Temendo que Trump cesse a ajuda americana, Biden aumenta envio de armas para a Ucrânia

A diretiva gerou debate, pois algumas autoridades temem que ela possa afetar muito os estoques americanos e comprometer as necessidades militares em outros lugares

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Por Michael Birnbaum (The Washington Post), Missy Ryan (The Washington Post) e Siobhán O'Grady (The Washington Post )

O governo de Joe Biden empreende um esforço final para fornecer à Ucrânia bilhões de dólares em armamentos adicionais, um empenho massivo que tem gerado preocupações internas sobre seu potencial de erodir os estoques americanos e consumir recursos de outras áreas críticas, afirmam autoridades.

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A iniciativa pato-manco foi motivada em parte pelo impulso da Rússia no campo de batalha e o medo entre os mais árduos defensores da Ucrânia de que, quando o presidente eleito Donald Trump assumir, em 20 de janeiro, haja uma mudança abrupta na política dos Estados Unidos em relação à guerra.

Mas alguns membros do governo adotam a visão de que, não importa o que Washington fizer, as Forças Armadas de Kiev continuarão superadas em contingente, com muito menos soldados do que precisam para sustentar sua guerra. E mesmo enquanto os americanos aceleram os envios de armas, há uma crescente frustração com os líderes ucranianos, que resistiram continuamente aos pedidos dos EUA para que a Ucrânia baixasse a idade de convocação militar de 25 para 18 anos.

O presidente dos EUA Joe Biden e o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski Foto: Bill O'leary/The Washington Post

Nas semanas recentes, forças russas capturaram território ucraniano no ritmo mais intenso desde 2022, soando alarmes em Washington. Autoridades do governo afirmam que seu esforço de fim de mandato — acompanhado pela decisão do presidente Joe Biden de autorizar ataques de mísseis contra alvos profundos dentro do território russo e o acionamento de minas terrestres antipessoal, há muito criticadas por grupos de defesa de direitos humanos — pode dar a Kiev algum fôlego. Mas elas insistem que os líderes ucranianos usem este momento para expandir seu contingente militar para além dos 160 mil recrutas que Kiev afirma precisar.

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“Nós continuaremos a mandar armas e equipamentos para a Ucrânia, sem dúvida. Nós sabemos que isso é vital. Mas o recurso humano também é vital neste ponto”, disse o porta-voz da Casa Branca, John Kirby, na semana passada. “Na realidade, nós acreditamos que o recurso humano é sua maior necessidade neste momento. Então nós também estamos prontos para incrementar nossa capacidade de treinamento se eles adotarem os passos apropriados para aumentar seu contingente.”

O secretário de Estado, Antony Blinken, anunciou na segunda-feira que os EUA mandarão mais US$ 725 milhões em ajuda militar para Kiev, incluindo munições antidrones, munições para os sistemas de foguetes HIMARS e minas terrestres antipessoal. O diplomata americano mais graduado planejava se reunir em Bruxelas com homólogos da Otan e da Ucrânia entre terça-feira e quarta-feira.

“O presidente ordenou que o Departamento de Defesa entregue o material para a Ucrânia rapidamente — para garantir que a Ucrânia use o equipamento que precisa para se defender”, afirmou o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, em um comunicado emitido na segunda-feira, notando que Biden anunciou em setembro sua intenção de alocar os fundos para a ajuda militar a Kiev antes de deixar o cargo.

Sullivan disse que, entre agora e a posse de Trump, o governo mandará para Kiev centenas de milhares de cartuchos de artilharia e milhares de foguetes.

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“O presidente está buscando colocar a Ucrânia na posição mais forte possível”, afirmou ele.

Uma alta autoridade do governo disse que, apesar do poder de fogo da Ucrânia ter baixado com a diminuição da ajuda americana antes do Congresso aprovar, em abril, outros US$ 61 bilhões em financiamento adicional, isso não causa tanto problema hoje.

Soldados ucranianos no campo de batalha e Donetsk Foto: Oleg Petrasiuk/Ukrainian 24th Mechanised Brigade via AP

“A diferença entre quantidade de munições pode não ter sido completamente corrigida entre Ucrânia e Rússia, mas diminuiu muito. Mas em relação ao contingente, a questão é simplesmente de matemática e física”, afirmou a autoridade, falando, como outras fontes, sob condição de anonimato para discutir francamente análises sensíveis do governo americano sobre o estado da guerra e a estratégia do governo Biden.

“Não estou tentando acusar a Ucrânia de nada, essa questão é muito desafiadora para eles”, afirmou a autoridade. “Mas ao longo especialmente deste último ano eles simplesmente não estão mobilizando nem treinando soldados suficientes para repor as baixas em batalha.”

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Os líderes ucranianos afirmam que os esforços de recrutamento foram prejudicados pela diminuição da ajuda militar ocorrida anteriormente este ano, com possíveis soldados relutando em se voluntariar por não estarem certos de que teriam armas para disparar contra seu inimigo, e que os envios de armas do Ocidente continuam a atrasar.

“Não faz sentido vermos chamados para a Ucrânia baixar a idade de mobilização, presumivelmente para convocar mais contingente, quando podemos notar que os equipamentos anunciados anteriormente não estão chegando a tempo. Por causa desses atrasos, faltam armas para a Ucrânia equipar soldados já mobilizados”, postou em redes sociais Dmitro Litvin, um dos conselheiros de comunicações presidente ucraniano, Volodmir Zelenski.

“Não pode-se esperar que a Ucrânia compense atrasos logísticos ou hesitações no apoio com nossos jovens na linha de frente”, afirmou ele.

O resultado dos atuais esforços de Biden ajudará a moldar seu legado em política externa após um mandato sacudido pela queda do Afeganistão, pela maior guerra terrestre na Europa desde a 2.ª Guerra e por instabilidades em todo o Oriente Médio, em meio à resposta de Israel ao ataque do Hamas em outubro de 2023.

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Trump, enquanto isso, promete pôr fim à guerra na Ucrânia “24 horas” após assumir a presidência. Na semana passada, ele anunciou que nomeará o general aposentado Keith Kellogg seu enviado especial para Rússia e Ucrânia. Kellogg, que atuou como graduada autoridade de segurança nacional no primeiro mandato de Trump, propõe condicionar o futuro do apoio americano à Ucrânia ao envolvimento do país em negociações para pôr fim ao conflito, mas também sugeriu armar Kiev ainda mais agressivamente para forçar o Kremlin a abrir concessões.

O futuro da ajuda de segurança de Washington — de longe o maior apoiador militar da Ucrânia — após a posse de Trump permanece em dúvida. Tanto o vice-presidente eleito, JD Vance, quanto Trump e o confidente Elon Musk expressaram ceticismo sobre a continuidade da ajuda americana à Ucrânia.

A equipe de transição de Trump não respondeu a um pedido de comentário.

Os avanços militares da Rússia inquietaram o governo Biden, mas a alta autoridade e outras fontes do governo disseram não esperar uma grande ruptura nas linhas defensivas da Ucrânia nos próximos meses mesmo se Moscou continuar a avançar.

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Soldados da 24ª Brigada Mecanizada da Ucrânia em Donetsk Foto: Oleg Petrasiuk/24ª Brigada Mecanizada via AP

Essas autoridades alertaram, porém, que se a pressa para usar os US$ 61 bilhões de ajuda complementar tem potencial de pressionar as Forças Armadas dos EUA. Há uma preocupação particular sobre o volume de interceptadores de defesa antiaérea e alguns tipos de projéteis de artilharia sendo enviados para a Ucrânia. Será difícil repor esses itens rapidamente, e sua perda diminuirá a capacidade militar americana em outras possíveis áreas críticas no Oriente Médio e na Ásia, afirmou uma autoridade.

“A prontidão dos EUA corre um risco severo e sério” se outras necessidades não forem equilibradas em função à da Ucrânia, afirmou esta autoridade.

Uma graduada autoridade de defesa dos EUA afirmou que o principal risco de um esforço de ajuda para a Ucrânia a curto prazo, além da degradação das reservas americanas, seria sobre outras missões, enquanto os militares acionam mais forças aéreas e pessoal para movimentar uma quantidade massiva de equipamentos para a Europa. “Temos considerado quais seriam as opções (…) se recebermos a ordem para fazer essa aceleração acontecer. E qual seria o custo para outras missões no mundo”, disse a autoridade de defesa.

A alta autoridade do governo disse que a Casa Branca está avaliando essas demandas conflitantes ao mesmo tempo que avança com seus planos para ajudar a Ucrânia, afirmando que “As contrapartidas são reais”. A Casa Branca calculou, porém, que apesar dos desafios aos estoques americanos, é melhor mandar o máximo de ajuda possível para a Ucrânia, dadas “todas as repercussões que fluem da guerra na Ucrânia para a ordem internacional com base em regras e outros teatros ao redor do mundo, e como Estados autocráticos depreenderão lições disso”, afirmou a autoridade.

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No longo prazo, afirmam autoridades americanas, o lapso entre os esforços russos e ucranianos de recrutamento provavelmente acabará sendo muito mais importante na determinação do curso da guerra. As exauridas Forças Armadas ucranianas têm sido desafiadas com unidades severamente superadas em contingente nas linhas de frente, assim como por uma mobilização e um esforço de treinamento vagarosos. O Kremlin, enquanto isso, está conseguindo expandir suas forças levemente apesar de sofrer grandes baixas, afirmou uma das autoridades.

Zelenski baixou a idade de alistamento militar obrigatório de 27 para 25 anos em abril e pôs fim a isenções abrangentes na tentativa de incrementar o contingente. Mas o progresso tem sido lento, o que frustrou o governo Biden. Autoridades afirmam que seria quase impossível ajudar a treinar uma brigada inteira de recrutas ucranianos fora do país mesmo que Kiev apresentasse um novo contingente.

“O fator mais decisivo no campo de batalha atualmente é haver soldados ucranianos dispostos a lutar para estabilizar as linhas de frente”, afirmou a autoridade.

Analistas que acompanham o conflito relataram nos dias recentes um aumento nos avanços russos no oeste do Oblast de Donetsk, o que coloca em risco as cidades de Pokrovsk e Velika Novosilka, assim como linhas de abastecimento ucranianas. Mas a graduada autoridade de defesa dos EUA minimizou a ameaça de uma reviravolta imediata em grande escala e atribuiu os rápidos ganhos do Kremlin ao relevo plano e “bastante aberto” do sul do Pokrovsk, que, segundo a autoridade, não é pesadamente defendido, conforme as forças ucranianas recuam para posições mais defensáveis.

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“Prevejo que, quando eles chegarem a esse terreno aberto e se depararem com as forças mais entrincheiradas que os ucranianos possuem, isso ficará muito mais comum para eles, e veremos um retorno para um ritmo de avanço muito mais vagaroso, o combate desgastante que vimos outras vezes”, afirmou a graduada autoridade de defesa dos EUA.

Frame de vídeo publicado pelo ministério de Defesa da Rússia mostra soldados russos lutando contra posições ucranianas na região russa de Kursk Foto: Ministério de Defesa da Rússia via AP

Esta autoridade também atribuiu os avanços de Moscou na região russa de Kursk, onde a Ucrânia tenta defender uma incursão transfronteiriça que lançou neste verão (Hemisfério Norte) à contraofensiva russa por lá. Até aqui, a campanha de concentração do Kremlin — incluindo forças fornecidas pela aliada Coreia do Norte — permitiu a Moscou recuperar pouco mais de um terço do território ocupado pela Ucrânia.

Apesar do que classificou como um “lento recuo” da Ucrânia em Kursk, a autoridade afirmou que, se nenhum dos lados alterar significativamente seu nível de esforços e recursos dedicados a Kursk, provavelmente levará vários meses para a a Rússia expulsar completamente as forças ucranianas de seu território.

O Pentágono monitora Kursk proximamente em busca de indicadores sobre como o combate afeta a decisão recente do governo Biden de abandonar uma antiga proibição sobre disparar mísseis de fabricação americana contra alvos profundos dentro da Rússia, afirmou a graduada autoridade de defesa. Forças ucranianas também conduziram ataques dentro da Rússia empregando os mísseis de longo alcance Storm Shadow, de fabricação britânica.

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Até aqui, afirmou a autoridade, esses mísseis surtiram um efeito apenas “perturbador” sobre o combate em geral, dificultando a integração das forças norte-coreanas.

O Kremlin promete reagir contra os apoiadores de Kiev no Ocidente e disparou recentemente um novo míssil poderoso contra a Ucrânia após ataques dentro da Rússia. A estreia do Oreshnik, um míssil balístico com capacidade atômica, de médio alcance, ocorreu no mesmo momento que a Rússia modificou sua política nuclear em resposta aos ataques convencionais da Ucrânia.

Autoridades do governo Biden minimizaram o risco de uma escalada maior com a Rússia afirmando que continuam a acreditar que não interessa a nenhum dos lados jogar com a possibilidade de uma guerra direta entre duas potências nucleares.

Autoridades ucranianas reconhecem a dificuldade que suas Forças Armadas enfrentam.

A linha de frente em Donetsk é “uma situação difícil, talvez uma das mais difíceis no período mais recente da guerra”, afirmou uma autoridade ucraniana. “Mas não é insolúvel.” Muitos analistas acreditavam que a Ucrânia fosse perder o controle de Pokrovsk dois meses atrás.

O combate mais intenso, afirmou a autoridade, ocorre em torno da cidade de Kurakhove, no leste ucraniano, onde forças russas tem avançado entre 200 e 300 metros diariamente. “Os russos têm tanques à sua frente para retirar minas”, afirmou a autoridade ucraniana. “(…) Eles os usam até para transportar mantimentos, equipamentos e munições para os soldados.”

Em Kursk, cerca de 60 mil soldados russos receberam ordens para expulsar os ucranianos e estabelecer uma nova zona-tampão, com mais de 30 quilômetros, dentro de território soberano da Ucrânia, afirmaram as autoridades. “Se nós recuarmos”, afirmou esta autoridade, “um exército de 60 mil soldados nos seguirá para dentro do nosso território”. /TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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