Taleban no Afeganistão: entenda o que é o grupo e a situação um ano depois da retomada do poder

Milícia extremista islâmica conseguiu conquistar a capital Cabul semanas após uma ofensiva militar contra o governo do presidente afegão

PUBLICIDADE

Foto do author Redação
Por Redação
Atualização:

Em 15 de agosto de 2021, o Taleban voltou ao poder depois de quase 20 anos. A milícia extremista islâmica entrou em Cabul após poucas semanas de uma ofensiva militar contra o governo do presidente Ashraf Ghani, marcada pela rápida captura de capitais provinciais, em meio à retirada das tropas americanas e da Otan.

PUBLICIDADE

A rapidez com a qual o Taleban voltou ao poder surpreendeu o governo do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que previa a chegada do grupo a Cabul apenas após meses de conflito.

Como resultado, o Pentágono teve de organizar às pressas uma operação para retirar diplomatas da embaixada em Cabul, que, em alguns aspectos, relembrou a fuga de Saigon, em 1975, durante a Guerra do Vietnã.

Combatentes do Taleban patrulham posto de controle em Kandahar, Afeganistão; mais de 100 ex-membros das forças de segurança do país foram mortos ou desapareceram nos primeiros dois meses e meio do governo extremista Foto: Jim Huylebroek

O Taleban ao voltou ao poder com um discurso moderado, anunciando  uma versão mais branda do regime linha-dura que caracterizou seu primeiro comando do Afeganistão, de 1996 a 2001.

Na prática, direitos femininos e liberdade de imprensa foram amordaçados, muitas restrições de liberdade às afegãs foram reimpostas pelo grupo, e minorias voltaram a ser perseguidas e entre outras promessas quebradas.

Os maiores alvos do grupo são as mulheres, que entre 1996 e 2001 foram proibidas de estudar ou até mesmo de sair de casa.

O que é o Taleban?

Publicidade

O Taleban chegou ao poder no Afeganistão na década de 1990, formado por guerrilheiros que expulsaram as forças soviéticas na década anterior com o apoio da CIA e dos serviços de inteligência do Paquistão. A maioria de seus membros são pashtuns, o maior grupo étnico do país. O nome significa alunos em pashto, a língua mais falada no Afeganistão.

Acredita-se que o movimento predominantemente pashto tenha aparecido pela primeira vez em seminários religiosos, muitos deles financiados pela Arábia Saudita, pregando uma forma linha-dura de islamismo sunita.

As promessas feitas pelo Taleban, nas áreas pashto que ficam entre o Paquistão e o Afeganistão, eram de restaurar a paz e a segurança e impor sua própria versão austera da sharia, ou lei islâmica, quando chegasse ao poder. Do sudoeste do Afeganistão, o Taleban rapidamente expandiu sua influência.

O fundador, Mohammad Omar, comandante da resistência anti-soviética, lançou o movimento em 1994 para garantir a segurança da cidade de Kandahar, no sudeste, que era atormentada pelo crime e pela violência. A visão de justiça do Taleban o ajudou a acumular poder. “Na época, as pessoas realmente queriam lei e ordem, e não havia nenhuma”, disse Kamran Bokhari, do Newlines Institute, um centro de estudos de política externa.

PUBLICIDADE

No outono de 1996, o Taleban tomou Cabul e declarou o país um emirado islâmico. O governo do Taleban foi brutal e repressivo. As mulheres praticamente não tinham direitos; foram impedidas de estudar e forçadas a usar roupas que as cobrissem completamente. Música e outras formas de mídia foram proibidas.

A ideologia do Taleban era semelhante à de sua contraparte, o grupo radical Al-Qaeda, embora seus interesses se limitassem a governar o Afeganistão. Em troca de ajuda a grupos de combate alinhados com o governo do país, os líderes do Taleban abrigaram Osama bin Laden e outros membros da Al-Qaeda envolvidos nos ataques terroristas de 11 de setembro. Uma coalizão liderada pelos EUA derrubou o regime no final daquele ano.

No final de julho de 2015, o governo afegão confirmou que Omar havia morrido em abril de 2013 em Karachi, no Paquistão.

Publicidade

Como o Taleban recuperou suas forças?

Depois de serem expulsos, os membros do Taleban se espalharam. Alguns líderes encontraram refúgio no Paquistão, onde começaram a se fortalecer com a ajuda do sistema de segurança do país. No Afeganistão, a presença das forças dos EUA ajudou a fornecer ao Taleban um grito de guerra anticolonialista para os recrutas. O mesmo aconteceu com a corrupção no governo afegão.

“Por duas décadas, o movimento do Taleban foi lentamente desbastando, vila por vila”, disse Robert Crews, um especialista em Afeganistão da Universidade de Stanford. “É um tipo de jogo muito sofisticado, de guerrilha, de mobilização popular.”

Os militantes também renovaram suas fileiras por meio de uma campanha de medo e violência. Pessoas que se alistaram nas forças policiais ou no exército nacional foram assassinadas. Intelectuais públicos, jornalistas, figuras da mídia e outras pessoas que representam a face jovem da sociedade civil do Afeganistão também foram visados.

As tropas afegãs, suas fileiras perseguidas pela incompetência e corrupção, murcharam diante dos avanços do Taleban.

“As pessoas estão perguntando: ‘Eu quero morrer por um governo que não enviou a minha unidade de munição? Não recebemos há meses, estamos sem comida. Agora os americanos se foram’”, disse Crews. “Parece meio sem esperança.”

Como o Taleban é financiado e armado?

Publicidade

O Taleban obtém financiamento de várias fontes. Parte do dinheiro vem do comércio de ópio e do tráfico de drogas ou de outros crimes, como o contrabando. O grupo tributa e extorquia fazendas e outros negócios. Às vezes, os militantes estão envolvidos em sequestros para obter resgate.

O grupo também recebe doações de uma ampla gama de benfeitores que apóiam sua causa ou a veem como um bem útil, disseram os especialistas.

“Não é verdade que eles precisem de muito dinheiro para operar”, disse Bokhari. “Eles não moram em casas grandes. Eles não usam roupas elegantes. A maior despesa é o salário, armas e treinamento”.

É fácil encontrar armas em uma região inundada por elas. Algumas são doadas, outras compradas. Muitas são roubadas.

“À medida que o exército nacional do Afeganistão desmoronou”, disse Crews, “uma das primeiras ações do Taleban ao se mudar para um novo território é ir a uma sede do governo, prender ou matar essas pessoas, abrir as prisões e, em seguida, ir para as bases do governo e apreender as armas”.

Em algumas áreas tribais, incluindo no Paquistão, uma “indústria caseira” de fundições surgiu onde os trabalhadores fabricam rifles de assalto, de acordo com Bokhari.

Qual é o objetivo do Taleban?

Publicidade

O objetivo do Taleban é simples, dizem os especialistas: recuperar o que o grupo perdeu no início dos anos 2000.

Professora paquistanesa liderauma classe de meninas em uma escola em Mingora, a principal cidade do vale de Swat, região onde Malala foi baleada pelo Taleban. Foto: A. Majeed

“Eles querem que seu emirado islâmico volte ao poder”, disse Crews. “Eles querem sua visão da lei islâmica.” Ele continuou: “Eles não querem um parlamento. Eles não querem política eleitoral. Eles têm um emir e um conselho de mulás, e essa é a visão que eles tem como a melhor para o Islã”.

Não parece haver um único líder do Taleban, mas o grupo parece ter vários líderes principais. Ainda não está claro se a vida sob o governo do Taleban será a mesma de antes. Não há dúvida de que o grupo quer confinar as mulheres em suas casas, acabar com a educação mista e trazer de volta uma sociedade com a lei islâmica em seu centro.

Mas uma sociedade civil floresceu nas últimas duas décadas que não existia antes. As mulheres assumiram cargos públicos não apenas em Cabul, mas também em cidades menores. Telefones celulares e redes sociais são comuns. Especialistas questionaram se o Taleban seria capaz de governar uma população que mudou.

“Há muitas pessoas que estão melhor conectadas ao mundo por meio da mídia social e dizem: ‘Ei, por que não podemos ter uma vida assim?’”, disse Crews. “O que eles farão com uma sociedade que acredita no pluralismo e não acredita na monopolização do poder? Até que ponto a violência do Taleban silenciará essas vozes?”

Como era a vida sob o Taleban?

Cansada dos excessos dos mujahidin e das lutas internas após a expulsão dos soviéticos, a população afegã em geral deu as boas-vindas ao Taleban quando eles apareceram pela primeira vez.

Publicidade

Sua popularidade inicial deveu-se em grande parte ao sucesso em reduzir a corrupção, coibir a criminalidade e trabalhar para tornar seguras as estradas e áreas sob seu controle, estimulando assim o comércio.

No entanto, o Taleban também introduziu e apoiou punições consistentes com sua interpretação estrita da lei islâmica: executar publicamente assassinos e adúlteros condenados e mutilar os condenados por roubo.

Além disso, os homens tiveram que deixar a barba crescer e as mulheres tiveram que usar burcas que cobrissem tudo. O Taleban também proibiu a televisão, música, filmes, maquiagem e proibiu que meninas com 10 anos ou mais fossem à escola.

Alguns afegãos continuaram a fazer essas coisas em segredo, correndo o risco de punição extrema. O Taleban foi acusado de vários abusos culturais e violações dos direitos humanos.

Um exemplo notável foi em 2001, quando o Taleban destruiu as famosas estátuas dos Budas de Bamiã, no centro do Afeganistão, apesar da condenação e indignação que isso causou em todo o mundo.

Aliados da Al-Qaeda?

O Taleban se tornou um foco de atenção em todo o mundo após os ataques ao World Trade Center em Nova York em 11 de setembro de 2001. Eles foram acusados de servir de santuário para os principais suspeitos dos ataques: Osama bin Laden e seu movimento Al-Qaeda.

Publicidade

Em 7 de outubro de 2001, uma coalizão militar liderada pelos EUA lançou ataques no Afeganistão e, na primeira semana de dezembro, o regime do Taleban já havia entrado em colapso.

O então líder do grupo, Mullah Mohammad Omar, e outras figuras importantes, incluindo Bin Laden, escaparam da captura apesar de terem sido alvos de uma das maiores perseguições do mundo.

Muitos líderes do Taleban supostamente se refugiaram na cidade paquistanesa de Quetta, de onde lideraram o grupo. Mas o Paquistão negou a existência do que foi apelidado de “Quetta Shura”, um grupo de veteranos do regime do Taleban que estaria no país.

Durante as recentes negociações de paz com os EUA, o Taleban garantiu que não mais hospedaria a Al-Qaeda, uma organização que está muito diminuída.

Quem lidera o grupo?

Mawlawi Hibatullah Akhunadzad foi nomeado Comandante Supremo do Taleban em 25 de maio de 2016, depois que Mullah Akhtar Mansour foi morto em um ataque de drones nos Estados Unidos.

Na década de 1980, ele participou da resistência islâmica contra a campanha militar soviética no Afeganistão, mas sua reputação é mais a de um líder religioso do que a de um comandante militar. Akhundzada trabalhou como chefe dos tribunais da Sharia na década de 1990.

Publicidade

Acredita-se que ele esteja na casa dos 60 anos e viveu a maior parte de sua vida no Afeganistão. No entanto, de acordo com especialistas, ele mantém laços estreitos com os chamados Quetta Shura, líderes do Taleban afegão que afirmam estar baseados na cidade paquistanesa de Quetta.

Como comandante supremo do grupo, Akhundzada é responsável pelos assuntos políticos, militares e religiosos.

Qual é a situação atual?

O Taleban não cumpriu muitas das promessas que fez. Um ano depois, o grupo implementou muitas restrições à vida das mulheres. Elas devem se cobrir da cabeça aos pés em público. Se uma mulher não cobrir o rosto fora de casa, seu pai ou parente homem mais próximo pode ser preso ou demitido de cargos públicos. As mulheres não podem embarcar em aviões sem um homem, que deve ser seu marido ou um parente próximo do sexo masculino.

A entrada em parques públicos no Afeganistão é limitada por gênero. Três dias são reservados para as mulheres, e quatro para os homens. No entanto, de acordo com um decreto, é fortemente recomendado que as mulheres saiam de casa apenas quando necessário.

Os taleban alegam preocupações de segurança ao tomar tais decisões. O Taleban também restringiu a atuação de mulheres em certos setores, conforme descrito num relatório da Anistia Internacional. Muitas mulheres em cargos altos, mesmo no setor privado, foram demitidas.

Garotas foram proibidas de frequentar o ensino médio. O Taleban permitiu que meninas mais jovens fossem à escola em classes segredadas dos garotos, mas as alunas do ensino médio foram privadas da educação.

Publicidade

Em março, o Ministério da Educação anunciou que as escolas seriam abertas para todos os alunos, inclusive para as meninas. No entanto, um dia depois, quando as garotas retornavam às aulas pela primeira vez, o ministério reverteu a permissão, exigindo que elas deixassem a escola.

O ministério culpou a falta de professores e problemas nos uniformes escolares, e afirmou que abriria as escolas para meninas assim que um plano fosse elaborado de acordo com a “lei islâmica e a cultura afegã”. Desde então, porém, nada mudou.

Perseguição aos inimigos

Em 17 de agosto de 2021, Mujahid disse: “Gostaria de assegurar a todos os compatriotas – sejam eles tradutores, envolvidos em atividades militares ou civis – que todos eles foram importantes. Ninguém sofrerá vingança.” Ele afirmou ainda: “Milhares de soldados que lutaram contra os talibãs por 20 anos, após a ocupação, todos eles foram perdoados.”

A Anistia Internacional afirma que, após uma “onda inicial de assassinatos em represália […] desencadeada durante a tomada do poder pelo Taleban " e uma “caçada de porta em porta” por supostos “colaboradores” nos dias em que o grupo tomava o poder em Cabul, parece que os islâmistas não realizaram a temida campanha de vingança contra seus antigos inimigos.

No entanto, a Missão de Assistência das Nações Unidas no Afeganistão (Unama) registrou pelo menos 160 execuções extrajudiciais, 178 prisões arbitrárias, 23 prisões em regime de incomunicabilidade e 56 casos de tortura de ex-funcionários do governo e de segurança cometidos pelas autoridades talibãs entre 15 de agosto de 2021 e 15 de junho de 2022. O relatório da Unama sobre direitos humanos no Afeganistão conclui que a anistia foi violada em várias ocasiões.

Esses números não incluem dezenas de execuções extrajudiciais, maus-tratos e prisões arbitrárias de supostos membros do “Estado Islâmico – Província de Khorasan” e da Frente Nacional de Resistência do Afeganistão (NRF, em inglês). A NRF defendeu o vale de Panjshir contra as forças talibãs até setembro do ano passado e ainda está tentando recuperar o controle da região. / AP, AFP, REUTERS, W.POST e NYT

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.