Exceto pelas genitálias das mulheres do Cáucaso, toda essa improvável aventura poderia jamais ter acontecido. Virar um dos homens mais ricos do mundo; criar um partido político do nada em menos de um ano; e vir a se tornar o primeiro-ministro que exerceu a função por mais tempo na República Italiana.
A coisa remonta à sua conversa, durante uma viagem de trem, com um hostil vice-presidente de um fundo de pensões. Silvio Berlusconi precisava desesperadamente que esse homem investisse em seu primeiro grande projeto de construção. Seu estratagema original — fazer famílias parecerem estar clamando pelos apartamentos que ele tinha construído próximo a um complexo industrial nas imediações de Milão — tinha ido embaraçosamente mal. O chefe do fundo de pensões tinha percebido que estava sendo enganado. Mas Berlusconi, então com 27 anos, acionou seu charme irresistível, seduziu a secretária do vice-presidente, convenceu a moça a dizer-lhe quando seu chefe viajaria para Milão e reservou um assento bem diante dele no trem.
Quando chegaram a Milão, ambos estavam no vagão-bar, meio bêbados, com o gerente do fundo de pensões contando-lhe quão extraordinárias eram as partes íntimas das mulheres da Caucásia. O investimento foi resgatado, possibilitando ao jovem empreendedor embarcar num projeto ainda maior, o Milano Due. O canal de TV a cabo instalado no Milano Due, por sua vez, fincou as fundações de um vasto grupo de mídia que facilitou sua entrada na política italiana e ajudou a sustentá-lo como força no Parlamento por quase 30 anos.
Mas tudo isso, assumia ele, era algo inevitável. Berlusconi era, afinal, dono de seu próprio destino e assumia que, mesmo se seu primeiro empreendimento tivesse fracassado, ele eventualmente alcançaria o sucesso que lhe cabia. Ele tinha uma energia imensa, era um vendedor com talento profuso para a persuasão, dava tchauzinho para as leis que atrapalhavam seu caminho e acreditava infinitamente em suas próprias capacidades. Conforme disse ao seu biógrafo americano, ele sabia como criar e como liderar. E, acrescentou ele, “Eu sei como fazer as pessoas me amarem”.
E era isso o que Berlusconi fazia. Uma pesquisa entre jovens italianos conduzida em 1993, um ano antes dele se tornar o premiê pela primeira vez, constatou que eles o amavam mais do que a Jesus. Apesar de Berlusconi nunca ter conseguido conquistar a maioria do eleitorado, quem o defendia expressava um fervor raro nas sociedades democráticas. No auge desse culto à personalidade, antes da eleição geral de 2008, sua canção de campanha foi intitulada: “Ainda bem que temos o Silvio”.
“Eu digo assim,
Com aquela força
Que apenas quem é puro de mente tem
‘Presidente, estamos contigo’,
Ainda bem que temos o Silvio.”
Berlusconi foi cuidadoso em garantir a devoção de seus colaboradores lembrando-se de aniversários e mandando flores para suas assistentes. Conforme colocou um deputado de seu partido, Força Itália, as pessoas não aprendiam simplesmente a gostar de Silvio, elas aprendiam a adorá-lo.
Tudo isso parecia perfeitamente compreensível ao objeto de sua adulação. Era incompreensível, portanto, que tantas outras pessoas não olhassem para as coisas da mesma maneira. Havia os jornalistas (apesar de menos, talvez, do que se esperaria) que perguntavam como o filho de um gerente de banco milanês conseguiu se tornar tão fabulosamente rico em tão poucos anos. Alguns até insinuavam que ele poderia ter recebido seu capital semente do crime organizado — notavam suspeitas de que o banco de seu pai lavava dinheiro da Cosa Nostra; de que Berlusconi contratou um chefão da máfia para trabalhar em sua residência; e que o homem que montou para ele o Força Itália, Marcello Dell’Utri, fora acusado (e posteriormente condenado) por auxiliar e ser cúmplice da Cosa Nostra.
Depois vieram os procuradores, que quiseram saber, entre outras coisas impertinentes, se seu sucesso como magnata das telecomunicações se devia inteiramente à sua perspicácia empresarial ou tinha mais a ver com subornos a juízes e financiamento ilegal do partido que lhe permitiu virar proprietário de uma rede nacional de três emissoras de TV. Consecutivos processos foram movidos contra Berlusconi. Mas ele sempre conseguiu se esquivar, com frequência graças a leis que decapitaram os processos judiciais demorados da Itália. Durante seu período mais extenso como primeiro-ministro, entre 2001 e 2006, ele mudou a legislação para garantir que a lâmina dessa guilhotina cortasse antes os tipos de julgamento que ele era mais propenso a enfrentar — uma das quase 20 medidas que ele introduziu favorecendo a si próprio ou suas empresas, que cresceram vertiginosamente enquanto ele ocupou o poder.
Nada disso, contudo, abalou a fé de Berlusconi em seu próprio altruísmo. Em campanha, ele repreendia os eleitores que não apreciavam sua abnegação, recordando-os de que ele possuía mais de 20 casas em todo o mundo mas, em vez de aproveitá-las, trabalhava como escravo dia e noite para o bem desses compatriotas ingratos.
Talvez o mais ofensivo de tudo fosse algumas pessoas insinuarem que Berlusconi seria misógino. Mas ele amava as mulheres. Pelo menos as jovens e lindas. Não como Angela Merkel, que ele supostamente descreveu como “um bundão incomível” e humilhou publicamente durante uma cúpula da Otan. Não obstante, ele tinha adoração por sua mãe, Rosa, e, coincidência ou não, foi somente após sua morte, em 2008, pouco antes de seu terceiro mandato como premiê, que ele se envolveu no primeiro de uma série de escândalos envolvendo mulheres jovens — às vezes muito jovens. Sua segunda mulher, a ex-atriz Veronica Lario, separou-se dele depois de declarar que não compartilharia a vida com um homem que se envolvia com meninas menores de idade.
Seus apoiadores — pelo menos os homens — poderiam ter feito vista grossa aos escândalos, não fosse pela crise financeira que ocorreu na mesma época. A emergência resultante foi particularmente incompatível com sua personalidade. Berlusconi sempre tinha dito aos seus publicitários que eles deveriam “carregar o sol em seus bolsos” e ele mesmo sempre irradiou positividade e otimismo. Mas a Grande Recessão revelou que Berlusconi era quase fisicamente incapaz de comunicar más notícias. Ao contrário, ele disse aos italianos que a crise não os afetaria. E conforme a economia do país ruiu, no ano seguinte, até mesmo alguns de seus seguidores mais devotos perceberam — como como aquele chefe de fundo de pensões no início disso tudo — que eles também tinham sido enganados pelo grande sedutor. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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