O brasileiro Rodrigo Duarte, de 31 anos, passou a conviver nos últimos três anos de pandemia do coronavírus com a incerteza sobre a possibilidade de viajar, trabalhar e até de sair de casa para ir ao mercado em Wuhan, na China, onde mora desde 2016 e onde o vírus foi detectado pela primeira vez. Se antes podia viajar 1.000 quilômetros de Wuhan a Pequim com facilidade para dar uma aula de judô, agora, o mesmo deslocamento se tornou burocrático e mais difícil por causa da política de covid zero do governo chinês.
Implementada em janeiro de 2020 para conter o vírus, a política de covid zero foi utilizada na China até novembro de 2022, quando milhares de pessoas em todo o país protestaram contra a sua manutenção. A estratégia consistia em rastrear os casos de covid de forma permanente e em quarentenas locais rigorosas em condomínios, bairros, cidades ou províncias quando algum infectado era detectado. “Até recentemente, era bem inconveniente viajar porque você precisava ficar em um hotel em quarentena por alguns dias. Isso fez com que a dinâmica de viver, trabalhar e se divertir tenha se tornado muito mais local do que antes”, declarou Duarte, que trabalha como professor de judô, uma arte marcial japonesa.
No dia 24 de outubro, cerca de 207 milhões de pessoas na China foram afetadas por lockdowns implementados em 28 cidades do país após as autoridades detectarem mil novos casos de covid por três dias seguidos, segundo uma análise do grupo de financistas asiáticos Nomura à agencia de notícias Reuters. O número é próximo da população do Brasil, estimada em 214 milhões. As restrições afetaram as áreas das cidades de maneira diferente, a depender do grau de risco que estavam classificadas, mas na maior parte dos casos as pessoas ficaram proibidas de sair de casa ou de seus condomínios.
Segundo o pesquisador brasileiro Renato Peneluppi, pesquisador associado do Centro para a China e Globalização, um think thank chinês, o deslocamento dos chineses é uma das maiores mudanças causadas pela política de covid zero e transformou o turismo do país após a pandemia. “As viagens para cidades da província onde você mora passaram a ser mais procuradas porque você não sabia se podia atravessar uma ou duas províncias e voltar com tranquilidade. O controle dentro da própria província é mais fácil, tornando a viagem mais tranquila”, afirmou.
As incertezas de viagens durante tanto tempo acabou por ser um dos maiores fatores de frustração coletiva com a política de covid zero por tanto tempo. “Havia um desgaste entre a população e uma frustração com a aproximação do ano novo chinês, porque as pessoas estão fazendo menos dinheiro, você não sabe se vai viajar ou não, porque pode eclodir uma crise perto do ano novo e tudo fechar novamente. Isso tornava mais incerto saber se as pessoas iam encontrar familiares, pelo terceiro ano seguinte”, acrescentou Peneluppi.
O deslocamento é apenas um dos aspectos do país que foram transformados pela pandemia e pela política de covid zero, criada com o objetivo de evitar mortes por covid em uma nação de 1,41 bilhão de pessoas – equivalente a soma das populações da América Latina e da América do Norte. Os resultados foram satisfatórios para o governo chinês, que registrou apenas 5,2 mil mortes nos três anos de pandemia, apesar da frustração coletiva recente.
Covid na China
No Ocidente e em outras nações orientais, como a Coreia do Sul, os lockdowns e o rastreamento de infectados, duas características do modelo chinês, foram estratégias adotadas no início e em fases mais graves da pandemia, mas foram abandonadas progressivamente após o surgimento das vacinas, que se tornou a maior estratégia para conter a pandemia. As sociedades destes países mudaram com novas tecnologias, como, por exemplo, a telemedicina, que virou comum no Brasil.
Entretanto, da forma como funcionou na China, a política de covid zero não foi implementada em nenhum outro país do mundo. O governo chinês também vacinou massivamente a população, mas a manteve como prioridade e rigor até onde conseguiu. Como consequência, a política prolongada catalisou mudanças maiores do que em outras regiões, seja na área da tecnologia, do emprego e nos hábitos diários. A economia também foi afetada, com crises no mercado imobiliário, desaceleração do crescimento chinês, dificuldades para pequenos comerciantes e aumento no desemprego entre os jovens.
Tecnologia
Os smartphones se tornaram importantes na vida dos chineses – e no restante das sociedades modernas – a partir de 2014, mas após a pandemia o seu uso passou a ser crucial na China até para se locomover. Com a política de covid zero, o governo chinês implementou o código QR nos estabelecimentos do país e os cidadãos passaram a ser obrigados a escaneá-lo para comprovar que estavam em áreas seguras de covid ou que não estavam infectados. “O Código QR passou a gerir o espaço: onde você vai, em uma loja ou um ônibus, você escaneia e você recebe informação se ali passou ou não alguém infectado”, explicou Renato Peneluppi.
O celular também passou a ser mais utilizado para serviços, como as consultas médicas. O uso é semelhante ao que se popularizou no Brasil após a pandemia, mas vai além: também é possível marcar consultas e, ao chegar no hospital, não ter contato com nenhum humano. “Eu faço tudo pelo celular. Quando chego no hospital, se precisar ir até lá, só vou a sala do médico, não sou parado por ninguém e não enfrento filas pra falar com um atendente”, contou Rodrigo Duarte.
A inteligência artificial também se tornou mais presente no dia a dia dos chineses, reduzindo o contato entre humanos e aumentando o contato de humanos com robôs – o que reduz a chance de contágio de covid. “Passou a ser normal andar no shopping e pedir ajuda a um robô para achar uma loja ou restaurante”, acrescentou o brasileiro.
Hábitos
Como em outras partes do mundo, o uso de máscara se tornou obrigatório na China após o surgimento de coronavírus. O hábito já era difundido na Ásia, mas hoje é praticamente impossível ver alguém sem máscara nas ruas do país. Mais do que uma medida obrigatória, passou a ser um traço cultural. “A máscara passou a ser o instrumento de qualquer cidadão, para o transporte público ou outros espaços públicos. Ainda hoje (após o fim da política de covid zero), isso não foi abandonado”, disse Peneluppi.
Durante os períodos de lockdowns, os chineses também foram impedidos de se reunir em restaurantes com amigos e familiares para jantar, algo corriqueiro no país, como no Ocidente. Após três anos, esse hábito se fragilizou e o serviço de delivery passou a ganhar cada vez mais força.
Os testes de covid também passaram a fazer parte da rotina. Chineses se testam a cada 24 ou 48 horas em pontos instalados em praticamente todas as esquinas do país ou dentro de condomínios. Normalmente, eles são convidados por profissionais para fazer os testes.
A mudança mais latente, entretanto, foi no deslocamento entre cidades. Passou a ser necessário ter uma atenção maior ao destino e a área de hospedagem para evitar cidades sob lockdowns. Isso provocou viagens mais provinciais e menos nacionais. Antes, o brasileiro Rodrigo Duarte conseguia viajar tranquilo para dar aulas em cidades distantes de Wuhan, como Pequim e Nanjing, e tinha a confiança de seguir para o sul da China logo depois. “Conseguia fazer isso em um piscar de olhos, fazia amigos em qualquer lugar da China, conheci muitos lugares e provei culinárias chinesas em extrema conveniência e preço baixo. Hoje eu dia eu me contento dentro de Hubei (província de Wuhan)”, contou.
Economia
Com a política covid zero, a economia chinesa também foi afetada. A taxa de desemprego entre os jovens atingiu um recorde de 20%, os lucros das empresas diminuíram e o setor manufatureiro voltou a registrar retração em novembro deste ano, segundo o Banco Mundial. As previsões internacionais estimam que o crescimento econômico para este ano não ultrapasse 3%, abaixo das expectativas do governo.
De acordo com Renato Peneluppi, a taxa de desemprego entre jovens é um problema presente no país há anos, mas se agravou na pandemia devido a retração econômica. Em 2020, primeiro ano da pandemia, o Produto Interno Bruto (PIB) da China conseguiu crescer 2,2%, mas não foi o suficiente para gerar um número de empregos suficiente para atender a demanda de jovens do país. Em 2021, esse crescimento foi de 8,1%, segundo o Banco Mundial. “A China tem a necessidade de gerar em média de 10 milhões a 13 milhões para poder compensar a massa de juventude que se forma anualmente. Isso é um grande peso para a economia”, declarou o especialista.
Durante a pandemia, o governo chinês apresentou soluções fiscais e incentivos para manter a economia crescendo, mas os lockdowns foram golpes duros nos pequenos negócios, onde os comerciantes precisavam pagar aluguéis, por exemplo. “Isso estava diminuindo a capacidade do governo de justificar os benefícios do lockdown em si”, declarou Peneluppi.
Ao contrário de outros países, entretanto, os chineses não sentiram tanto a inflação no preço dos alimentos. Em novembro, a inflação nos alimentos foi de 3,7% no país, comparado a novembro de 2021. O índice é inferior, por exemplo, a inflação dos Estados Unidos (10,6%), Reino Unido (16,4%), Alemanha (21,1%), Japão (6,2%) e Canadá (10,1%), segundo os indicadores da Trade Economics.
Na análise de Peneluppi, esses índices acabam por contrariar as expectativas internacionais de danos a economia chinesa gerada pela política covid zero. “Em 2020, por exemplo, quando começa a crise de covid, há uma queda muito grande na economia daquele trimestre, mas logo no segundo trimestre tanto os EUA quanto a Europa também tiveram uma grande queda da economia. No balanço geral do ano, a China fechou com maior crescimento econômico”, disse.
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.