Thomas Friedman: Brexit, Chexit, Ruxit ou Trumpit, qual o pior evento de 2022?

Derretimento da economia do Reino Unido, a guerra de Putin na Ucrânia, a ‘grande mentira’ de Trump ou o fim da integração econômica da China ao Ocidente, qual o fato mais importante do ano?

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Por Thomas Friedman (The New York Times)

Quando os historiadores do futuro analisarem 2022, terão muitas alternativas quando se indagarem: qual foi o fato mais importante daquele ano? Seria a Brexit, a Chexit, a Ruxit ou a Trumpit?

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Seria o derretimento da sexta maior economia do mundo, o Reino Unido, estimulado em parte pela sua descuidada saída da União Europeia? Ou a tentativa demente de Vladimir Putin de apagar a Ucrânia do mapa, afastando a Rússia do Ocidente (o que chamo de Ruxit), criando o caos nos mercados globais de alimentos e energia? Seria o quase total contágio do Partido Republicano pela Grande Mentira de Donald Trump (Trumpit), segundo a qual a eleição de 2020 teria sido roubada, e que está erodindo o mais precioso ativo da nossa democracia: a capacidade de uma transferência de poder legítima e pacífica?

Ou seria o impulso da China do presidente Xi Jinping rumo à Chexit — o fim de quatro anos de constante integração da economia da China ao Ocidente, fim simbolizado pela expressão que meu colega em Pequim, Keith Bradsher, usa para descrever onde as multinacionais ocidentais pensam em instalar sua próxima fábrica: “qualquer lugar, menos a China”.

O presidente dos EUA, Joe Biden, se reúne virtualmente com o líder chinês, Xi Jinping, em novembro de 2021 Foto: Susan Walsh/AP

É difícil escolher. E, ao mencioná-las juntas, vemos como 2022 se tornou um divisor de águas na história. Mas eu escolheria a Chexit.

Tivemos quatro décadas de integração econômica entre EUA e China que beneficiaram muito o consumidor americano. Isso levou a novas oportunidades de exportação para alguns americanos e, para outros, ao desemprego, dependendo do setor em que trabalhavam. Ajudou a tirar centenas de milhões de chineses da pobreza. Manteve a inflação sob controle e ajudou a evitar guerras entre grandes potências.

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Como um todo, sentiremos falta dessa era agora que ela chegou ao fim, pois nosso mundo será menos próspero, menos integrado e menos estável do ponto de vista geopolítico. Mas o fato é que ela é passado.

Como destacou em outubro o especialista em China da New Yorker, Evan Osnos: “Em 2012, 40% dos americanos tinham uma opinião desfavorável da China; hoje, mais de 80% pensam assim, de acordo com o Pew Research Center”.

Se a China tivesse um governo democrático, alguém por lá certamente estaria se perguntando, “Como perdemos os Estados Unidos?”

Os EUA não são isentos de responsabilidade pela erosão deste relacionamento. Desde a 2ª Guerra Mundial, nunca tivemos um rival geopolítico que fosse quase nosso equivalente, tanto em termos econômicos quanto militares. Nunca nos sentimos à vontade com o crescente desafio representado por Pequim, especialmente porque a China não era movida a petróleo, e sim pela própria poupança, trabalho duro e pela aplicação no dever de casa — isto é, a disposição em fazer sacrifícios para alcançar a grandeza nacional, com forte ênfase na educação e na ciência. Essa descrição costumava se aplicar a nós, americanos.

Mas a China é muito mais responsável por isso. Para se ter uma ideia do quanto a China afastou os EUA, poderíamos começar fazendo a Pequim a seguinte pergunta: “Como é possível que vocês tivessem o lobby mais poderoso de todos em Washington, sem que isso lhes custasse um centavo, e mesmo assim vocês estragaram tudo?”

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Estou me referindo ao Conselho Empresarial EUA-China e à Câmara de Comércio dos EUA-China. Esses poderosos grupos empresariais, representando as maiores multinacionais americanas, dedicaram-se energicamente por quarto décadas à defesa de mais investimentos na China e da China, que seriam uma vitória para todos os envolvidos. O mesmo vale para a Câmara de Comércio da UE-China.

Hoje, esses grupos de lobby estão pouco ativos.

O que ocorreu? Tivemos o ápice de quatro tendências.

A primeira teve início em 2003, pouco depois que a China foi aceita na Organização Mundial do Comércio (graças aos EUA), quando o principal defensor das reformas de mercado na China, o primeiro-ministro Zhu Rongji, deixou o cargo. Zhu queria a presença de empresas americanas na China pois acreditava que as empresas chinesas deveriam concorrer domesticamente com as melhores para que pudessem concorrer com eficácia no mundo.

Mas Zhu enfrentava oposição nas muitas províncias do interior da China, dominadas por indústrias de propriedade chinesa que não tinham interesse nem capacidade de concorrer globalmente como faziam as províncias do litoral chinês. E a influência delas crescia.

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Uma reunião da Organização Mundial do Comércio em Pequim, em 2018 Foto: Thomas Peter/Reuters

Quando a China entrou para a OMC e obteve um imenso acesso aos mercados ocidentais livre de tarifas ou sob a cobrança de tarifas reduzidas, o país prometeu assinar um acordo paralelo da OMC a respeito das compras governamentais que teria limitado a capacidade da China de discriminar fornecedores estrangeiros ao fazer imensas compras governamentais. Mas a China nunca o assinou. Em vez disso, continuou direcionando seu vasto poder de compra estatal para suas indústrias estatais — que continuou a subsidiar.

Um número grande demais de empresas chinesas simplesmente copiavam ou roubavam a propriedade intelectual de empresas ocidentais que construíram fábricas na China. Então as indústrias chinesas usaram seu mercado doméstico protegido para obter ganhos de escala — e então concorreram com essas mesmas empresas ocidentais, no mercado doméstico e no exterior - E AINDA receberam subsídios de Pequim.

Como expliquei em uma coluna de 2018: mesmo quando os EUA protestaram na OMC — como ocorreu quando a China manteve afastadas injustamente empresas americanas de cartão de crédito, perdendo o caso na OMC — a China seguiu avançando lentamente no compromisso de abrir seus mercados a elas, feito 17 anos antes. Então, empresas chinesas como a UnionPay dominavam tão completamente o mercado que empresas americanas como a Visa tiveram que se satisfazer com as migalhas restantes. Surpreende que atualmente o volume das exportações da UE para a China seja levemente superior ao daquelas destinadas à Suíça?

Motivo pelo qual muitas empresas dos EUA e da UE mudaram de atitude: se antes fingiam não ver a manipulação chinesa do mercado, pois ainda estavam ganhando dinheiro no país, passaram a se queixar a seus governos, mas sem pedir a eles que se queixassem com Pequim, por medo de uma retaliação, e agora procuram expandir sua cadeia de fornecimento para qualquer lugar que não seja a China. Até a Apple busca agora diversificar mais da sua produção para depender do Vietnã e da Índia.

“A comunidade empresarial americana adorava a China — sempre houve alguma tensão, mas predominava a impressão de uma parceria para explorar as oportunidades. Não foi fácil para a China afastar de si a comunidade empresarial, mas os chineses conseguiram”, disse-me Jim McGregor, que viveu 30 anos na China como consultor de negócios e escreveu três livros com base na sua experiência.

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Não surpreende que um executivo americano que trabalhou muito tempo na China comentou comigo, logo que Trump começou sua guerra comercial com Pequim, dizendo que Trump não era o presidente que os EUA mereciam, mas era o presidente americano que a China merecia. Alguém precisava defender nosso lado do jogo.

Agora o presidente Xi fez o mesmo do seu lado. Como disse em entrevista Joerg Wuttke, presidente da Câmara de Comércio da UE na China, a eleição de Xi para um terceiro mandato sem precedentes com base em uma plataforma que enfatiza o marxismo e a ideologia em detrimento dos mercados e do pragmatismo “demonstra para mim que a abertura da economia chinesa não vai continuar. … Temos que supor que a China está se distanciando dos outros países e construirá um modelo para se contrapor ao modelo ocidental, liberal e voltado para o mercado”.

A segunda tendência remonta à sequência dos eventos na Praça Tiananmen em 1989, quando a liderança do Partido Comunista Chinês buscou sufocar as aspirações democráticas da juventude chinesa com um banho de hiper-nacionalismo. Minha colega Vivian Wang, em Pequim, entrevistou recentemente o autor político Wang Xiaodong, há muito considerado o porta-estandarte do nacionalismo chinês, que certa vez disse que “a marcha da China rumo ao avanço não pode ser detida”. Entretanto, Wang Xiaodong disse ao Times que, sob Xi, o movimento nacionalista chinês, estimulado por outros influenciadores nas redes sociais, foi longe demais: “Fui chamado de padrinho do nacionalismo. Eu os criei. Mas nunca disse a eles para serem tão loucos”.

Wang Xiaodong, um escritor que já foi chamado de bastião do nacionalismo chinês  Foto: Gilles Sabrié/The New York Times

Senti o gosto disso em 2018 quando estive na China conversando com figuras importantes do governo e do empresariado. Quando mencionei as práticas comerciais injustas da China, a reação foi mais ou menos assim: “Você se dá conta que vocês, americanos, chegaram tarde demais? Agora somos grandes demais para sermos intimidados. Deviam ter tentado isso dez anos atrás”. Respondi que esse tipo de arrogância costuma criar problemas para os países.

O que nos leva à terceira tendência: uma política externa chinesa muito mais agressiva que busca expandir seu domínio por todo o Mar do Sul da China, assustando os principais vizinhos do país: Japão, Coreia do Sul, Vietnã, Índia e Taiwan.

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Mas a última tendência pode ser a mais repelente: em vez de importar vacinas ocidentais eficazes para manter a pandemia sob controle, a China aposta em uma política de “Covid zero” que prevê o lockdown de cidades inteiras, além de todas as novas ferramentas de um estado vigilante: drones, reconhecimento facial, câmeras de circuito fechado onipresentes, rastreamento de celulares e até o rastreio de comensais nos restaurantes, que devem apresentar um código QR a ser digitalizado e registrado.

É como uma estratégia de Xi para evitar a disseminação da Covid e também da liberdade.

O que Xi não compreende é que todas as tecnologias mais avançadas do século 21 — como os semicondutores e as vacinas de mRNA — exigem grandes e complexas cadeias de fornecimento, porque nenhum país pode ser o melhor em cada um de seus componentes cada vez mais sofisticados. Mas essas cadeias de fornecimento exigem uma imensa colaboração e confiança entre os parceiros, e foi exatamente isso que Xi desperdiçou na década passada.

A crença de Xi segundo a qual a China pode ser a melhor em tudo sozinha é como crer que a seleção de basquete da China será sempre capaz de bater uma equipe dos melhores jogadores do mundo.

Pois é, difícil de acreditar.

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Mas isso preocupa. Confesso que não gosto de usar o termo “China”. Prefiro muito mais falar no “sexto da humanidade que fala mandarim”. é algo que captura melhor a verdadeira escala do que estamos enfrentando. Quero ver os chineses prosperando; isso é algo positivo para o mundo. Mas, hoje, eles estão seguindo pelo caminho errado. E quando um sexto da humanidade pega a trilha errada no nosso mundo, ainda tão conectado (a China ainda mantém quase US$ 1 trilhão em títulos da dívida do tesouro americano, por exemplo), todos sofrerão com isso. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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