Thomas Friedman: A democracia está em risco em Israel e nos Estados Unidos

De muitas maneiras, o que aflige a política israelense não passa de uma versão do hiperpartidarismo que infectou a política americana.

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Por Thomas L. Friedman
Atualização:

THE NEW YORK TIMES - O governo de unidade nacional de Israel — sem precedentes na história do país — caiu na semana passada, infelizmente. Por que deveríamos nos importar? Porque de muitas maneiras o que aflige a política israelense não passa de uma versão “off Broadway” do hiperpartidarismo que infectou a política americana.

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A mentalidade de vitória a qualquer custo da extrema direita trumpista que foi descrita vividamente em Washington, na terça-feira, durante o testemunho de Cassidy Hutchinson à comissão que investiga o 6 de Janeiro no Congresso — é parte de uma tendência maior de adoção de valores profundamente antidemocráticos que contraria o que muitos americanos e israelenses ainda aspiram. Se essa tendência prevalecer, despedaçará ambas as sociedades, e é por esta razão que a alma da democracia de Israel e a alma da democracia dos EUA estão em jogo nas próximas eleições nos países.

Isso não é inevitável. Contrariando todas as tendências políticas recentes — e após três eleições inconclusivas em dois anos — Israel realizou algo bastante notável um ano atrás: reuniu uma coalizão de governo de unidade nacional que pela primeira vez incluiu não apenas israelenses judeus de direita e de esquerda, mas também israelenses árabes de um partido islamista que conquistou quatro assentos no Parlamento na eleição de março de 2021.

O premiê israelense, Naftali Bennett perdeu a coalizão na semana passada  

O cerne dessa coalizão foi composto pelo partido Yamina, de direita, do primeiro-ministro Naftali Bennett; pelo partido Yesh Atid, de centro-esquerda, do ministro de Relações Exteriores, Yair Lapid; e pelo partido Raam, árabe-israelense e islamista, de Mansour Abbas.

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Imaginem Joe Biden, Mitt Romney, Liz Cheney, Larry Hogan, Lisa Murkowski, Charlie Baker, o almirante aposentado Bill McRaven, Joe Manchin, Amy Klobuchar, Mike Bloomberg, Jim Clyburn e Michelle Lujan Grisham servindo todos ao mesmo gabinete e vocês conseguiriam ver um equivalente americano do governo de unidade nacional israelense que acaba de morrer.

Acredito que esses tipos de coalizões de esquerda-centro-direita — tomando decisões pragmáticas, fazendo concessões e aceitando contrapartidas que transcendem polos ideológicos usuais — são a única maneira de governar eficientemente democracias nesta era de rápidas mudanças tecnológicas, demográficas e climáticas.

O caminho do centro

A não ser que a esquerda e a direita se agrupem ao centro para encontrar uma maneira de governar conjuntamente em Israel e no EUA, ambas as nações se estagnarão, à medida que seus cidadãos e líderes se provem incapazes de realizar as coisas grandes e difíceis — da educação à imigração, à política industrial — que são necessárias para para prosperar no século 21. Atualmente, energia demais está sendo gasta pelos principais partidos no desfazimento dos trabalhos um do outro. (Busquem no dicionário: Roe versus Wade, controle de armas, imigração, política energética dos EUA…)

Apesar de ter durado apenas um ano, a coalizão de unidade em Israel conseguiu aprovar o orçamento nacional em novembro, o que equilibrou um amplo espectro de interesses. Isso pode parecer insignificante, mas trata-se do primeiro orçamento nacional israelense com base em prioridades nacionais em mais de três anos.

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Líder árabe Mansour Abbas tornou-se uma nova força no Parlamento de Israel  Foto: AHMAD GHARABLI / AFP

Uma conciliação improvável

Talvez mais importante do que qualquer outra coisa, a coalizão de unidade conseguiu demonstrar que israelenses judeus e árabes são capazes de governar juntos calmamente — o que é um marco histórico. Conversei com Bennett pouco antes de seu governo cair. Bennett manifestou coragem política ao contrariar muitos em sua base e se aliar com Abbas, e chamou minha atenção o respeito demonstrado por Bennet em relação ao parceiro de governo árabe-israelense, que desafiara muitos em sua própria base para alinhar-se a Abbas e Lapid. Isso se chama liderança.

Seu governo também deu aos israelenses breves férias da fragmentação promovida pelo ex-primeiro-ministro Binyamin Netanyahu e seus aliados ultranacionalistas e racistas. Netanyahu manifesta outro tipo de liderança. Igualzinho a Donald Trump. De fato, Netanyahu e Trump são irmãos na política, apesar de filhos de mães diferentes.

A terra arrasada extremista

Eles compartilham a abordagem de terra devastada em relação à política, a afirmação de que a maneira pela qual você conquista e mantém o poder não é construindo uma ampla coalizão a partir do centro; você faz isso mobilizando e radicalizando sua base contra “o outro”— e depois usa toda essa energia negativa para atacar instituições, meios de comunicação e limites jurídicos para distrair o público de suas falcatruas e acúmulos de poder.

Bibi foi indiciado por recebimento de propina, fraude e quebra de confiança e espera que sua reeleição o salve de uma possível pena de prisão. Trump espera que suas ações relativas ao 6 de Janeiro não o levem a um indiciamento por conspirar para reverter o resultado da nossa última eleição. Bibi e Trump foram denunciados por comportamento antidemocrático por procuradores-gerais que eles próprios nomearam.

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Netanyahu e seus seguidores organizaram um ataque impiedoso contra membros do partido de Bennett que participaram da coalizão de unidade nacional, eventualmente fazendo com que alguns rompessem com o governo para derrubá-lo. E apenas para tornar seu próprio cinismo completo, Netanyahu derrubou o governo liderando uma votação contra uma renovação do sistema legal de duas instâncias que permite aos colonos israelenses viver na Cisjordânia sob a lei israelense, em vez de submetidos à lei marcial através da qual Israel governa os palestinos.

Esse sistema de duas instâncias tem sido renovado regularmente, e a circunscrição de colonos de Netanyahu é incapaz de sobreviver sem ele. Mas para negar ao governo de unidade capacidade para governar, Netanyahu reuniu votos contrários a esse sistema.

O lema tácito de Bennett foi, “Temos um país para governar”, enquanto o de Netanyahu foi, “Temos um governo para derrubar”.

Ex-primeiro-ministro israelense Binyamin Netanyahu tenta voltar ao cargo  Foto: Maya Alleruzzo/ AP

Uma nova esperança

Apesar de o governo ter durado apenas um ano, Bennett, Lapid e Abbas comprovaram que algo que parecia praticamente impossível foi possível, e muitos israelenses apreciaram isso silenciosamente. Essa realidade — e a nova matemática da política de Israel — me sugere que isso é capaz de voltar algum dia.

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Que matemática? Os partidos de centro-esquerda e centro-direita de Israel não concentram juntos votos suficientes para obter facilmente uma maioria para governar. Mas os partidos de direita também não. No passado, os partidos religiosos judaicos leiloavam seu apoio entre as coalizões de esquerda ou de direita — votando na coalizão que oferecesse mais financiamento para suas escolas de judaísmo ortodoxo.

Mas graças a Netanyahu e seus compadres, os partidos religiosos de Israel se radicalizaram e não formam mais governo com a centro-esquerda, que ainda por cima se ressente por ter de comprar apoio dos partidos ortodoxos.

Então, adivinhem: quem apareceu para substituir os partidos judaicos?

O partido árabe-israelense islamista liderado por Abbas.

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O fiel da balança árabe em Israel

A maioria dos árabes-israelenses evitava participar internamente da política de Israel; eles criaram seus próprios, e praticamente irrelevantes, partidos de extrema esquerda pró-palestinos, que usualmente eram evitados por partidos judaicos enquanto parceiros. Mas os árabes-israelenses representam 21% da população de Israel. Com os judeus divididos em campos que se equivalem em força política, os árabes-israelenses têm potencial de se tornar o novo fiel da balança e usar esse poder para obter mais financiamento para suas escolas, cidades e polícias. Foi esse o grande insight de Mansour Abbas.

Com esse objetivo na cabeça, Abbas basicamente disse aos outros partidos árabes-israelenses dessem o fora, para que ele pudesse atuar no centro da política de Israel. Apesar de alguns membros de sua base terem resistido, Abbas obteve apoio de muitos árabes-israelenses fartos tanto com a corrupção e a estagnação da Autoridade Palestina na Cisjordânia quanto com a brutalidade e a incompetência do Hamas em Gaza. Eles preferiram o foco em suas vidas dentro de Israel.

Bibi percebeu imediatamente essa ameaça. Primeiramente, então, ele tentou cortejar Abbas e cooptá-lo para sua própria coalizão; e quando a manobra fracassou, de uma maneira verdadeiramente à la Bibi, o ex-primeiro-ministro tentou tornar Abbas radioativo, para que ninguém mais pudesse se alinhar com ele. Conforme noticiou The Times of Israel, Bibi afirmou “falsamente” que o partido de Abbas “é um partido antissemita e antissionista, que financia terrorismo e representa a Irmandade Muçulmana, que busca a destruição de Israel”. Bibi também acusou Bennett de governar com “apoiadores do terrorismo”.

Até aqui, nenhuma surpresa: Netanyahu não pode permitir que árabes-israelenses se tornem o fiel da balança na política de Israel, especialmente uma figura como Abbas, que não questiona a legitimidade de Israel e que reconhece explicitamente a dor do Holocausto. Abbas declarou na Knesset dois anos atrás: “Reverencio o heroísmo das pessoas que iniciaram o levante no Gueto de Varsóvia”.

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Parlamento israelense durante o recesso: país deve ter quinta eleição em três anos Foto: Ronen Zvulun/Reuters

A alma israelense em jogo

O filósofo da religião Moshe Halbertal, da Universidade Hebraica, me resumiu a coisa: a coalizão de unidade nacional de Israel “foi uma novidade muito promissora em termos de governança compartilhada entre árabes e judeus em Israel. Ninguém pode apagar isso, mesmo com todas as pressões ultranacionalistas retratando os árabes-israelenses como uma quinta-coluna. Então, agora os eleitores israelenses terão de decidir se preferem um país inclusivo e capaz de oferecer respeito e dignidade para todos os seus cidadãos ou um país que se baseia na negação do próximo”.

Por essa razão, acrescentou Halbertal, “é a alma de Israel que está em jogo na nossa próxima eleição”.

E também a dos EUA. Hutchinson, que atuou como graduada assessora na Casa Branca durante o governo de Trump, deixou isso dolorosamente claro no Capitólio na terça-feira, quando falou com eloquência a respeito da maneira como seu próprio senso de patriotismo e dever enquanto americana foi violado pelas ações de Trump e seus aliados. Hutchinson não habita a política eleitoral, mas fez algo muito mais importante — nos forçou, com seu testemunho, a nos questionarmos a respeito de que tipo país queremos ser, que tipo de líder queremos ter e sobre qual é de fato a alma dos EUA. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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