The Economist: Henry Kissinger jamais pertenceu inteiramente ao lugar em que mais quis estar

O decano da diplomacia americana morreu em 29 de novembro, aos 100 anos

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No início de junho de 1970, logo após os Estados Unidos invadirem o Camboja, Henry Kissinger visitou secretamente Brian McDonnell, um pacifista de 27 anos que ele tinha observado na Praça Lafayette, diante da Casa Branca. Era um de seus muitos esforços naquele ano para persuadir seus jovens críticos a dar uma chance à guerra.

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Como tantos outros, Brian não se deixou convencer, mas ambos continuaram em contato. Enquanto Richard Nixon acabrunhava-se na Ala Oeste da Casa Branca, seu conselheiro de segurança nacional e o ativista cabeludo encontravam-se de quando em quando para conversar sobre a guerra e a filosofia de Kant, lutando, escreveu Kissinger, “para construir ao menos uma ponte temporária entre a incompreensão mútua”.

Kissinger nunca perdeu a convicção de que era capaz de persuadir seus críticos. E não apenas os poderosos e influentes, mas também aqueles que não apareciam na capa da Time e ficavam fora do alcance dos microfones do Salão Oval. Ao argumentar e argumentar mais um pouco, ele afirmava seu pertencimento e poder.

O jovem Henry Kissinger, em 1968, professor de Harvard, antes de se tornar o todo-poderoso secretário de Estado americano  Foto: AP Photo / Arquivo

Kissinger começou a vida enjeitado, crescendo numa Alemanha pré-2.ª Guerra entre pessoas que o desprezavam e rejeitavam por ser judeu. Os nazistas demitiram seu pai da escola pública de ensino médio de Fürth, próximo a Nuremberg. Sua mãe foi a primeira a compreender que o “Estado hitlerista” não guardava nenhum futuro para seus filhos.

Em 1938, aos 15 anos, Heinz (seu nome de registro) embarcou num avião para os Estados Unidos com a família. Ele nunca perdeu o sotaque; sua voz, como o cascalho no aquário do peixe dourado, colaborava profundamente para sua seriedade. Mas seu irmão mais novo, Walter, aprendeu a falar inglês como um americano comum e dizia-se “o Kissinger que ouve”.

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Mesmo seus críticos admitiam que ele tinha uma mente brilhante. Sua tese de graduação foi tão profusa, com 383 páginas, que supostamente levou Harvard a introduzir a “regra Kissinger”, limitando estudantes a menos da metade desse volume nos trabalhos. Seu doutorado examinou as maneiras pelas quais a diplomacia sustentou a estabilidade na Europa por quase um século depois da derrota de Napoleão. Quando ele entrou no governo Nixon, 15 anos depois, as percepções que o estudo de Castlereagh e Metternich lhe renderam o ajudariam a lidar com as turbulentas ambições dos EUA e da União Soviética.

Seu estilo era trabalhar fora da máquina oficial do Departamento de Estado e do serviço exterior, que ele considerava ter exaurido o vigor e a criatividade da diplomacia americana. “Canais diretos extraoficiais” com os russos, os chineses e quem quer que agradasse o gosto de Nixon por conspirações. E que atendiam ao seu próprio anseio de estar no centro da ação, dando as cartas nos bastidores.

Evidentemente, mentiras desempenharam uma função útil tanto em assuntos importantes quanto em temas triviais. Quando sua equipe se queixou que não tinha o privilégio de comer no refeitório da Casa Branca, ele deixou seus funcionários pensarem que a culpa era do chefe de gabinete. Na realidade, a ideia era de Kissinger.

Ele não queria que seu time forjasse relações com contatos úteis fora do Conselho de Segurança Nacional. Apesar de ser inteligente demais para mentir descaradamente, Kissinger deixava as pessoas desorientadas. Shimon Peres, um parceiro israelense no pugilato, definiu-o admiravelmente como “o homem mais sinuoso que já conheci”.

Kissinger jamais caiu na armadilha de Castlereagh de perder a fé em si mesmo. Ele cortou relações por um tempo com Walter Isaacson em razão de seu tão deplorável livro, com sua psicologização e suas provocações baratas, tanto que o Dr. K. certamente sentiu que nem mesmo sua autobiografia de três volumes fez jus totalmente às suas realizações.

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Muitos assessores podem ter deixado de servi-lo, mas muitos permaneceram leais não apenas porque Kissinger era penetrante, mas também porque ele lhes permitia expressar suas opiniões. E em nenhum outro tema ele enfrentou tantos questionamentos quanto no realinhamento da política externa americana em meio às ruínas da Guerra do Vietnã.

Com o corpo coberto de napalm, menina corre e grita de dor em 8 de junho de 1972, durante a Guerra do Vietnã Foto: Nick Ut/AP

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Em 1972, os EUA estavam vulneráveis: humilhados no exterior e divididos internamente. A resposta de Kissinger foi explorar o crescente antagonismo entre União Soviética e China para criar um novo equilíbrio no qual ambas as nações procurassem os EUA para reforçar sua própria posição. Posteriormente, ele circulou entre Egito e Israel para substituir a União Soviética pelos EUA no Oriente Médio. Foi uma manobra de estadista digna de seus heróis do século 19. Kissinger colocou os EUA no banco do motorista exatamente quando tudo ia mal para os americanos.

Que agradecimento ele recebeu? Céticos e intelectuais afirmam que Kissinger sacrificou os princípios dos EUA e mais de 1 milhão de vidas. Ele seguiu lutando no Vietnã e levou a guerra para o Camboja e o Laos em nome da “credibilidade” dos EUA. Ele abençoou um genocídio do Paquistão no território que se tornou Bangladesh porque os paquistaneses o estavam ajudando com a China.

Ele planejou golpes de Estado e assassinatos no Chile e fomentou uma insurgência em Angola por considerar que esses países cairiam como dominós em conspirações soviéticas. Quando Kissinger ganhou o Prêmio Nobel da Paz, em 1973, o jornalista britânico Christopher Hitchens afirmou que ele deveria ser julgado por crimes de guerra — e a acusação colou.

Em uma das últimas fotos vivo, o presidente Salvador Allende do Chile, ao centro, com capacete e fuzil de assalto, é visto do lado de fora do palácio presidencial de La Moneda, em Santiago, enquanto o golpe militar contra ele estava em andamento, em 11 de setembro de 1973 Foto: The New York Times

Homem triângulo

Confortava-o que esta visão fosse minoritária. Repórteres de revistas e apresentadores de TV riam de suas piadas e o glorificavam chamando-o de “agente secreto de Nixon” e “Supersecretário”. Ele se esforçava para ser fotografado ao lado de belas mulheres.

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Se alguém se sentia em casa no panteão dos intermediadores do poder de Washington, era aquele menino de Fürth.

Mas, apesar de seus esforços incessantes, as críticas perduraram. Já era ruim suficiente que a esquerda o condenasse classificando-o como imoral, mas a direita passou a perceber seu desejo de envolvimento com China e Rússia como uma realpolitik suspeita, antiamericana e privada de valores. Nenhum dos campos notou que seu objetivo primordial era evitar a qualquer custo uma guerra mundial semelhante à que o expulsou da Alemanha.

O líder da China, Xi Jinping, à direita, ouve o ex-secretário de Estado dos EUA, Henry Kissinger, em Pequim, em 2015: Kissinger foi o principal incentivador da aproximação com a China Foto: Jason Lee/Pool Photo via AP, Arquivo

E assim, aquela erupção de diplomacia entre 1969 e 1977 foi o único período que ele trabalhou no governo. Nenhum maquinário kissingeriano de política externa permaneceu depois que ele partiu. Kissinger fez fortuna e passou a figurar na mente de todos como um ancião ilustre.

Na China, virou celebridade. Próximo de chegar aos 100 anos, ele colaborou com livros sobre qualidades de líderes e o perigo da inteligência artificial, que, preocupava-se, pode ocasionar o fim do Iluminismo. Era como se Kissinger visse a si mesmo como um sábio guardião da civilização humana. Mas ao mais alto clero do poder americano, onde mais desejou estar, ele jamais voltaria a pertencer como antes. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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