Sob Taleban, afegãos enfrentam fome, apagões e falta de remédios

Quase seis meses após grupo jihadista tomar o poder, Afeganistão caminha para se tornar a maior crise humanitária do mundo em 2022, de acordo com a ONU

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Foto do author Carolina Marins

Apesar do inverno rigoroso, o estudante afegão Jamshid Roshangar, de 25 anos, conversou com o Estadão do jardim de sua casa. Sem energia elétrica, ele usou os últimos minutos de sol para aparecer na videochamada. Após seis meses de governo do Taleban, o Afeganistão mergulhou em uma crise humanitária profunda, com apagões, sem comida, remédios ou perspectivas.

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“Os cortes de energia são comuns”, lamenta Roshangar. “Em 24 horas, temos luz por 4 ou 5 horas. Às vezes, não temos nem por 24 horas ou até mais.” Ele estudava economia na Universidade de Cabul, onde mora. Mas também visita sua família na Província de Daikundi, a sudoeste da capital, onde a situação é mais dramática.

“A situação em Cabul está ruim, mas no interior está muito pior. É pior que qualquer lugar no mundo. O Afeganistão é o inferno na Terra.” Com a chegada do inverno, segundo Roshangar, com temperaturas abaixo de zero, as províncias ficam bloqueadas pela neve nas estradas, dificultando a chegada de alimentos, lenha e roupas. Mesmo a ajuda humanitária não consegue chegar.

O Taleban tenta ter acesso aos US$ 10 bilhões em reservas do Banco Central afegão. Sem o dinheiro, ele não consegue pagar pela eletricidade do Usbequistão e do Tajiquistão, que fornecem 80% da energia do país. Sem pagamento por três meses, o envio foi reduzido em 60% sem aviso prévio, causando apagões no país inteiro.

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Pessoas esperam em fila por comida em Cabul; população do Afeganistão sofre com falta de energia elétrica, remédios e roupas de frio durante inverno rigoroso Foto: Programa Mundial de Alimentação

Desemprego

O problema se torna ainda mais preocupante no inverno, onde as pessoas precisam da eletricidade para se manterem aquecidas. “Você anda pelas ruas de Cabul ao meio-dia, ou às 3 horas da tarde, e está tudo escuro, porque não há luz”, conta Shelley Thakral, do escritório de comunicação do Programa Mundial de Alimentos da ONU. “Estamos no Afeganistão há seis anos, já vimos muitas crises, emergências e conflitos, mas nunca nessa escala de desespero.”

Com a chegada do inverno, ela conta que ficou mais difícil atender às famílias devido a bloqueios rodoviários e aéreos. Ela própria estava havia dias em Herat sem conseguir voltar à capital por causa da neve.

Segundo dados da ONU, entre setembro e outubro, 19 milhões de pessoas corriam risco de passar fome no país – 30% a mais do que no mesmo período de 2019. Até março, o número deve saltar para 23 milhões, mais da metade da população. Ao mesmo tempo, 8,7 milhões já se encontram em fome extrema, um recorde. 

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Em pouco tempo, a situação do Afeganistão se deteriorou e caminha para se tornar a maior crise humanitária do mundo, pior que Etiópia, Sudão do Sul, Síria e Iêmen, segundo a ONU. Um dado que está diretamente ligado com a falta de empregos. 

De acordo com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), meio milhão de pessoas ficaram desempregadas no Afeganistão desde a chegada do Taleban. As mulheres foram as mais afetadas. Neste cenário, cerca de 97% dos afegãos correm risco de ficar abaixo da linha da pobreza, segundo o Programa da ONU para o Desenvolvimento.

Thakral vê o reflexo desses números diariamente nas longas filas de distribuição de comida em Cabul. Pessoas que antes tinham trabalho, renda e famílias inteiras para sustentar, agora pedem alimento na rua. “Na semana passada, havia uma mulher de 50 anos, professora universitária”, lembra. “Ela estava na distribuição de comida, esperando na fila pacientemente, na neve.”

Se falta dinheiro para comida, falta também para roupas em um inferno que pode chegar a -25°C na madrugada. Nas filas de distribuição de comida, Thakral vê crianças passando frio. “Havia um menino magro que calçava um tênis de plástico, com os dedos quase expostos. Ele estava tremendo, com os dentes rangendo.”

Muitas famílias estão vendendo os filhos por conta da fome, segundo Roshangar. Sem contar com a ajuda humanitária nas províncias mais distantes da capital, ele se juntou a um grupo de distribuição de comida. Roshangar conta, porém, que teme pelo futuro. “Se as coisas continuarem assim, todos estarão em risco de fome extrema. Não haverá exceções quando a primavera chegar.”