“Eu tenho dez filhos”, afirma Rahama Sa’ad, de cócoras diante do barraco em que vive na periferia de Kano, a maior cidade no norte da Nigéria. “É a vontade de Deus”, explica ela, em meio a galinhas, filhos e netos. É fácil encontrar famílias grandes no norte da Nigéria. O empresário local Abdulkadar Dutse é um dos 35 filhos que seu pai teve com quatro mulheres.
Essas histórias de famílias grandes falam muito a respeito da maneira que o mundo percebe a África Subsaariana não apenas agora, mas também em relação às próximas décadas. Em conferências e reuniões de gabinete em todo o continente, políticos e formuladores de políticas preocupam-se sobre como dar educação, emprego, moradia e alimento para uma população que, segundo estima a ONU, crescerá a uma velocidade vertiginosa, de aproximadamente 1,2 bilhão hoje para 3,4 bilhões até 2100.
No sul da Europa, populistas atiçam temores de que centenas de milhões de africanos poderão tentar cruzar o Mediterrâneo para escapar de pobreza, guerra ou fome. No mundo rico, ambientalistas temem o impacto de outros 2 bilhões de pessoas sobre o clima e o planeta.
Mas poucos têm notado uma profusão de novos dados sugerindo que a taxa de natalidade na África está caindo muito mais rapidamente do que o esperado. Apesar de bastante crescimento ainda estar em gestação, esse declínio poderia surtir um enorme impacto sobre a população total da África até 2100. E também ocasionar um grande impulso no desenvolvimento econômico do continente. “Temos subestimado o que está acontecendo em termos de mudanças em taxas de fecundidade na África”, afirma Jose Rimon II, da Universidade Johns Hopkins. “A África provavelmente passará pelo mesmo tipo de mudança rápida que a Ásia passou.”
Projeções populacionais da ONU são vistas amplamente como as mais confiáveis. O relatório mais recente da entidade sobre o tema, publicado no ano passado, continha estimativas consideravelmente mais baixas para a África Subsaariana do que duas décadas atrás. Para a Nigéria, que possui a maior população na África, de aproximadamente 213 milhões, a ONU reduziu sua estimativa para 2060 em mais de 100 milhões de pessoas (para cerca de 429 milhões). Até 2100, a ONU estima que o país tenha aproximadamente 550 milhões de habitantes, 350 milhões a menos do que estimava uma década atrás.
Mas mesmo as projeções mais recentes da ONU podem não estar acompanhando o rápido declínio nas taxas de fecundidade (o número-médio de filhos para cada mulher) que alguns estudos recentes mostram. A queda mais acentuada foi registrada na Nigéria, onde uma pesquisa apoiada pela ONU em 2021 detectou que a taxa de fecundidade tinha caído para 4,6, de 5,8 apenas cinco anos antes. Esse número parece ser amplamente confirmado por uma outra pesquisa, apoiada pela USAid, a agência de ajuda humanitária dos EUA, que constatou uma taxa de fecundidade de 4,8 em 2021, em comparação a 6,1 em 2010. “Algo está acontecendo”, pondera Argentina Matavel, do Fundo de População das Nações Unidas.
Transição demográfica
Se essas constatações forem corretas, elas sugerem que taxas de natalidade estão caindo a um ritmo similar ao ocorrido em certas partes da Ásia, onde a região testemunhou seus índices de crescimento populacional diminuírem drasticamente, em um processo com frequência classificado como transição demográfica.
Uma tendência similar parece estar emergindo em partes do Sahel, que possui algumas das taxas de fecundidade mais altas no continente africano, e da costa da África Ocidental. No Mali, por exemplo, a taxa de fecundidade caiu de 6,3 para ainda elevados 5,7 em seis anos. A do Senegal foi de 3,9 em 2021, um bebê a menos por mulher do que pouco mais de uma década atrás. O mesmo ocorre no Gâmbia, onde o índice despencou de 5,6 em 2013 para 4,4 em 2020 — e no Gana, onde ele caiu de 4,2 para 3,8 em apenas três anos.
Esses declínios aproximam a África Ocidental das taxas de fecundidade mais baixas vistas em grande parte do sul do continente. Os índices em queda já foram celebrados em lugares como Etiópia e Quênia.
Demógrafos estão divididos em relação a quanto acreditar nessas pesquisas recentes, particularmente porque os dados que elas produzem podem ter ruídos. “Quando vemos um declínio abissal na fecundidade, nossa premissa passa a ser que há algo de errado com os dados”, afirma Tom Moultrie, da Universidade da Cidade do Cabo. Alguns apontam que as respostas para pesquisas que perguntam às pessoas o tamanho de família que elas desejam caíram pouco, mas nem todas as sondagens recentes fazem essa pergunta. Outros demógrafos reconhecem que os dados apontam para mudanças reais.
Muitos alertam, contudo, contra a comparação de índices de tipos diferentes de pesquisas. Mas mesmo comparando apenas dentro dos parâmetros da mesma sondagem (conforme The Economist fez com os números acima), a tendência é evidente. Uma comparação transversal no caso do Níger, que possui as taxas de fecundidade mais altas do mundo, mas poucas pesquisas, mostra um declínio de 7,6 em 2012 para 6,2 em 2021.
Outros também reduzem suas projeções. Em 1972, o instituto de análise Clube de Roma publicou um livro determinante, Os limites do crescimento, alertando que o consumo e o crescimento populacional ocasionariam colapso econômico. Agora, a entidade afirma que a bomba populacional nunca irá explodir e que a população da África Subsaariana pode atingir seu pico em 2060, 40 anos antes das projeções da ONU.
Apesar disso, as taxas de fecundidade não caem uniformemente. Alguns países, incluindo Angola, Camarões e Congo, estão aparentemente travados em índices relativamente altos. E com frequência existem grandes diferenças regionais dentro de países como Quênia. Quase em todo lugar na África as taxas de fecundidade são muito menores entre mulheres urbanas, que normalmente têm entre 30% e 40% menos filhos do que mulheres rurais.
Demógrafos estariam mais inclinados em concordar que essas quedas em fecundidade são reais e tendem a continuar se pudessem identificar suas causas. Na Etiópia, no Quênia e no Malawi, declínios passados foram fortemente associados a maior uso de contraceptivos ocasionados por grandes esforços de governos. No Malawi e no Quênia, muito mais da metade das mulheres casadas usa contraceptivos modernos, como a pílula ou injetáveis, e na Etiópia 40% o fazem.
O uso desses métodos é marcadamente muito menor na África Ocidental, mas melhorias na base são provavelmente parte da razão das quedas da fecundidade. Na Nigéria, o uso de contraceptivos saltou de 11% para 18% nos últimos cinco anos. No Senegal, esse índice dobrou, para 26%, na década passada.
Planejamento familiar, especialmente quando promovido por forasteiros, com frequência enfurece líderes religiosos. Mas em alguns lugares isso pode estar mudando. Clérigos falam com mais frequência sobre planejamento familiar hoje em dia, nota Amina Mohammed, uma mãe de religião islâmica que vive na periferia de Kano. “Nenhum verso do Alcorão proíbe os muçulmanos de controlar, planejar ou restringir o número de filhos que têm”, afirma Shuaib Mukhtar Shuaib, um desses clérigos. O profeta Muhammad aprovava tacitamente métodos de contracepção, continua ele.
Hoje em dia, o ginecologista Idris Abubakar, que trabalha no maior hospital público de Kano, se preocupa mais com o impacto da indústria cinematográfica da Nigéria sobre a contracepção do que com o impacto da religião. “Eles trarão uma narrativa de que o sistema reprodutivo da mulher foi danificado porque ela usa pílula”, explica ele.
Educação de meninas
Educação de meninas também ocasiona uma grande mudança nas taxas de fecundidade. Em Angola, por exemplo, mulheres sem escolaridade têm 7,8 filhos, enquanto as que possuem grau universitário, 2,3. Mulheres escolarizadas têm mais chance de conseguir emprego, então o custo de oportunidade de ficar em casa para cuidar de filhos é mais alto, e elas tendem a ganhar mais discussões com os maridos a respeito de quantos filhos ter.
Uma pesquisa de Endale Kebede, Anne Goujon e Wolfgang Lutz, do Centro Wittgenstein de Demografia e Capital Humano Global, sugere que uma pausa na transição demográfica na África nos anos 2000 pode ter decorrido do efeito de cortes em gastos na educação nos anos 80, quando muitas economias africanas enfrentaram crises. As rápidas quedas em taxas de fecundidade que parecem ocorrer neste momento podem decorrer do enorme esforço para melhorar a educação de meninas empreendido nas décadas recentes.
Economistas tendem a pensar que famílias pobres têm mais filhos para garantir que alguns sobrevivam para cuidar dos pais em sua velhice. Mas essa lógica também pode estar mudando. Zainab Abubakar, uma mãe de 30 anos que trajava um hijab azul na periferia de Kano, tem dois filhos, mas não quer mais nenhum. “O custo de vida é alto”, afirma Abubakar, que trabalha como vendedora de carvão.
Ela não está só. Quando a economia nigeriana azedou, entre 2013 e 2018, o índice de mulheres que não queriam mais filhos saltou de 19% para 25%. Conforme os custos de criar os filhos aumenta, cada vez mais os pais se preocupam com a possibilidade de não conseguir educá-los. “Estamos tentando tornar nossas crianças seres produtivos”, explica Abubakar, quando questionada sobre por que não quer mais filhos. Até nigerianos rurais estão considerando as desvantagens de ter muitos filhos sem escolaridade em comparação a ter menos filhos com melhores perspectivas de emprego, afirma Funmilola Olaolorun, da Universidade de Ibadan.
Fim da política de beijar bebês
Líderes também desempenham um papel. Em Uganda, o presidente Yoweri Museveni costumava dizer a estudantes: “Sua tarefa é produzir filhos”. Agora ele diz às mulheres ugandenses que gestações consecutivas “enfraquecem seus corpos, e não é fácil cuidar de muitos filhos”. O presidente do Níger, Mohamed Bazoum, fez da “luta demográfica” o centro de sua campanha eleitoral. Na Nigéria, o financiamento para planejamento familiar é baixo, mas o presidente Muhammadu Buhari criou recentemente um Conselho Nacional de Gestão Populacional, sublinhando “a urgência em combater a alta e sustentada taxa de fecundidade de Nigéria por meio de expansão no acesso ao planejamento familiar moderno”.
No passado, muitos políticos da África suspeitavam que o impulso ocidental em promover planejamento familiar era um ardil para evitar que os países africanos se tornassem populosos e fortes. Essas atitudes são mais raras hoje em dia. Lamentavelmente, outra forma sinuosa de pensamento formou raízes entre ambientalistas ocidentais, que ligam o crescimento populacional da África às mudanças climáticas.
Mas os ocidentais abastados causam muito mais emissões de gases-estufa do que os africanos.”Devermos ter menos africanos para podermos dirigir carros poluentes parece-me uma posição realmente excêntrica”, aponta David Canning, da Universidade Harvard. Preocupações sobre migrações africanas para a Europa também parecem peculiares, já que deverão faltar à União Europeia e ao Reino Unido aproximadamente 44 milhões de trabalhadores até 2050 mesmo com os fluxos normais de migração.
À parte as preocupações equivocadas do Ocidente, implicações de declínios contínuos ou acelerados de taxas de fecundidade são enormes. Para começar, a população africana — e, portanto, a do mundo — deverá ser consideravelmente mais baixa do que a maioria das projeções atuais. Veja a Nigéria. Se as pesquisas mais recentes foram corretas em estipular sua taxa de fecundidade em 4,6 em 2021, isso sugeriria que o país já estava em um patamar mais baixo do que as estimativas da ONU e em uma trajetória de fecundidade muito mais descendente do que a principal projeção da ONU. Assumindo que a Nigéria permaneça nessa trajetória mais descendente, sua população chegaria a cerca de 342 milhões em 2060. São cerca de 90 milhões de pessoas a menos do que a atual estimativa de base da ONU e aproximadamente 200 milhões a menos do que sua projeção de dez anos atrás.
Isso é boa notícia, mas não, conforme alguns assumiriam, porque a África esteja sobrepovoada. Na verdade, a África Subsaariana tem uma média de 48 pessoas por quilômetro quadrado, muito menos do que Reino Unido (277), Japão (346) ou Coreia do Sul (531). Todos os cinco países mais populosos da África Subsaariana possuem densidade demográfica menor do que a britânica. Há pouca evidência de países africanos inteiros caindo na armadilha malthusiana, batizada em honra a Thomas Malthus, cuja teoria afirmava que o crescimento da população superaria a produção de alimentos, ocasionando catástrofe. O advento do comércio e da produção global de alimentos, que cresce enquanto a quantidade de terra usada diminui, torna possível que nenhuma subregião ou país precise ser autossuficiente contanto que suas economias produzam riqueza bastante para comprá-los.
Moisés Naím
Nem porque alto crescimento populacional signifique que o crescimento per capita seja baixo: “Os dados que temos não são claros a ponto de podermos afirmar com certeza que a taxa de crescimento populacional seja em si ruim ou boa”, afirma Anne Bakilana, do Banco Mundial. Países mais ricos têm menos filhos e índices de poupança maiores. Mas é capcioso sorver da causalidade.
É evidente que a transição de altos índices de crescimento populacional para taxas menores pode ocasionar uma série de benefícios. Mulheres e crianças tendem a prosperar mais conforme as taxas de fecundidade caem. Quedas na fecundidade normalmente resultam em hiatos maiores entre os nascimentos e menos gestações de adolescentes: ambos os fatores ajudam a reduzir riscos à saúde das mães. E taxas de fecundidade em queda significam que há mais adultos em idade de trabalho em relação ao número de filhos. Com menos bocas para alimentar em casa, é mais provável que todos os filhos se alimentem o suficiente e obtenham livros e uniformes para ir à escola. Em nível nacional, núcleos familiares menores permitiriam aos governos gastar mais com cada criança.
Taxas de fecundidade em queda animam economistas porque impulsionam tanto a faixa da população em idade de trabalho quanto o número de mulheres que integram a força de trabalho. Mais gente trabalhando impulsiona prosperidade. Quanto mais veloz é a queda nos índices, maior é o impacto. Um estudo de 2017 de Mahesh Karra e David Canning, da Universidade Harvard, e Joshua Wilde, da Universidade do Sul da Flórida, estima que baixar a taxa de fecundidade em um filho por mulher na Nigéria poderia quase dobrar sua renda per capita até 2060. Mas para países colherem um grande dividendo, aqueles que entram no mercado de trabalho precisam conseguir encontrar empregos produtivos — um desafio monumental em um continente que precisa investir trilhões de dólares nas infraestruturas (como estradas, linhas de fornecimento de energia e portos) necessárias para gerá-los.
Índices de fecundidade parecem enfadonhos quando confrontados com dramas eleitorais, conflitos e caos econômico. Mas, pesquisa após pesquisa, a maior notícia sobre o futuro da África pode estar se revelando silenciosamente. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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