Sob o comando de Daniel Ortega, Nicarágua mergulha no totalitarismo

Com escalada autoritária, regime liderado por ex-guerrilheiro, que está há 15 anos no poder, é comparado à ditadura de Anastasio Somoza, que ele ajudou a derrubar, em 1979

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Foto do author José Fucs

Nas palavras do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, candidato do PT ao Palácio do Planalto nas eleições de outubro, o presidente da Nicarágua, Daniel Ortega, é um democrata da mesma estirpe que Angela Merkel, ex-chanceler da Alemanha, e Felipe González, ex-presidente da Espanha.

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“Por que a Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e o Daniel Ortega não? Por que o Felipe González pode ficar 14 anos no poder? Qual é a lógica?”, disse Lula, logo após a reeleição de Ortega para o quarto mandato consecutivo, em novembro do ano passado.

Ao defender a permanência de seu amigo Ortega no cargo, porém, Lula “se esqueceu” de que Merkel e González foram reconduzidos sucessivamente aos seus postos em eleições limpas e democráticas. Enquanto isso, el comandante, como Ortega é chamado na Nicarágua, garantiu um novo mandato num pleito manchado por acusações de fraude, contestado pela comunidade internacional e precedido pela prisão dos sete pré-candidatos presidenciais da oposição, que postulavam a indicação do bloco para a disputa.

Escalada autoritária na Nicarágua levou a perseguição de autoridades católicas pelo governo Ortega. Foto: Diocese de Matagalpa

“O Daniel Ortega tem DNA stalinista”, afirmou ao Estadão o jornalista nicaraguense Carlos Chamorro, fundador e diretor do site independente Confidencial, de notícias e análises políticas. Exilado na Costa Rica há cerca de um ano, ele é irmão de Cristiana Chamorro, que pretendia concorrer à presidência em 2021 e acabou presa por Ortega, e filho da ex-presidente do país Violeta Chamorro (1990-1997) e de Pedro Joaquín Chamorro, ex-publisher do jornal La Prensa, assassinado em 1978, durante a ditadura de Anastasio Somoza, de quem foi um crítico combativo. “O Daniel Ortega nunca teve compromisso nem com a democracia nem com os direitos humanos. Ele quer imitar o tipo de liderança que o Fidel Castro representou em Cuba.”

Esta reportagem sobre a Nicarágua faz parte da série lançada pelo Estadão sobre o avanço da esquerda na América Latina nos últimos anos. O caso nicaraguense revela, de forma emblemática, os riscos envolvidos na eleição de líderes esquerdistas na região, que se aproveitam das regras do jogo democrático para chegar ao governo e depois instauram uma ditadura, perpetuando-se no poder. Foi assim na Venezuela com Hugo Chávez, que ficou 14 anos na presidência e morreu em 2013 ainda no exercício do cargo, herdado por Nicolás Maduro, e está sendo assim também com Ortega, na Nicarágua.

Ironicamente, Ortega exerce hoje um papel semelhante ao desempenhado no passado por Somoza, contra quem ele se insurgiu como um dos líderes da chamada Revolução Sandinista, que o apeou do poder 43 anos atrás. Do Ortega revolucionário, que conquistou os corações da esquerda mundial, só restou a retórica contra a “democracia burguesa” e o “capitalismo selvagem”, amparada nos símbolos do sandinismo, que ele explora com alguma habilidade. “A população não vê que o Daniel Ortega fez parte de uma luta contra outra ditadura”, diz Chamorro. “Simplesmente o vê como um ditador que está à frente de uma ditadura familiar que tem muitos elementos em comum com a dos Somoza.”

Hoje, a Nicarágua é um país dominado pelo medo. Como na antiga União Soviética, as pessoas têm receio de emitir suas opiniões em público e são vigiadas por “espiões de quarteirão” do regime, que fazem parte dos Conselhos de Poder Cidadão (PCC), empoderados por Ortega. Talvez, por isso, a Nicarágua tenha sido chamada pelo jornal espanhol El País de “Gulag latino-americano”, em referência aos campos de trabalhos forçados destinados a prisioneiros políticos e cidadãos que se opunham ao regime comunista soviético, principalmente durante o governo de Josef Stalin, que comandou a ex-URSS com mão de ferro por 31 anos. “A Nicarágua se transformou num Estado policial”, afirma Chamorro.

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Isolado pelas sanções que lhe foram impostas pelos Estados Unidos e pela União Europeia, estendidas a seus familiares e a autoridades do governo, Ortega se escora hoje, mais que nunca, em países como Cuba, Venezuela, Irã, Coreia do Norte, China e Rússia. Contra as grandes democracias ocidentais, ficou do lado de Vladimir Putin na invasão da Ucrânia pela Rússia, e expulsou a OEA (Organização dos Estados Americanos) da Nicarágua, depois de a entidade criticar as “eleições” realizadas em novembro de 2021.

Mercedes blindada

No front interno, Ortega vive praticamente recluso em sua casa em El Carmen, nos arredores de Manágua, a capital nicaraguense, de onde costuma despachar os assuntos oficiais. Raramente sai de seu bunker para participar de atos governamentais em público. Apesar de vociferar contra os mais ricos, circula pelas ruas e estradas do país numa SUV Mercedes Benz blindada, modelo G63 V8 AMG, comprada em 2015 por um valor calculado em US$ 300 mil (R$1,5 milhão).

O culto à personalidade de Ortega está presente no dia a dia da população e tornou-se parte da paisagem da Nicarágua. Há cartazes e outdoors de Ortega e de sua mulher Rosario Murillo, vice-presidente e porta-voz do governo, espalhados em profusão por todo o país. Encarregada de filtrar toda e qualquer declaração pública de autoridades e da propaganda oficial, Murillo tem também um programa diário de rádio e TV transmitido em rede nacional, no qual divulga mensagens de autoexaltação do regime e informações sobre atividades governamentais.

“Isso tem a ver com as personalidades megalomaníacas que eles têm e também com suas vocações autoritárias”, diz a socióloga nicaraguense Elvira Cuadra Lira, pesquisadora associada do Instituto de Estudos Estratégicos e de Políticas Públicas (Ieepp), hoje também vivendo no exílio, na Costa Rica. “Eles aparecem como centro de tudo, como os que decidem o destino e o futuro da população.”

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A centralização do poder e o fechamento do regime ampliaram o espaço para a apropriação de dinheiro público pelo casal Ortega-Murillo. De acordo com investigações baseadas em documentos de registro público e em informações do Instituto Nicaraguense de Seguridade Social (INSS), Ortega usou recursos do fundo da cooperação venezuelana, que chegaram a cerca de US$ 5 bilhões em dez anos e não precisavam passar pelo orçamento do governo, para erguer um império empresarial.

Como revelou a apuração, ele detém o controle de pelo menos 22 empresas nas áreas de petróleo e energia, imóveis, comunicações e publicidade, por meio de familiares e “testas de ferro”. “Os Ortega se tornaram milionários”, diz o ex-ministro da Educação na gestão de Violeta Chamorro, Humberto Belli, que vive nos Estados Unidos desde junho de 2021. “Eles têm utilizado toda a estrutura do Estado para erguer um novo grupo de poder econômico ao redor de sua família”, afirma Elvira.

A escalada autoritária do regime, que já vinha se insinuando por meio do controle do Congresso e do “aparelhamento” da Suprema Corte, do Tribunal Eleitoral, da Procuradoria, do Exército e da polícia, intensificou-se após os protestos de 2018 contra a reforma da previdência proposta por Ortega, que foram reprimidos à bala e deixaram um saldo de 355 mortos, de acordo com a Comissão Interamericana de Diretos Humanos. “O que aconteceu em 2018 determinou a evolução de uma ditadura institucional para uma ditadura sangrenta”, afirma Carlos Chamorro.

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A imprensa independente foi silenciada. Três veículos de comunicação, incluindo o La Prensa, maior jornal do país, tiveram suas sedes e seus equipamentos e máquinas confiscados pelo governo. Cerca de 120 jornalistas estão vivendo no exílio, para escapar da perseguição do regime. Os partidos de oposição tiveram seus registros cassados. Seus líderes foram presos e condenados em julgamentos de fachada, feitos na própria prisão e sem que os advogados de defesa tivessem acesso aos processos com a devida antecedência. O mesmo aconteceu com os dirigentes dos meios de comunicação fechados pelo governo. Hoje, há 190 presos políticos no país, segundo entidades de defensa dos direitos humanos. “O pluripartidarismo divide a nação”, afirmou Ortega em julho de 2021, após a prisão de diversas lideranças oposicionistas. “Aqui somos um só governo, trabalhadores, empresários e o Estado.”

Silêncio da Igreja

Num movimento que já levou o papa Francisco a expressar sua “preocupação”, o regime desencadeou também uma onda repressiva contra autoridades da Igreja Católica, que culminou com a prisão do bispo Rolando Álvarez, em meados de agosto, depois de ele e seus auxiliares ficarem cerca de duas semanas confinados, sob vigilância policial, no arcebispado de Matagualpa (a 131 km de Manágua).

Nos últimos meses, o governo também expulsou do país 18 freiras da congregação Missionárias da Caridade, fundada por Madre Teresa de Calcutá, e o núncio apostólico Waldemar Stanislaw Sommertag. Fechou, ainda, oito emissoras de rádio católicas e forçou a exclusão de três canais ligados à Igreja da TV por assinatura. “O regime está tentando silenciar a Igreja porque ela tem sido a única voz independente na Nicarágua, depois do cancelamento dos partidos políticos de oposição e da prisão de seus líderes”, diz o ex-ministro Humberto Belli.

Além da repressão contra religiosos, líderes e partidos políticos e a imprensa independente, cerca de 1.400 ONGs (organizações não governamentais) humanitárias e de defesa dos direitos humanos e pelo menos cinco universidades privadas, que agora deverão ser administradas pelo governo, tiveram suas licenças para funcionar canceladas.

“Na Nicarágua, não existe mais autonomia universitária. As universidades têm de seguir o currículo que o Estado dita, porque elas sabem que podem ser fechadas a qualquer momento se o governo achar que não estão seguindo as políticas que ele quer ditar”, afirma Belli. “Acredito que vão demandar de todas as escolas de nível médio e elementar que sigam só o currículo determinado pelo governo, incluindo a propaganda que ele promove para se apresentar como salvador da Nicarágua.”

Manifestantes protestam contra a morte de estudantes em atos de 2018 e pedem a saída de Daniel Ortega. Foto: Jorge Cabrera/ REUTERS

Nem mesmo ex-companheiros de Ortega – que deixaram o partido da Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) e fundaram o Movimento de Renovação Sandinista (MRS), hoje rebatizado de União Democratica Renovadora (Unamos) – escaparam das garras do regime.

A ex-guerrilheira Dora Maria Tellez, de 66 anos, chamada de “Comandante 2″, foi condenada a 8 anos de prisão por suposta “conspiração”. O general aposentado, Hugo Torres, um dos líderes do movimento sandinista nos anos 1970, chamado de “Comandante Uno”, morreu na prisão antes de ser julgado.

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Num vídeo gravado em junho de 2021, pouco antes de ser detido pelas forças de segurança, Torres afirmou: “Há 46 anos, arrisquei a minha vida para tirar Daniel Ortega e outros prisioneiros políticos-colegas da prisão. Hoje, tenho 73 anos. Nesta fase da minha vida, nunca pensei que estaria lutando contra outra ditadura mais brutal, mais inescrupulosa, mais irracional e mais autocrática do que a ditadura de Somoza”.

Para amparar suas ações autoritárias, Ortega aprovou uma série de leis que cerceiam os direitos e as liberdades dos cidadãos desde os protestos de 2018. Em outubro de 2020, sob a desculpa de regular a área digital e punir propagadores de fake news, a Assembleia Nacional, que ele controla, aprovou a Lei Especial de Crimes Cibernéticos.

Fake news

A nova lei criminalizou a publicação de conteúdos que o governo considera falsos nas redes sociais e em veículos de comunicação, com penas que podem ir de um a dez anos de prisão. O dispositivo vem sendo usado para embasar processos contra críticos e opositores de Ortega e mostra os riscos de se aprovar uma medida do gênero, que alguns defendem no Brasil, para conceder às autoridades o poder de definir o que é ou não é uma notícia falsa.

Quem revelar informações “não autorizadas” pelo governo também poderá ser condenado a penas que vão de quatro a seis anos de prisão e quem divulgar informações que coloquem em risco a segurança nacional poderá ser condenado a até 8 anos de prisão.

Mais ou menos na mesma época, a Assembleia também aprovou a chamada Lei de Agentes Estrangeiros, que proibiu o financiamento e as doações internacionais a grupos políticos, entidades da sociedade civil, ONGs e jornalistas, supostamente para evitar a “interferência externa” nos “assuntos internos” da Nicarágua.

Ainda dentro do mesmo pacote de limitação das liberdades, um outro dispositivo chamado de “Lei da Guilhotina”, oficialmente batizado como “Lei de Defesa dos Direitos do Povo à Independência, Soberania e Autodeterminação para a Paz”, estabeleceu que “aqueles que pedirem, exaltarem ou comemorarem a imposição de sanções” contra o país não poderão se candidatar a cargos eleitorais. Serão considerados “traidores da pátria” e estarão sujeitos a ser processados criminalmente.

Por fim, em janeiro do ano passado, foi aprovada uma outra lei determinando a prisão perpétua para os chamados “crimes de ódio”, definidos como aqueles que “causam choque, rejeição, indignação e/ou nojo na comunidade nacional”. Detalhe: no dicionário de Ortega, os protestos de 2018 se enquadrariam na categoria de “crimes de ódio”. “Atualmente, só se pode definir o regime da Nicarágua como uma ditadura, um regime autoritário”, afirma Chamorro. “É um regime totalitário que quer colocar tudo sob o jugo do Estado”, diz Belli.

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Antes de sua posse, em 2007, Ortega já trabalhava para viabilizar o seu retorno ao poder, depois de duas tentativas frustradas, em 1996 e 2001. Graças a um acordo firmado com o então presidente Arnoldo Alemán, do Partido Liberal Constitucional (PLC), de centro-direita, ele conseguiu aprovar uma alteração na legislação eleitoral feita sob medida para ele.

Imperador romano

Com a mudança, o candidato que alcançasse 35% dos votos no primeiro turno das eleições presidenciais, justamente o teto eleitoral de Ortega, com distância de pelo menos 5% para o principal concorrente, não precisaria disputar o segundo turno e seria declarado vencedor. Assim, em 2006, auxiliado também pelo “racha” de seus opositores, ele conseguiu, enfim, ganhar o pleito.

Cumprida essa etapa, Ortega passou a trabalhar para permanecer no cargo por tempo indeterminado. Primeiro, em 2009, com o controle da Suprema Corte, ele conseguiu com que os magistrados derrubassem o dispositivo que proibia a reeleição presidencial, viabilizando sua candidatura nas eleições de 2011, sob acusações da oposição de que ele queria ser o imperador romano Júlio César.

Depois, em 2014, por meio de uma reforma na Constituição, Ortega conseguiu acabar com o limite à reeleição, pavimentando o caminho para sua recondução ao cargo, nas eleições de 2016. A reforma também permitiu a Ortega emitir decretos com força de lei, tirando funções do Legislativo.

Como se vê, mesmo tomando medidas que parecem respeitar as regras do jogo, Ortega minou a democracia na Nicarágua e deu um jeito de permanecer no poder até quando quiser ou puder. Agora, mesmo com as sanções internacionais, não vai ser fácil tirá-lo de lá. A melhor vacina contra essa chaga, que no Brasil também tem seus adeptos, enrustidos nas fileiras da chamada “esquerda democrática”, é rechaçar candidatos que se identifiquem com ditaduras como as da Nicarágua, de Cuba e da Venezuela. Porque, como se viu, depois não adianta chorar.

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