A rainha está morta. A segunda era elisabetana acabou. Sua morte será marcada por superlativos. Elizabeth II foi a mais velha monarca britânica e a que reinou por mais tempo. Sua efígie apareceu em mais notas e moedas do que a de qualquer outra personalidade viva; sua figura talvez tenha sido a mais reproduzida na história. A maioria dos britânicos afirmava aprovar sua superlativa monarca. Mais difícil para eles é dizer por quê.
Elizabeth II foi a primeira monarca da era moderna das comunicações. Sua coroação, em 1953, foi a primeira a ser televisionada; em 1976, ela se tornou a primeira monarca britânica a enviar um e-mail. Seus súditos sabiam mais a respeito dela do que sobre qualquer outro monarca anterior. Eles sabiam que, antes de sua coração, ela havia usado a coroa durante o café da manhã, para se acostumar com o peso. Eles conheciam seus tornozelos vestidos em meias-calças e seus sapatos escoceses logo abaixo (amaciados, eles também sabiam, por um membro da corte para seu conforto). Eles assistiram-na ser coroada trajando suas vestes mais distinguidas e sabiam que, antes da cerimônia de coroação, ela teve de se despir para ser ungida com óleo bento.
A relação entre os comuns e sua rainha sempre foi de grandes distanciamentos e intimidades bizarras. Você se curva perante sua monarca, mas ao mesmo tempo usa a cara dela (na moeda) para comprar batatas. Elizabeth II engendrou um novo tipo de intimidade. Os vitorianos acreditavam que, para sobreviver, a monarquia deve manter a distância: “Não podemos permitir que a luz do sol estrague a magia”. Durante seu reinado, não apenas a luz do sol, mas também lanternas tiveram a entrada permitida. A coisa nem sempre foi bem. Em 1997, quando Diana— perseguida por paparazzi — morreu em um túnel de Paris, Elizabeth, por sua vez, foi perseguida por meios de comunicação que farejavam mais sanguinolência do que sangue.
De novo e de novo, Elizabeth era despida de seu expediente pela mídia — e por algum tempo nem a coroa nem os súditos colaboraram. Monárquica e remota, com seus lenços na cabeça e vogais em disparada, ela parecia uma mulher fora do tempo. Cada pessoa é um anacronismo em sua própria era, e monarcas mais do que a maioria. O tio de Elizabeth que abdicou ao trono, Edward VIII, escreveu que ele era “um Príncipe treinado nos maneirismos e máximas do século 19, para uma vida que havia desaparecido absolutamente no fim de sua juventude”.
A jovem Elizabeth foi à escola em uma instituição erguida na Idade Medieval (Eton), usando um livro escrito na era vitoriana (Constituição Inglesa, de Bagehot) e instruída por um tutor tão acostumado a lecionar para estudantes homens que se referia à jovem princesa como “cavalheiros”. Ele também criava um corvo de estimação em um poleiro.
Pouco surpreende, então, que os valores de Elizabeth — de estoicismo e dever, de manter a calma e seguir adiante e, acima de tudo, de calar-se — pertenciam a uma outra era. Sob o deslumbramento do olhar da mídia moderna, tais valores antiquados pareciam lúgubres. Quando seus filhos, netos e parentes por parte de cônjuges emocionavam-se em entrevistas e se comportavam mal, ela selava os lábios e embarcava em aviões, trens ou navios. Ela viajava por todo o país e toda a Commonwealth ouvindo, acenando, costurando e unindo suas terras — e perguntando “Você veio de longe?”. Poucos foram tão longe quanto ela. Quando, na cúpula da COP26, no ano passado, ela expressou desaprovação por aqueles que “falam, mas não fazem”, sua fala pareceu um comentário sentido no coração de uma mulher que, por toda sua vida, sempre fez muito e falou pouco.
À medida que a era da mídia se transformou na era das redes sociais, a empatia suavizou os juízos rudes. O sentimento em relação à rainha mudou. Seu silêncio, que havia parecido um anacronismo fora de moda, começou a parecer clarividente, até mesmo revigorante. À medida que a moeda que ostenta sua figura declinou e o Reino Unido diminuiu, seu status continuou elevado. Donald Trump ansiava por uma visita de Estado; Michelle Obama a abraçou.
E agora ela se foi. É difícil imaginar a vida sem ela, porque quase todos que estão vivos hoje passaram suas vidas inteiras com ela. Walter Bagehot — aquele vitoriano cujo livro Elizabeth estudou — escreveu certa vez que a monarquia “age como um disfarce”, permitindo à nação “mudar sem que os incautos percebam”. Por viver tanto tempo, Elizabeth ofereceu a ilusão da estabilidade para uma nação que estava na realidade mudando marcadamente. Seu tio que foi rei, Edward VIII, nascido na era dos navios a vela e morto na era das ogivas nucleares, escreveu que tanta coisa mudou tão rapidamente que ele sentia “como se tivesse viajado pela história em uma máquina do tempo”.
A máquina do tempo continuou a avançar. Elizabeth II deixa uma nação e uma Commonwealth muito diferentes das que herdou. Quando ela ascendeu ao trono, vestígios da potência imperial perduravam; o brilho da vitória na 2.ª Guerra ainda ofuscava. Agora, o Reino Unido não passa de uma potência regional no Atlântico Norte, cercada por todos os lados pela ameaça de secessão; a Commonwealth, já subvertida, parece ainda mais desfeita sem ela. Sua morte cortou o último fio que costurava o Reino Unido a uma era de grandiosidade.
Poucos acreditam que a monarquia prosperará sem Elizabeth II. Muitos temem que Charles não estará à altura da função. Ele falou demais, expressou autocomiseração demais: o Príncipe de Gafes. Mas nos anos recentes ele também se suavizou. Alguns dos tópicos sobre os quais ele mais se altercou, mais notadamente o meio ambiente, agora parecem mais resmungos do que obsessões. E os Windsors sempre tiveram instinto de sobrevivência, o que está escrito em seu nome. Eles costumavam ser chamados de Casa de Saxe-Coburg-Gotha. Mas em junho de 1917, bombardeiros “Gotha” lançaram um ataque contra Londres e 18 crianças foram mortas em uma escola de ensino fundamental. Naquele mesmo mês a família real mudou seu nome para Windsor.
A antiga ordem mudou
O papel do rei Charles não é fácil. Aguardar pela ascensão ao trono é duro, e o corolário da monarca que mais reinou passou para o príncipe-herdeiro que mais aguardou. O desempenho de Elizabeth II como monarca deixa uma marca difícil de seguir, e as pessoas se perguntam se ele está capacitado para tanto. Na verdade, não há motivo para segui-la. Ela moldou sua monarquia a partir da própria personalidade. A longevidade foi transformando idiossincrasia em ortodoxia.
Mudar é possível. E é certo que o dinheiro do reino virtualmente exige mudança. Desde a Restauração, no século 17, tem sido costume que cada monarca britânico mire o lado oposto que seu antecessor nas moedas com sua efígie, talvez para simbolizar que cada um reina de sua maneira. George VI olhou para a esquerda; Elizabeth II, para a direita; e agora Charles olhará para a esquerda novamente. Mudança e continuidade, continuidade e mudança cunhadas no vil metal./TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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