THE ECONOMIST - Os portões brancos de metal se abrem com um rangido, revelando abetos e sacos de areia. “Bem-vindos à fortaleza”, diz um assessor presidencial. Apurando o olhar, vemos os atiradores de elite: à esquerda e à direita, de alto a baixo. Os sistemas antiaéreos, imensas peças metálicas, são mais fáceis de identificar. Quando os portões se fecham, um soldado apanha um telefone vermelho vertushka, a linha telefônica protegida da era soviética, e pede instruções. Somos conduzidos a uma entrada lateral, e então acompanhados por corredores e escadarias escuros: primeiro subindo, depois descendo, cada vez mais fundo no corpo da máquina de guerra ucraniana.
Levamos quase uma hora para chegar aos portões do complexo de Volodmir Zelenski, jornada que normalmente seria coisa de dez minutos. As ruas de paralelepípedos de Kiev estão praticamente vazias hoje, mas as artérias centrais da cidade foram reconfiguradas para confundir o inimigo. O caminho serpenteia até o monolito cinzento soviético passando por obstáculos antitanque, por homens armados e postos de controle cada vez mais reforçados. Mudamos de veículo. O estado tenso de prontidão em Kiev lembra fevereiro de 2014, quando os esforços do governo russo para manter a Ucrânia sob seu controle levaram à “revolução da dignidade” e a mais de 100 mortes. Agora, a capital se vê novamente em pé de guerra.
Dentro do complexo presidencial, solicitam que deixemos nossos celulares, aparelhos eletrônicos e canetas na entrada: não é permitido nada que possa identificar nossa localização exata. Somos revistados por detectores de metais e, atrás de uma grande pilha de rolos de papel higiênico, uma administradora lança um olhar ansioso. Ela é uma das poucas pessoas que ainda volta para casa no fim do dia: “É assustador vir para o trabalho agora, mas o que podemos fazer?” Desde o início da guerra, a maioria dos outros membros da equipe dorme no trabalho, em camas montadas.
Tateamos por mais corredores escuros até que, abruptamente, estamos na sala de crise da Ucrânia. A mesa de fórmica branca, as cadeiras de encosto alto e as grandes telas poderiam ser de qualquer sala de reuniões corporativas, exceto pelas palavras gravadas em ambos os lados, letras amarelas sobre fundo azul: “Gabinete do Presidente da Ucrânia”. Nas quatro semanas mais recentes, com as publicações de Zelenski, suas mensagens no Telegram e no Twitter, o cenário se tornou famoso. Um soldado de expressão séria entra na sala. “Uvaga!” grita ele: “Atenção!” Dez segundos depois, o presidente entra na sala, acompanhado por alguns homens armados com metralhadoras. Zelenski toma assento à cabeceira da mesa, diante de uma bandeira ucraniana cuidadosamente posicionada, e começa a falar.
A guerra e suas armas
A evolução de Zelenski, comediante e estreante na política convertido em estadista de envergadura mundial, ocorreu em apenas três anos: a trama se acelerou nas semanas mais recentes. Nos primeiros dias de sua presidência, em 2019, Zelenski era um líder pioneiro e pós-moderno que tentou ser tudo para todos. Não foi eleito por causa de suas propostas (nem apresentou muitas), mas sim por sua vaga oposição à corrupção e às ideologias da classe política.
Durante três temporadas ele interpretou o papel de um professor que se transforma em presidente em um popular seriado de TV, O servo do povo. Mas, em seus primeiros dias na presidência de verdade, ele parecia ter calçado sapatos grandes demais: quando a imprensa fez perguntas difíceis, ele parecia pouco à vontade, ou mesmo irritado.
Os acontecimentos forjaram na presidência dele algo mais substancial. Quando a guerra teve início, ele trocou imediatamente os ternos escuros e o rosto barbeado por jeans verdes e uma barba curta. Ele já tinha equipamento de combate pronto para entregar a soldados visitantes na linha de frente, um conjunto de inverno e um para a primavera: “Eu já estava com eles, mas não eram muitos”. O novo papel lhe caiu bem. Mesmo cansado, ele demonstra uma energia interminável, exibindo uma calma por trás da marra. Zelenski cumprimenta a todos com um respeitoso aperto de mão (uma pessoa ganha um abraço) e se aproxima para olhar nos nossos olhos. Puxa a própria cadeira. Serve-se de água com gás sozinho em um copo plástico.
Participa ativamente da conversa, com respostas rápidas, amistosas, às vezes brincalhonas, e acaricia a barba ao falar. Indagado a respeito daquilo que mais necessita do Ocidente, ele responde imediatamente: “Número um, aviões”, um sorriso piscando no seu olhar: “Número dois, mas tão importante quanto o número um, tanques”.
Chega a surpreender quando ele se perde, ocasionalmente. “Como seria uma vitória ucraniana?” perguntamos. Ele ergue as sobrancelhas, pisca e leva sete longos segundos antes de responder, talvez dando-se conta de que milhões de pessoas dependem do que vai dizer: “Uma vitória seria salvar o maior número possível de vidas”.
“Não esperava que fosse tão difícil”, diz Zelenski. “É impossível imaginar o que isso significa ou o que cada um faria como presidente.” O ataque russo empurrou a liderança dele para o desconhecido. Ele se recosta na cadeira: “Não sou um herói”. Tudo é uma conquista da força do seu povo, diz.
Sinceridade
Ele usa repetidamente a palavra sinceridade. “É preciso ser sincero, para que as pessoas acreditem em você. Não é necessário se esforçar. Basta ser você mesmo.” Essa aposta na autenticidade gerou adulação e até memes conforme Zelenski provoca os russos e inspira os ucranianos nas redes sociais com vídeos das ruas de Kiev. “Se eu ficar no escritório sem sair, nem que seja por três ou quatro dias, fico sem saber o que está acontecendo no mundo”, diz ele. Não é preciso fazer a comparação direta à qual ele está aludindo, mas ele não dá espaço para dúvidas. Vladimir Putin vive isolado no seu bunker “há coisa de duas décadas”.
Zelenski se mantém cercado de um pequeno grupo de jornalistas, advogados, artistas e profissionais de autoajuda, seu “governo improvisado” em tempo de guerra, nas palavras de Sergii Leshchenko, ex-jornalista e atual membro da comitiva presidencial.
Os membros da equipe (todos vestindo verde militar) parecem à vontade entre si e na relação com o líder. Mas nem tudo está no lugar. Há uma longa demora até que o intérprete do presidente chegue à sala. Um recado avisa que ele está ocupado em uma chamada internacional. “Algo vai mal quando o tradutor do presidente está indisponível para o presidente”, brinca Zelenski.
Idioma
O presidente indaga em voz alta qual idioma deveria usar. “Se perguntar em russo, respondo em russo. Se perguntar em inglês, respondo em ucraniano.” Os assessores sugerem que ele fale apenas ucraniano. O presidente concorda, mas nem sempre segue a regra, às vezes optando por um inglês com pesado sotaque, língua que ele fala bem, apesar de se desculpar por esquecer as palavras (chega um momento em que ele agita o dedo para o tradutor: “Não foi só isso que eu disse”, ri).
Tudo transmite uma impressão um pouco caótica, e talvez seja tudo realmente caótico. E ainda assim, todos parecem saber o que fazer. Estão levando a tarefa adiante, apesar da constante ameaça de uma bomba cair sobre suas cabeças. Estão desempenhando suas funções sem aguardar pela assinatura dele. Aqui, eles são o poder.
Zelenski, de sua parte, acredita que um só homem não pode e não deve controlar tudo. Enquanto seu país busca todas as formas possíveis de derrotar a Rússia no campo de batalha, esse entendimento, uma crença no poder dos indivíduos de se unirem para resistir juntos, pode se revelar a salvação da Ucrânia. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
*É CORRESPONDENTE NA UCRÂNIA
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