Em 1916, os aliados franco-britânicos lançaram um ataque feroz contra o Exército alemão perto do Rio Somme, no norte da França, na esperança de quebrar o impasse na frente ocidental. A batalha que se seguiu envolveu mais de 3 milhões de homens e tecnologias inovadoras, como os tanques britânicos. O ataque impiedoso durou cinco meses, deixou mais de um milhão entre mortos e feridos, e, no fim, os aliados haviam conquistado 9,6 quilômetros de território. Foi uma vitória, mas não mudou absolutamente o jogo.
As eleições gerais americanas obedeceram a um padrão semelhante. Determinados a fazer valer o seu número maior de votos e expulsar o presidente Donald Trump, os democratas lançaram um assalto sem precedentes. Joe Biden foi o primeiro candidato presidencial a levantar mais de um bilhão de dólares em um único ciclo eleitoral. Calcula-se que, no total, tenham sido gastos cerca de US$ 14 bilhões – mais do que o PIB de 25 países africanos.
O resultado é uma vitória democrática. Foi confirmado neste sábado, quinto dia das apurações, quando todos os meios de comunicação americanos previram que Biden conseguiria a Pensilvânia, com os seus 20 votos do colégio eleitoral, permitindo que ele superasse os 270 necessários para chegar à Casa Branca. O ex-vice-presidente também venceu na Geórgia, Nevada e, possivelmente, no Arizona, onde ainda ocorria uma disputa renhida.
Com isso, Biden está na reta final com mais de 300 votos do colégio eleitoral. O presidente republicano afirma falsamente que ganhou a eleição, alegando que foi fraudada, e moveu diversas ações para tentar interromper a apuração dos votos. Mas embora grite que é apenas o quarto presidente em um século que não conseguiu se reeleger, é também o primeiro presidente desde Benjamin Harrison, em 1892, a perder por duas vezes no voto popular.
Isso enfatiza não apenas o quanto Trump é impopular, mas também as vantagens de que o seu partido se beneficia com o sistema de votação dos Estados Unidos. Os democratas agora ganharam no voto popular em sete das últimas oito eleições. Quando os resultados finais chegarem do Alasca, até o dia 18 de novembro, Biden terá obtido cerca de 5 milhões de votos a mais do que Trump. Os republicanos só estão com as apurações em andamento em todo o país por causa da polarização entre os seus inúmeros eleitores rurais no colégio eleitoral e no Senado.
Muitos democratas esperavam que esta eleição lhes desse a oportunidade de corrigir esta polarização, transformando a política do país. Mas isso não será possível, porque a vitória de Biden foi muito menor do que as pesquisas haviam previsto; e muitos candidatos democratas ao Congresso foram ainda pior.
Contra as expectativas, os republicanos mantiveram o controle do Senado por enquanto, e fizeram modestos avanços na Câmara controlada pelos democratas. Outro impasse em Washington, DC, está quase assegurado. Portanto, esta foi uma importante vitória democrata: a presidência de Trump acabará em dois meses. Mas isso não contribuiu para grande mudanças na guerra partidária que ele, com sua recusa a aceitar a derrota, agora ameaça inflamar de uma maneira sem precedentes.
A ansiedade do eleitorado democrata de ver Trump pelas costas se equipara à de seus rivais em defendê-lo. No geral, o comparecimento às urnas foi o maior desde 1900. E contrariamente à suposição dos democratas de que um grande comparecimento sempre deve ajudar o partido mais popular, isso parece ter exagerado a vantagem dos republicanos em muitos Estados decisivos.
Estados conservadores, como Iowa, Ohio e Texas, supostamente próximos este ano, na maior parte deram vitórias esmagadoras a Trump e a candidatos republicanos menos relevantes. A disputa no Senado da Carolina do Sul era considerada um impasse; Lindsey Graham derrotou seu adversário democrata, Jaime Harrison, por 10 pontos. Em seu discurso da vitória, o veterano republicano (e uma figura de ódio democrata), definiu as enormes somas levantadas para Harrison, mais de US$ 100 milhões, como “o pior retorno sobre um investimento da história da política americana”. Ele tinha certa razão. Há indicações de que o dilúvio de anúncios democratas nos Estados-chave, pagos por simpatizantes liberais de cidades distantes, foi mais negativo para os eleitores do que persuasivas.
Os democratas, que haviam previsto a retomada do Senado, só conseguiram cadeiras no Arizona e no Colorado, o que os deixou com 2 a menos dos 50 de que precisavam para controlar a Casa (considerando que o vice-presidente tem o voto de Minerva). O seu desempenho relativamente forte na Geórgia pelo menos lhes dará uma segunda chance de obter o Senado em janeiro. As duas disputas pelo Senado do Estado – que poderão determinar o controle da Casa – irão para o segundo turno. Será mais uma eleição dispendiosa.
Os democratas mantiveram a Câmara dos Deputados. Mas em vez de aumentar a sua maioria, como esperavam, perderam algumas cadeiras que haviam tomado dois anos atrás. Na época, candidatos inusitadamente preparados, muitos deles mulheres, estiveram no centro da “onda azul” democrata. Desta vez, os republicaram imitaram de certo modo a estratégia; a maioria dos seus escolhidos na Câmara inicialmente, em Iowa, Carolina do Sul e em outros Estados, foi de mulheres. Funcionários republicanos previram que mandariam mais 19 mulheres republicanas para o Congresso, estabelecendo mais um recorde modesto de parlamentares republicanas.
Os democratas da Câmara já começaram a discutir suas perdas. Em uma conferência online com Nancy Pelosi, os deputados moderados criticaram energicamente a esquerda do partido por manchá-los com slogans progressistas como “Medicare para todos”, e “Diminuam as verbas da polícia” – dos quais o seu eleitorado em geral não gostou. “Vamos ficar tremendamente divididos” na próxima eleição desse modo, disse aos participantes Abigail Spanberger, uma das principais moderadas, que manteve por pouco seu distrito conservador nos arredores de Richmond, Virginia.
Na mesma linha, parece inimaginável que um democrata mais à esquerda do que Biden teria vencido Trump. Independentemente da destruição provocada pela covid-19 – incluindo 10 milhões de empregos perdidos e 235 mil mortos – a maioria dos americanos diz que está melhor agora do que há quatro anos. O que não sugere um desejo de mudança radical.
O presidente também dedicou grande parte da campanha a tentar pintar Biden como um socialista. Coisa muito pouco plausível; Biden encerrou a campanha com classificações pessoais melhores do que quando a iniciou (ao contrário de Hillary Clinton, em 2016). Bernie Sanders não teria achado isso muito fácil de administrar. Agora, o estardalhaço do presidente contra a esquerda provavelmente ajuda a explicar seu avanço impressionante entre os cubano-americanos, a principal razão por ele ter conseguido a Flórida.
Um candidato de esquerda também teria lutado para ganhar a pequena margem de republicanos insatisfeitos – que representam cerca de 8% dos partidários de Trump em 2016 – que se quebrou para Biden. Aparentemente, eles foram cruciais para o ex-vice-presidente vencer em Wisconsin por menos de um ponto porcentual. Os sentimentos confusos desses eleitores em relação ao Partido Democrata estão manifestos no fato de que muitos votaram em candidatos republicanos ao Congresso – que em geral se saíram melhor do que Trump. O fato de tê-los conquistado é um tributo ao centrismo tranquilizador de Biden. Apesar disso, Trump o chama de corrupto esquerdista senil.
Serão necessários mais dados rigorosos do que os de boca de urna para entender quantos mudaram de lado na eleição. Além da Flórida, Trump ganhou outro importante bolsão de apoio hispânico no sul do Texas. Mas há poucas evidências de que cada partido tenha encontrado um significativo número de novos eleitores. Os democratas não ganharam a multidão de conservadores mais velhos, preocupados de que a covid-19 pudesse estar à sua espreita, que o partido esperava. Eles ganham suas disputas principalmente atraindo para as urnas milhões dos seus fortes eleitores, principalmente entre cidadãos não brancos, e brancos com formação universitária.
Os sucessos republicanos, também previsivelmente, se basearam em um enorme comparecimento de brancos de classe média, principalmente homens. Isso assinala a força da coalizão de Trump, mas talvez também suas limitações contra um adversário igualmente entusiasmado. Considerando que os brancos de classe média estão encolhendo em relação à população como um todo, os republicanos precisam aumentar suas conquistas entre os hispânicos e outros grupos. Até que ponto terão começado a fazer isso é uma das principais indagações sem resposta desta eleição.
O mais urgente é o partido se livrar de líderes impopulares. Trump, como mostra a discrepância da disputa presidencial e a do Congresso, é a principal razão de sua derrota. Mas as perspectivas imediatas disso não são promissoras.
O presidente nunca pareceu mais insensato, desequilibrado, ao ter de encarar a derrota. No dia 5, com Biden prestes a rever suas vantagens iniciais na Geórgia e na Pensilvânia, Trump deu uma entrevista coletiva na qual apresentou uma série de teorias da conspiração sobre a apuração dos votos, um tanto prejudicada por sua incapacidade de compreendê-la. Ele acusou os perniciosos democratas de roubar-lhe a vitória na Geórgia, embora os republicanos estivessem à frente no Estado. Ele declarou que os votos pelo correio da Pensilvânia eram ilegítimos, mas – graças a uma decisão da legislatura republicana do mesmo Estado – estavam apenas sendo computados depois do dia da eleição e não antes dela.
Os filhos brutamontes do presidente, enquanto isso, tentam incitar republicanos eleitos a apoiar os esforços de Trump a desmantelar o sistema eleitoral. “Republicanos que não se levantam agora, mostram a sua verdadeira cor”, tuitou o filho mais velho do presidente e futuro sucessor, Donald Trump Junior.
Somente os poucos republicanos de princípios – Adam Kinzinger, Mitt Romney – repudiaram este perigoso absurdo. A maioria dos republicanos eleitos não se manifestou. Ao mesmo tempo, alguns parasitas de Trump reafirmaram sua lealdade – até mesmo, como não podia deixar de ser, Graham, recém reeleito. Na Fox News, ele prometeu US$ 500 mil para as contas eleitorais legais do presidente.
Os EUA provavelmente não correrão perigo de uma virada democrática. É mais provável que estejam ouvindo os últimos latidos do carnaval de Trump. Mas é notável que esta possa ser uma questão relevante – nos EUA, de hoje. Ninguém subestime como será bom que Trump se vá daqui a pouco. / TRADUÇÃO DE ANNA CAPOVILLA © 2020 THE ECONOMIST NEWSPAPER LIMITED. DIREITOS RESERVADOS. PUBLICADO SOB LICENÇA. O TEXTO ORIGINAL EM INGLÊS ESTÁ EM WWW.ECONOMIST.COM
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