínica em Pequim, em 20 de dezembro de 2022 Foto: Gilles Sabrie/The New York Times

“Não acredito ter visto em preparação um plano de propaganda orquestrado. A situação é mais complicada porque a direção geral mudou, e a propaganda precisa acompanhar de uma hora para a outra”, disse Fang. Um grande teste ocorrerá quando o vírus chegar às áreas rurais menores, que carecem de recursos médicos suficientes, disse ele.

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Um coro pequeno e ruidoso na internet denunciou as mudanças abruptas e desconexas na política. Asong Yu, 30 anos, que trabalha no setor de finanças no nordeste da China, questionou de maneira sardônica e indireta as súbitas mudanças e a falta de explicações.

Em uma publicação, Yu compartilhou uma resposta do chatbot ChatGPT, movido por inteligência artificial, para a pergunta, “há porcos que conseguem mudar de direção 180 graus?” Ele se mostrou particularmente mordaz com aqueles que chama de “entusiastas da prevenção epidêmica”, nacionalistas que antes repetiam o posicionamento do governo a respeito da “covid zero”, para finalmente serem rechaçados pela guinada de Pequim. Na internet, ele os chamou de “cachorrinhos abandonados que apanham dos próprios donos”.

“A propaganda anterior é completamente oposta à atual. Me parece que, por mais que algumas pessoas sejam burras, elas terão que despertar”, disse Yu em entrevista.

Por enquanto, as publicações de Yu evitaram a tesoura da censura. Em parte, isso ocorre porque não há maneira óbvia de lidar com tamanha guinada. Os censores precisam decidir se apagam parte das publicações oficiais defendendo a “covid zero” durante anos e até que ponto tolerar um novo zelo pelo fim dos lockdowns.

Na internet, alguns já incentivaram outros a contrair a covid como forma de reforçar sua imunidade. Alguns universitários, por exemplo, lamentaram o fato de não terem conseguido pegar a doença ao longo do mês passado, preocupados com a possibilidade de ficarem doentes durante os exames de admissão na pós-graduação, agendados para esta semana.

A súbita mudança na política da China criou caos e confusão entre as empresas de tecnologia que contratam seus próprios censores, e as contas que defendem o partido e reproduzem sua linha oficial, disse Eric Liu, ex-censor que trabalhava para o Weibo e atualmente um analista do China Digital Times, site jornalístico que rastreia a censura na China.

“Ainda não vi uma ordem bastante clara e autoritária para a censura, então, acho que isso tem a ver com o caos criado e o fato de eles estarem se contradizendo”, disse Liu, destacando que provavelmente Pequim ainda não tinha elaborado uma narrativa oficial. Isso, por sua vez, impediu que a Administração Ciberespacial da China, autoridade que regula a internet no país, emitisse ordens uniformes para os censores.

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“Uma narrativa regulada vai certamente emergir, mas não sabemos quando”, disse ele./TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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