FRANSCHHOEK, África do Sul — Ele cresceu ressentindo-se das bucólicas paisagens repletas de videiras nas proximidades da Cidade do Cabo, assistindo sua mãe trabalhar duro nos campos de uvas para que os brancos pudessem saborear seus merlots e chardonnays em caves luxuosas. Ainda assim, lá estava Paul Siguqa, num sábado recente, rodopiando uma taça de chenin blanc no arejado salão de degustação agora de sua propriedade.
O feito de Siguqa, 41 anos, é excepcional: filho de uma trabalhadora rural, ele economizou 15 anos para comprar, restaurar e, no ano passado, inaugurar a Klein Goederust Boutique Winery, a única vinícola pertencente a um negro em Franschhoek, um dos vales de vitivinicultura mais prestigiosos na África do Sul.
Mas sua conquista também levanta uma dúvida frustrante: como é possível em 2022, em um país de população 80% negra, ainda chamar a atenção o fato de negros ascenderem aos níveis mais altos da sociedade?
Apesar de todo o progresso que a África do Sul fez desde os dias do sistema racista de castas codificado do apartheid, sua democracia continua jovem aos 28 anos. A nação segue lutando para superar desigualdades arraigadas, que tolhem de várias maneiras as possibilidades de sucesso econômico para as massas. Disparidades raciais aflitivas persistem em relação a riqueza e propriedade de terra.
Sul-africanos brancos são 8% da população, mas são donos de 79% das terras cultiváveis privadas, de acordo com uma análise de Johann Kirsten, diretor do instituto sul-africano Escritório para Pesquisa Econômica. A disparidade é ainda maior na indústria vitivinicultora. Pessoas negras possuem apenas cerca de 2,5% da área ocupada por vinhas no país, de acordo com um relatório do Vinpro, um grupo da indústria vinícola.
“Nós não herdamos nada”, afirmou Siguqa. “Por sermos a primeira geração, tudo começa conosco. Então o fardo é muito mais pesado.”
Com carisma e charme de vendedor, ele relata sua história pessoal com o mesmo desvelo com que descreve seus vinhos, Siguqa espera subverter esse desequilíbrio. E não apenas na indústria vinícola.
“Se é possível para o filho de uma trabalhadora rural virar dono de uma fazenda, então é possível para o filho de uma empregada doméstica virar médico, cientista ou o que quiser”, afirmou ele.
Em um fim de semana recente, Siguqa contava para um grupo de visitantes afro-americanos como conseguiu comprar sua vinícola, juntando-se aos pouquíssimos negros possuidores de vinhedos em seu país, pioneiros em uma indústria difícil de acessar para quem não é herdeiro.
Siguqa disse-lhes que trabalhou motivado pela fé e que a mobilidade social é possível, mesmo que os negros sul-africanos ainda tenham de lutar por liberdade econômica. E quando ele começou a explicar que toda família negra tem uma mulher como sua mãe — “uma negra forte, uma matriarca” — alguns de seus convidados ficaram com os olhos marejados.
“Temos tanto orgulho de você”, disse-lhe às lágrimas uma das convidadas, Jasmine Bowles, de Atlanta. “Obrigada.”
Crescendo em uma choça de dois cômodos, que dividia com a mãe e a irmã em um vinhedo de Franschhoek, a cerca de 16 km das videiras atualmente de sua propriedade, Siguqa considerava a indústria de vinho parte de um futuro sem sentido, a serviço dos brancos. Parte do salário de sua mãe era pago em vinho (que, segundo Siguqa, ela não bebia), em um esquema conhecido como “dop system”.
Sua mãe, Nomaroma Siguqa, de 71 anos, disse-lhe que ela seria a última geração de sua família a trabalhar nos campos. “Eu queria que meus filhos tivessem uma oportunidade e não vivessem uma vida dura restritos a uma fazenda”, afirmou Nomaroma. Portanto, ela imprimiu nos filhos a importância da educação.
Enquanto Siguqa se dedicava aos estudos, ele revelou também vocação para os negócios. Perto do fim do ensino médio, para juntar dinheiro para a universidade, ele começou a comprar frutas dos agricultores de sua região no atacado e vendê-las em um cruzamento movimentado. No primeiro fim de semana, ele lucrou 875 rands (cerca de US$ 50), mais do que os 800 rands que sua mãe ganhava em um mês inteiro de trabalho. O empreendimento ficou tão movimentado, afirmou Siguqa, que ele teve de contratar dois ajudantes.
Foi nessa época que a perspectiva de Siguqa a respeito da indústria vitivinicultora começou a mudar.
Com o fim do apartheid, ele começou a trabalhar meio período conduzindo degustações na vinícola em que vivia. Ele afirmou que ficava maravilhado quando via negros ricos aparecendo para desfrutar dos vinhos. Isso o fez pensar que poderia essa indústria poderia oferecer mais para pessoas como ele do que trabalho duro e baixos salários.
Aos 17 anos, então, Siguqa resolveu que um dia seria dono de vinícola.
Depois de se graduar na universidade, ele abriu uma empresa de comunicação e uma produtora de eventos, ambas bem-sucedidas, enquanto procurava uma fazenda de vinhedos que coubesse em seu orçamento.
A procura ficou séria em 2019, quando Siguqa encontrou uma vinícola à venda por 40 milhões de rands (US$ 2,2 milhões). Ele pediu para seu amigo vitivinicultor Rodney Zimba visitar a fazenda. Zimba, de 48 anos, cresceu com Siguqa — as famílias de ambos trabalharam nos mesmos vinhedos.
Mas, quando Zimba visitou a vinícola à venda, ele soube que o negócio não funcionaria, por causa da estrada ruim e da dificuldade para encontrar o lugar. “Somos literalmente filhos de trabalhadores rurais, e quero que o mundo saiba quem somos”, afirmou Zimba.
Então ele insistiu que Siguqa escolhesse outra propriedade — mais pequena (9,7 hectares), mais barata (12 milhões de rands) e com porteira na principal estrada de Franschhoek, a cerca de cinco minutos da cidade.
O único problema? O lugar estava dilapidado.
Ainda assim, Siguqa seguiu o conselho de Zimba e comprou a propriedade à vista em 2019. Zimba pediu demissão de um emprego estável em uma vinícola para ajudar a liderar o projeto de restauração e se tornar vitivinicultor de Siguqa.
“Acho que estamos construindo um legado aqui”, afirmou Zimba.
Após dois anos e 23 milhões de rands gastos nas reformas, Siguqa abriu as portas de seu terroir em 3 de dezembro de 2021. A carta da vinícola oferece cinco variações, incluindo um shiraz, um corte cabernet-merlot e um vinho de sobremesa.
Siguqa manteve o nome original da vinícola, Klein Goederust, estabelecido em 1905, porque conhece a psique de seu país. Consumidores podem associar uma marca batizada como Siguqa Wine a um vinho de menor qualidade em razão do nome africano, afirmou ele.
“O apartheid deixou uma marca profunda na nossa mentalidade”, afirmou ele.
Ainda assim, a vinícola de Siguqa está imbuída de sua herança. Empresa relativamente pequena, suas duas casas em estilo colonial holandês — um salão de degustação e um restaurante — exalam informalidade, cercadas por 6,5 hectares de vinhas. O que antes serviu como estábulo e depósito do vinho barato que era dado aos empregados virou um descolado bar com teto de vidro.
Ao selo Klein Goederust, Siguqa acrescentou um pássaro da chuva, em referência ao nome de seu clã. Seu rótulo principal, um espumante brut, recebeu o nome de sua mãe — Nomaroma Method Cap Classic.
“Fiquei extremamente feliz e orgulhosa”, afirmou Nomaroma — apesar de seu gosto exigente. Ela disse ao filho certa vez que a cor do espumante estava pálida demais e que ele precisava se esforçar no trabalho, pois pessoas negras são julgadas mais rigidamente. “Minha experiência me ensinou que tudo deve ser feito da maneira correta”, afirmou ela. “A perfeição sempre é necessária.”
Esse sentimento não se perdeu em Siguqa, que disse almejar a excelência em sua vinícola porque “as pessoas duvidam de antemão dos negros — e pensam: ‘Será que esses sujeitos sabem o que estão fazendo?’”.
Uma funcionária disse a ele recentemente que levaria de oito a dez semana para os rótulos do espumante brut ficarem prontos, mas que podia consegui-los em outro lugar mais rapidamente. “Não, não será a mesma coisa”, disse-lhe Siguqa. “Não podemos abrir mão da qualidade.”
Siguqa parece já estar influenciando uma nova geração de possíveis vitivinicultores.
Sidima Ganjana, de 23 anos, natural de uma localidade em terras vinícolas sul-africanas, também cresceu pensando que a única coisa que a indústria de vinhos oferecia a pessoas negras, como ele, era trabalho duro. Mas ele logo descobriu uma academia que treina jovens desfavorecidos a respeito do setor — e então encontrou uma reportagem sobre Siguqa. Ganjana quis aprender como um negro conseguiu comprar uma parcela de terra que parecia reservada para os brancos. E foi à vinícola pedir um estágio para Siguqa.
“Não sinto que este lugar é apenas uma empresa”, afirmou Ganjana. “Parece algo maior.”
Caminhando por sua fazenda, Siguqa mostrou para a reportagem um espaço em que ele planeja erguer sua própria fábrica de vinhos (atualmente ele aluga instalações de outras vinícolas) e um hotel de 20 suítes.
Siguqa apontou para a cerca de arame nos fundos de sua propriedade, na direção de uma pequena comunidade, feita de barracos metálicos, aos pés de uma grande montanha. O povoamento se chama Langrug, é um assentamento informal de negros que trabalham nas videiras.
Alguém lhe sugeriu certa vez plantar árvores ao longo da cerca para bloquear a visão da favela, mas Siguqa afirmou que não seria capaz de fazer isso — porque essa disparidade entre as grandes vinícolas dos brancos e o trabalho duro dos negros está em sua história — e ainda é a realidade de muitos. “É um lembrete da desigualdade”, afirmou ele. “Um lembrete constante do quanto ainda temos de evoluir como país.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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