Entre os afegãos, a sensação é de déjà-vu. Radicais de barba longa e turbante negro circulam espalhando o terror em picapes, rifles AK-47 em punho. Impõem regras próprias e decidem o destino dos cidadãos em tribunais conduzidos por mulás, com base na sharia, a lei islâmica. Relatório publicado em janeiro pelo Conselho Internacional em Segurança e Desenvolvimento apontou que os taleban voltaram a dominar 72% do território - em 2007, controlavam 54%. Isso significa que a maior parte das províncias funciona à revelia do governo de Hamid Karzai e das forças de coalizão. Nelas, o país tem outro nome: Emirado Islâmico do Afeganistão. "Na minha área, os taleban mandam, nomeiam juízes para aplicar a sharia e ameaçam matar quem ousar trabalhar para o governo, considerados infieis", disse ao Estado Ahmad Munir, que vive em Barakibarak, na Província de Logar, a apenas 50 km de Cabul. Os radicais controlam estradas, vistoriam carros à procura de "infieis", cobram pedágio de caminhões e bloqueiam a ajuda humanitária. Enquanto os EUA desviavam militares e dólares para derrubar Saddam Hussein, o comando do Taleban teve tempo de se reorganizar no Paquistão, onde a Al-Qaeda estaria refugiada. Aderiu ao movimento pan-islâmico e se alinhou à organização, assimilando táticas conhecidas do terrorismo internacional, mas não vistas no Afeganistão até recentemente: sequestros e ataques suicidas. Beneficiados pela frustração e miséria dos afegãos, eles recrutaram no ano passado homens-bomba para 123 atentados. Com os sequestros, negociam a libertação de presos e resgates milionários. Desde a morte de Ajmal Naqshbandi , a imprensa fez um pacto de silêncio para não prejudicar as negociações. A portas fechadas, fala-se em 70 reféns estrangeiros e afegãos, entre eles um conhecido jornalista americano. Analistas acreditam que o sucesso da insurgência se deve à capacidade do Taleban de manter um comando central coeso. Quando as forças de coalizão lideradas pelos EUA tiraram os taleban do poder, em 2001, eles se dividiram. O comando atravessou a fronteira e sumiu com Osama bin Laden em algum ponto das montanhas e áreas tribais entre o Afeganistão e o Paquistão - acredita-se que o líder taleban, mulá Omar, opere da cidade de Quetta. Ao longo dos anos, ele teria investido em retomar as relações com as tribos pashtuns, etnia dos taleban, e militantes de segundo escalão que haviam voltado a seus vilarejos. Aos poucos, transferiu armas, expertise e dinheiro a eles. Parte de seu financiamento vem do ópio. Mas também de doadores árabes como os wahabitas (a ala mais radical do Islã), da Arábia Saudita. "Durante seu governo, entre 1996 e 2001, o Taleban tinha pouco contato com a política internacional", diz Waheed Muzhda, que chegou a fazer parte do Ministério das Relações Exteriores dos radicais. "Só havia internet na minha sala e na do mulá Omar. Hoje, eles se comunicam com o mundo." Os taleban atraíram aliados como os mujahedin Gulbuddin Hekmatyar e Jalaluddin Haqqani. Beneficiados com dinheiro e armas da CIA para expulsar os soviéticos que ocuparam o Afeganistão entre 1979 e 1989, eles se uniram contra a ocupação americana. Com bons contatos no mundo árabe, Haqqani seria o elo dos radicais com a Al-Qaeda . O mujahedin é acusado de recrutar e treinar cerca de 2 mil terroristas estrangeiros para a jihad no Afeganistão, com a ajuda do serviço secreto do Paquistão. MESADA Além de um mercado para seus produtos, o Paquistão tem no Afeganistão a rota para a Ásia Central. "O fim do Taleban significaria o fim da mesada americana", disse ao Estado um diplomata ocidental em Cabul. No rastro do avanço dos taleban, parte do governo considera negociar com os radicais. Os analistas são céticos. Primeiro, porque, desmoralizado e sem o controle da segurança, Karzai está numa posição desfavorável de barganha. Depois, porque os radicais exigem a saída das forças estrangeiras e, com eles, os dólares da CIA. Para analistas, a saída das forças estrangeiras levaria o país, no curto prazo, a uma guerra civil, como ocorreu quando os russos saíram. Sem um governo central forte e armados até os dentes, os mujahedin viraram-se uns contra os outros. Os intensos ataques entre 1992 e 1996 deixaram milhares de mortos e um vácuo rapidamente preenchido pelos taleban - filhos de refugiados do regime soviético, tirados de suas famílias e treinados nas madrassas da fronteira do Paquistão para a jihad contra os invasores. Cansados dos conflitos e afundados na miséria, os afegãos aceitaram os jovens religiosos, que prometiam restabelecer a ordem. A retórica ainda hoje encontra eco. Frustrados com a corrupção do governo, a falta de ajuda e a incapacidade das forças de coalizão de defendê-los, muitos afegãos acreditam que a ordem imposta pelos taleban é melhor do que nenhuma. E a história se repete. 30 ANOS DE VIOLÊNCIA 1979 - URSS invade o Afeganistão. Acusado de colaborar com os EUA, presidente Hafizullah Amin é executado 1980 - Babrak Karmal, aliado de Moscou, assume; mujahedin (combatentes islâmicos), armados pela CIA, aumentam ataques 1986 - Karmal é substituído por Mohamad Najibullah 1989 - Soviéticos retiram-se do país, mas conflitos continuam 1992 - Najibullah cai; mujahedin se dividem e o Afeganistão mergulha em uma guerra civil 1996 - Taleban toma Cabul e institui governo islâmico 1998 - Washington bombardeia supostos refúgios da Al-Qaeda - acusada por atentados contra embaixadas dos EUA no Quênia e Tanzânia - no Afeganistão 1999 - ONU impõe embargo para forçar Cabul a entregar Osama bin Laden Março de 2001 - Talebans destroem estátuas gigantes dos Budas de Bamiyan Setembro de 2001 - Ahmad Masood, líder da oposição ao Taleban, é assassinado. Após ataques de 11/9, EUA e Grã-Bretanha atacam Afeganistão Dezembro de 2001 - EUA ocupam Cabul e o Taleban cai; Hamid Karzai assume o poder 2004 - Nova Constituição é aprovada; Karzai é eleito presidente com 55% dos votos 2005 - País realiza pela primeira vez eleições parlamentares e provinciais 2006 - Otan assume o controle da segurança em todo o país 2007 - Líder taleban Mullah Dadullah morre em combate 2008 - Taleban libertam 350 insurgentes de prisão em Kandahar; ataque suicida mata 50 na Embaixada da Índia 2009 - Obama nomeia Richard Holbrooke seu enviado para região e pede nova estratégia para guerra; Taleban ataca três ministérios, matando 27 O mercado das pulgas de Cabul chama-se Bush Market e vende suplementos nutricionais, rações militares, roupas e artefatos usados por soldados americanos e roubados da base aérea de Bagram. "Propriedade do governo dos EUA. Venda proibida", diz a caixa da Ameriqual Packaging com omelete vegetariano ou batata e bacon desidratados e à vácuo. E há comida com a validade vencida jogada fora por expatriados. O italiano Alberto Cairo é o estrangeiro querido por todos os afegãos, até os taleban. E ele é católico. Aos 56 anos, 19 deles no Afeganistão, ajudou 90 mil amputados a andar de novo. A maioria atingida por minas terrestres que, embora banidas pela ONU em 1997, fazem duas vítimas por dia no país, como o sapateiro Sher Mohammad, 28 anos. Crianças são 48% delas. Ghulam Haidee pediu ao filho que ficasse longe dos taleban. Tradutor, Ajmal, de 23 anos, levaria o repórter italiano Daniele Mastrogiacomo, do "La Repubblica", para entrevistar o temido chefe militar mulá Dadullah (morto em 2007), em Helmand. Ajmal e Mastrogiacomo foram capturados. Duas semanas depois, o italiano foi solto em troca da libertação de cinco insurgentes, em uma negociação que envolveu diretamente o presidente Hamid Karzai. Temendo novos sequestros, os EUA criticaram o acordo e Karzai rejeitou novas conversas com os radicais que exigiam a libertação de outros três taleban em troca de Ajmal. Seu corpo foi devolvido à família 38 dias depois, decapitado. "Ele era um bom muçulmano", diz o pai. Kafi não viu o filme O Caçador de Pipas, mas podia ter sido o protagonista. Ele é um dos melhores do Afeganistão. Desde a queda dos taleban, as pipas voltaram a colorir a colina de Nader Khan, onde se dão as competições. "É uma tradição afegã", diz o vendedor Wahidullah Zada, preso três vezes pelo Taleban por esconder 30 mil pipas em sua loja, com fachada de detergentes.