CABUL, ASSOCIATED PRESS - A maioria das adolescentes no Afeganistão está há um ano fora da escola. Sem sinal de que o governo do Taleban as permitirá retornar à sala de aula, algumas pessoas estão tentando encontrar maneiras de impedir que uma geração inteira de afegãs fique sem estudar.
Em uma casa em Cabul, dezenas de meninas se reúnem nas aulas da escola informal organizada por Sodaba Nazhand. Ela e sua irmã lecionam inglês, ciências e matemática para meninas que deveriam estar cursando o ensino médio.
“Quando vi o Taleban querendo retirar das mulheres direitos à educação e ao trabalho, eu quis me contrapor a essa decisão lecionando para essas meninas”, disse Nazhand à Associated Press.
A escola dela é uma entre muitas escolas clandestinas em atividade desde que o Taleban tomou o governo do Afeganistão um ano atrás e proibiu as meninas do país de continuar na escola após o 6.º ano. Ainda que o Taleban tenha permitido que mulheres sigam frequentando universidades, essa exceção se tornará irrelevante à medida que meninas não se graduem no ensino médio.
“Não há maneira de preencher esse lapso, essa situação é muito triste e preocupante”, afirmou Nazhand.
Meninas afegãs liam o Corão na Mesquita de Noor, na periferia de Cabul, na quarta-feira, 3 de agosto de 2022. Maulvi Bakhtullah, chefe da mesquita, afirmou que o número de meninas aparecendo por lá para aprender o Corão depois do fechamento das escolas públicas se multiplicou.
A ONG Save the Children entrevistou quase 1,7 mil estudantes com idades de 9 a 17 anos em sete províncias afegãs para analisar o impacto das restrições na educação.
A pesquisa, conduzida em maio e junho e publicada na quarta-feira, constatou que mais de 45% das meninas não estão frequentando a escola, contra 20% dos meninos. A sondagem também constatou que 26% das meninas apresentam sinais de depressão, em comparação a 16% dos meninos.
Quase a totalidade da população afegã foi relegada à pobreza e milhões de afegãos ficaram incapazes de alimentar suas famílias quando o mundo cortou o financiamento ao Afeganistão em resposta à tomada de poder do Taleban.
Professores, pais e especialistas alertam que as inúmeras crises no país, incluindo o devastador colapso da economia, estão se provando especialmente mais prejudiciais para as meninas. O Taleban restringiu o trabalho feminino, encorajando as mulheres a ficar em casa, e impôs regras de vestuário exigindo que elas cubram o rosto, exceto pelos olhos, apesar dessas regras nem sempre serem cumpridas.
A comunidade internacional está exigindo que o Taleban permita que todas as meninas afegãs frequentem as escolas, e os EUA e a União Europeia criaram planos para pagar salários diretamente a professores no Afeganistão, mantendo o setor da educação em atividade sem financiá-lo por meio do Taleban.
Mas a questão da educação das meninas afegãs parece ter se emaranhado em discórdias internas no Taleban. Alguns integrantes do grupo apoiam o retorno das meninas à escola — seja por não perceberem nenhuma objeção religiosa em relação a isso ou por querer melhorar suas relações com a comunidade internacional. Outros, especialmente anciões tribais das regiões rurais que conformam a coluna espinhal do movimento, se opõem ferrenhamente.
Durante o primeiro período em que governou o Afeganistão pela primeira vez, nos anos 90, o Taleban impôs restrições muito mais severas sobre as mulheres, proibindo totalmente que meninas frequentassem a escola, impedindo mulheres de trabalhar e exigindo que elas usassem uma burka cobrindo-as completamente quando saíssem de casa.
Nos anos que se seguiram à retirada do poder do Taleban, em 2001, uma geração inteira de mulheres retornou para a escola e o trabalho, particularmente em áreas urbanas. Aparentemente reconhecendo essas mudanças, o Taleban buscou tranquilizar a população afegã quando tomou novamente o poder há um ano, afirmando que não voltaria a aplicar a mesma linha dura do passado.
As autoridades taleban afirmaram e repetiram publicamente que permitirão o retorno das adolescentes para as escolas, mas dizem que precisam de tempo para estabelecer uma segregação de gênero estrita para garantir um “ordenamento islâmico”.
Esperanças emergiram em março: Pouco antes do novo ano escolar se iniciar, o Ministério da Educação do governo taleban proclamou que todos os estudantes poderiam retornar para as aulas. Mas em 23 de março, dia de reinício das aulas, essa decisão foi subitamente revertida, o que surpreendeu até autoridades ministeriais. Parece que, no último minuto, o líder-supremo do Tabelan, mulá Haibatullah Akhundzada, cedeu à oposição.
Shekiba Qaderi, de 16 anos, recordou-se que apareceu na escola aquele dia, pronta para iniciar o 10.º ano. Ela e suas colegas estavam felizes e animadas, até que um professor apareceu e as mandou voltar para casa. As meninas começaram a chorar, afirmou ela. “Foi o pior momento das nossas vidas.”
Desde então, Shekiba tenta continuar os estudos em casa, lendo cartilhas, romances e livros de história. Ela estuda inglês assistindo filmes e vídeos no YouTube.
O acesso desigual à educação ocorre dentro das famílias. Shekiba e sua irmã mais nova não podem ir à escola, mas seus dois irmãos podem. Sua irmã mais velha estuda direito em uma universidade privada, mas isso gera pouco alívio, afirmou o pai, Mohammad Shah Qaderi. A maioria dos professores deixou o país, o que baixou a qualidade da educação.
Mesmo se sua primogênita obtiver um diploma universitário, “qual é o benefício?”, perguntou Qaderi, funcionário público aposentado, de 58 anos. “Ela não terá emprego. O Taleban não permitirá que ela trabalhe”, afirmou ele.
Qaderi afirmou que sempre quis que seus filhos e filhas tivessem educação superior. Agora isso poderá ser impossível, portanto ele está pensando pela primeira vez em deixar o Afeganistão, depois de resistir a anos de guerra.
“Não posso vê-las crescendo diante dos meus olhos sem nenhuma educação; isso não é aceitável para mim”, afirmou Qaderi.
As escolas clandestinas são a outra alternativa, mas têm limitações.
Um mês depois de o Taleban tomar o poder, Nazhand começou a ensinar as crianças do bairro a ler, em aulas informais organizadas ao ar livre, em um parque na vizinhança. Mulheres que não sabiam ler e escrever se juntaram à classe, afirmou ela. Pouco tempo depois, um benfeitor que viu a aula no parque alugou uma casa para ela lecionar e comprou carteiras e assentos. Quando iniciou as atividades dentro da casa, Nazhand incluiu as adolescentes que não podiam mais frequentar a escola pública.
Agora, cerca de 250 estudantes frequentam sua escola, incluindo entre 50 e 60 meninas que já passaram do 6.º ano.
“Não estou ensinando apenas matérias escolares para elas, estou tentando ensiná-las também como lutar e resistir por seus direitos”, afirmou Nazhand. O Taleban não mudou em relação ao que era no primeiro período que ocupou o poder, nos anos 90, afirmou ela. “Os taleban são os mesmos, mas nós não devemos ser as mesmas mulheres daqueles anos. Temos de lutar: escrevendo e fazendo nossa voz ser ouvida de qualquer maneira possível.”
A escola de Nazhand — e outras iniciativas — é tecnicamente ilegal sob as atuais restrições do Taleban, mas até aqui o grupo não a fechou. Uma outra pessoa que opera uma escola clandestina se recusou a conversar com a reportagem, temendo possíveis repercussões.
Apesar de seu comprometimento inabalável, Nazhand se preocupa com o futuro de sua escola. O benfeitor pagou seis meses de aluguel pela casa, mas morreu recentemente, e ela não tem como manter o pagamento do aluguel nem dos materiais escolares.
Para as alunas, as escolas clandestinas são uma tábua de salvação. “É tão difícil quando você não pode ir à escola”, afirmou uma delas, Dunya Arbabzada. “Sempre que passo em frente à minha antiga escola e vejo a porta fechada… fico muito chateada.” /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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