Semicondutores serão decisivos na Guerra Fria entre China e EUA; leia a coluna de Thomas Friedman

A erosão nas relações entre EUA e China vão além de nossos desentendimentos cada vez mais acentuados em relação a Taiwan

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Por Thomas Friedman


Esta é a segunda parte do artigo de Thomas L. Friedman EUA, China e uma crise de confiança entre as superpotências. O texto foi dividido em capítulos para facilitar sua leitura. Clique aqui para ler o capítulo anterior

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TAIPÉ, Taiwan — Foi a repetição de conversas desse tipo que me levou a fazer a investidores, analistas e autoridades dos EUA, da China e de Taiwan uma pergunta que me incomoda há algum tempo: qual é, exatamente, o motivo da briga entre EUA e China?

Muitos hesitaram diante da pergunta. De fato, muitos responderam com alguma versão de “não sei ao certo, mas a culpa é DELES”.

Tenho quase certeza que a reação em Washington seria parecida.

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A melhor parte desta viagem foi descobrir a verdadeira resposta para essa pergunta e por que ela desafia tantas pessoas. Isso ocorre porque a verdadeira resposta é muito mais profunda e complexa do que aquela que resume tudo a uma palavra, “Taiwan”, ou às habituais três palavras, “autocracia versus democracia”.

Vou tentar remover algumas camadas. A erosão nas relações entre EUA e China é resultado de algo antigo e óbvio — uma tradicional rivalidade de superpotências entre uma potência titular (os EUA) e uma potência ascendente (a China) — mas envolvendo uma série de novas reviravoltas que nem sempre são visíveis a olho nu.

O aspecto antigo e óbvio está no fato de China e EUA disputarem a aquisição do maior poder de influência econômica e militar para moldar as regras do século 21 da maneira mais vantajosa para seus respectivos sistemas econômicos e políticos. E uma dessas regras em disputa, que os EUA entenderam, mas não apoiaram, é a alegação chinesa segundo a qual Taiwan lhe pertence como parte de “Uma só China”.

Presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, atende a evento na Câmara Americana de Comércio em Taipé, Taiwan  Foto: Ann Wang / REUTERS

Como essa “regra” continua sendo questionada, os EUA seguirão armando Taiwan para dissuadir Pequim da ideia de tomar a ilha, esmagando sua democracia e usando-a como ponto de partida para dominar o restante da Ásia Oriental, e a China seguirá pressionando pela reunificação — de um jeito ou de outro.

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Uma interdependência inédita

Mas umas das reviravoltas é o fato de essa rivalidade padrão entre grandes potências ocorrer entre países que se tornaram tão economicamente interdependentes quanto os fios de uma molécula de DNA. Como resultado China e EUA jamais enfrentaram um rival como o outro.

Os EUA sabiam como lidar com a Alemanha nazista, um rival econômico e militar, mas um país com o qual os laços econômicos não eram profundos. Os EUA sabiam como lidar com a União Soviética, uma rival militar, mas nem de longe uma rival econômica, e um país com o qual os laços econômicos eram poucos.

O mesmo valia para a China. Durante milhares de anos, a China se considerou situada no meio do mundo — e por isso referia-se a si mesma como Zhong Guo, o Reino do Meio, protegido por montanhas, desertos e mares por todos os lados, e frequentemente dominando os estados ao seu redor, ao mesmo tempo preservando obstinadamente a própria cultura. Foi assim até o século 19, quando o país começou a ser alvo da rapina de potências estrangeiras mais fortes: Grã-Bretanha, França, Rússia e Japão.

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Mas, na era moderna, a China, assim como os EUA, nunca teve que lidar com um verdadeiro rival econômico e militar com quem estivesse profundamente associada por laços comerciais e de investimento.

O quão profundos são esses laços? O dispositivo preferido dos americanos é o iPhone, produzido essencialmente na China, e até recentemente, o destino preferido dos universitários chineses — cerca de 300 mil deles, atualmente — são os EUA. Disso resultam algumas cenas curiosas, como ver um país derrubar o balão de espionagem do outro pouco depois de ambos os países terem estabelecido, em 2022, um recorde no comércio bilateral anual.

Homem olha para Iphone em loja da Apple em Pequim, China  Foto: Thomas Peter / REUTERS

Outra reviravolta nova, e razão pela qual é difícil definir exatamente por que estamos brigando, tem muito a ver com o fato de essa questão evasiva da confiança, e a falta dela, terem subitamente assumido uma importância muito maior nos assuntos internacionais.

Trata-se de um subproduto do nosso novo sistema tecnológico, no qual um número cada vez maior de dispositivos e serviços que usamos e oferecemos funciona à base de microchips e software, e se conectar por meio de data centers na nuvem e da internet de alta velocidade. Quando tantos produtos ou serviços se tornam digitalizados e conectados, é muito maior o número de coisas com “utilidade dupla”. Ou seja, tecnologias que podem ser facilmente convertidas de ferramentas civis em armas militares, ou vice-versa.

Uma fronteira perene entre armas e ferramentas

Na Guerra Fria era relativamente fácil dizer que este caça é uma arma e aquele telefone é uma ferramenta. Mas, quando instalamos a capacidade de detectar, digitalizar, conectar, processar, aprender, compartilhar e agir em cada vez mais coisas — do seu celular com GPS até seu carro, passando pela torradeira e o seu aplicativo favorito — tudo passa a ter utilidade dupla, sendo armas ou ferramentas dependendo de quem controla o software que as coisas usam e a quem pertencem os dados que elas geram.

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Atualmente, poucas linhas de programação separam os carros autônomos das armas autônomas. E, como vimos na Ucrânia, um smartphone pode ser usado pela vovó para falar com os netos ou para chamar uma unidade ucraniana de foguetes e fornecer as coordenadas de GPS do tanque russo no quintal dela.

Isso também leva a mais reviravoltas estranhas. Estou pensando no fato de uma série de divisões das forças armadas americanas terem proibido o TikTok em celulares e computadores de propriedade do governo. Certamente é a primeira vez que o Pentágono proibiu um aplicativo conhecido principalmente pelo compartilhamento de dancinhas. Mas há um temor real diante da possibilidade de o algoritmo altamente viciante do TikTok ter utilidade dupla, podendo ser readaptado pelo serviço de espionagem chinês para obter um imenso volume de dados a respeito da juventude americana — mais de 150 milhões de americanos baixaram o aplicativo, diz a empresa — para interferir nesses cérebros, espalhar desinformação ou reunir dados que possam um dia ser usados em uma chantagem.

CEO do TikTok, Shou Zi Chew, é interrogado no Congresso dos EUA Foto: Chip Somodevilla / Getty Images via AFP

E as reviravoltas continuam. Nos primeiros 30 anos, aproximadamente, desde que Pequim se abriu para o comércio com o mundo, a partir de 1978-79, a China vendeu aos EUA principalmente o que chamo de bens “rasos” — sapatos, meias, camisas e painéis solares.

Enquanto isso, os EUA e o Ocidente tendiam a vender à China o que eu chamo de “bens profundos” — artigos que alcançam as profundezas dos seus sistemas e eram de utilidade dupla — especificamente software, microchips, largura de banda, smartphones e robôs. A China tinha que comprar nossos bens profundos porque, até pouco tempo atrás, relativamente, ela era incapaz de produzir muitos deles por conta própria.

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Enquanto a maior parte do que a China nos vendia era composta de bens rasos, não nos importamos tanto com o sistema político deles — ainda mais porque, durante algum tempo, pareceu que a China estava se tornando cada vez mais integrada ao mundo, lentamente mas progressivamente, mais aberta e transparente a cada ano. Assim, era fácil e conveniente deixar de lado algumas de nossas preocupações a respeito do lado sombrio do seu sistema político.

A modernização das exportações chinesas

Mas então, há cerca de oito anos, ouvimos alguém bater à porta, e era um vendedor chinês. Ele disse: “Olá, meu nome é Sr. Huawei e eu produzo equipamentos para celulares 5G melhores do que qualquer coisa que vocês tenham. Estou instalando-o no mundo inteiro, e gostaria de instalar nos EUA também”.

Essencialmente, a resposta dos EUA a este vendedor da Huawei, bem como aos representantes de outras empresas ascendentes chinesas de alta tecnologia, foi o seguinte: “Quando as empresas chinesas nos vendiam apenas bens rasos, não fazia diferença para nós se o seu sistema político era autoritarismo, liberalismo ou vegetarianismo; estávamos apenas comprando seus bens rasos. Mas, quando vocês querem nos vender ‘bens profundos’ — artigos de utilidade dupla que serão usados em profundidade nos nossos lares, quartos, indústrias, chatbots e infraestrutura urbana — não temos confiança suficiente para comprá-los. Então, vamos banir a Huawei e, em vez disso, pagar mais para comprar nossos sistemas de telecomunicação de empresas escandinavas nas quais confiamos: Ericsson e Nokia”.

O papel da confiança nas relações internacionais e no comércio deu outro grande salto por outro motivo: conforme cada vez mais produtos e serviços se tornaram digitais e elétricos, os microchips que dão vida a tudo se tornaram o novo petróleo. O que o petróleo representou para impulsionar as economias dos séculos 19 e 20, os microchips representam para impulsionar as economias do século 21.

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Assim, hoje, o país ou os países capazes de produzir os microchips mais rápidos, mais poderosos e mais eficientes no consumo de energia podem desenvolver os maiores computadores de IA e dominar os assuntos econômicos e militares.

Um microchip chinês é visto através de um microscópio instalado no estande do projeto Tsinghua Unigroup, controlado pelo estado, que está impulsionando as ambições de semicondutores da China durante a 21ª Exposição Internacional de Alta Tecnologia de Pequim  Foto: Ng Han Guan / AP

Mas existe um porém: como o desafio físico da produção de chips lógicos avançados se tornou tão complexo — um fio de cabelo humano tem a espessura de aproximadamente 90.000 nanômetros, e a melhor produtora mundial de chips avançados em massa está agora fazendo transistores de três nanômetros de espessura — nenhum país ou empresa pode ser o único dono da cadeia de fornecimento inteira. É necessário reunir o melhor de todos os lugares, e os fios dessa cadeia de fornecimento são tão entrelaçados que cada empresa precisa confiar nas demais intimamente.

Semicondutores, o fiel da balança

A China não precisa ir longe para aprender essa lição. Seus resultados podem ser vistos ali do outro lado do Estreito de Taiwan, na maior empresa fabricante de chips do mundo, a Taiwan Semiconductor Manufacturing Company, mais conhecida como TSMC.

Depois de visitar Pequim, estive em Taiwan, onde passei uma tarde com as lideranças da TSMC no escritório central da empresa, no Parque Científico Hsinchu, a cerca de 90 minutos de carro ao sul de Taipei, a capital. Quando indagamos a eles qual é o segredo que possibilita à TSMC fabricar 90% dos chips de lógica mais avançados do mundo — enquanto a China, que fala o mesmo idioma e partilha da mesma história cultural recente, produz zero — a resposta deles é simples: “confiança”.

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A TSMC é uma forja de semicondutores, o que significa que ela recebe os projetos das empresas de computador mais avançadas do mundo — Apple, Qualcomm, Nvidia, AMD e outras — e transforma os projetos em chips que desempenham diferentes funções de processamento. Ao fazê-lo, a TSMC faz duas promessas solenes a seus clientes: a TSMC jamais concorrerá com eles ao projetar os próprios chips, e jamais compartilhará os projetos de um cliente com outro cliente.

“Por natureza, trabalhamos com diferentes clientes que concorrem entre si”, explicou Kevin Zhang, vice-presidente sênior para desenvolvimento de negócios da TSMC. “Temos o compromisso de não concorrer com nenhum deles e, internamente, nossas equipes que trabalham com o cliente A jamais vazarão suas informações para o cliente C.”

Mas, ao trabalhar com tantos parceiros de confiança, a TSMC aproveita os projetos cada vez mais complexos desses parceiros para se aperfeiçoar — e, quanto mais se aperfeiçoa, mais avançados são os projetos que ela entrega aos clientes. Isso exige a mais estreita colaboração entre a TSMC e seus clientes, mas também entre a TSMC e os seus cerca de 1000 fornecedores mais essenciais, tanto locais quanto globais.

“Nossos clientes são muito exigentes”, acrescentou Zhang. “Cada um de seus produtos pode ter requisitos únicos.” Cada cliente “nos diz o que gostaria de fazer e, juntos, pensamos em como a TSMC vai organizar o processo de produção”. Conforme os procedimentos físicos da produção de chips se tornam cada vez mais extremos, “o investimento dos clientes está aumentando, e por isso eles precisam trabalhar em proximidade conosco para garantir que obtenham o maior poder de computação possível. Eles precisam confiar”.

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Falta de confiança nos chineses

A China também tem uma forja, a Semiconductor Manufacturing International Corporation, que é de propriedade parcialmente estatal. Mas, adivinhe o que acontece? Como nenhuma empresa global de chips confia na SMIC para compartilhar com ela seus projetos mais avançados, sua tecnologia está pelo menos dez anos atrasada em relação à TSMC.

É por essas razões que a erosão nas relações entre EUA e China vão além de nossos desentendimentos cada vez mais acentuados em relação a Taiwan. A raiz está no fato de, justamente quando a confiança, e a falta dela, se tornaram fatores muito mais importantes no comércio e nos assuntos internacionais, a China alterou sua trajetória. O país se tornou um parceiro menos confiável justamente quando a tecnologia mais importante do século 21 — os semicondutores — exigiu um grau de confiança sem precedentes para ser produzida, e mais e mais dispositivos e serviços se tornaram profundos e de utilidade dupla. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Clique aqui para ler a terceira parte da coluna de Thomas Friedman.

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