Thomas Friedman: Como Biden pode ajudar a salvar o Oriente Médio

Se o presidente americano for capaz de auxiliar acordo entre Israel, Jordânia e Emirados Árabes sobre o Rio Jordão, pode significar a maior contribuição dos EUA à paz na região desde Camp David

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Por Thomas Friedman

JERICÓ, Cisjordânia — Há dois dramas desdobrando-se atualmente ao longo das margens do Rio Jordão, representando as duas forças mais poderosas que forjam a política dentro e no entorno de Israel. Diga-me qual domina e lhe direi com o que as relações entre judeus e árabes se parecerão.

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Um é a lógica do tribalismo — manifestada acentuadamente no governo recém-eleito de Israel, ultrarreligioso e ultranacionalista, que foi propelido ao poder por uma elevação nos confrontos entre palestinos da Cisjordânia e israelenses em geral; e por um aumento na atividade criminal de árabes-israelenses contra outros árabes-israelenses e e contra judeus, em particular. Tudo isso é motivado pelo lema tribalista: “Eu e meu irmão lutamos contra meu primo. Eu, meu irmão e meu primo lutamos contra o forasteiro”.

O líder israelense dessa coalizão é Binyamin Netanyahu, que venceu a eleição com uma campanha dedicada a disseminar medo dos palestinos que vivem na Cisjordânia e dos palestinos cidadãos de Israel e resistir a compartilhar poder com os árabes. A principal mensagem de Netanyahu para os judeus israelenses: só eu sou capaz de protegê-los da outra tribo.

Mas enquanto essa campanha transcorria, outra lógica também operava: a lógica da natureza, afirmando que quando o clima muda, como ocorre agora, não é a espécie mais forte nem a mais inteligente que sobrevive — é a mais adaptativa. E os ecossistemas mais adaptativos são normalmente os mais diversos, ricos em espécies que oferecem diferentes maneiras de se adaptar. Elas prosperam porque são capazes de forjar interdependências salutares entre diferentes plantas e animais; e, ao fazê-lo, maximizam resiliência e crescimento.

Seu lema é: “Eu, meu irmão, meu primo e o forasteiro colaboramos naturalmente para ascender juntos, não arruinar-nos juntos”.

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Binyamin Netanyahu caminha entre apoiadores e seguranças no mercado Hatikva, em Tel-Aviv, durante campanha eleitoral em Israel. Foto: Ariel Schalit/ AP - 28/10/2022

Um exemplo desse tipo de pensamento foi a tácita aliança ambiental forjada pelo governo anterior de unidade nacional, liderado por Yair Lapid e Naftali Bennett, em colaboração com líderes da Jordânia, da Palestina e dos Emirados Árabes Unidos.

Certamente, o governo anterior de Israel dedicou-se a um pensamento de resistência onde foi necessário — dissuadir ataques iranianos e palestinos contra israelenses. Mas também se engajou em muitos pensamentos de resiliência bastante criativos, com base na seguinte lógica: as mudanças climáticas e a seca matarão todos nós muito antes de matarmos uns aos outros, a não ser que produzamos fontes de água mais sustentáveis. Isso tem de começar com a ressuscitação do Rio Jordão, que sustenta vida nessa região há milênios. Hoje isso requer formas inéditas de colaboração entre judeus e árabes.

Vim aqui, ao ponto mais baixo da Terra, onde a cidade ancestral de Jericó, o Rio Jordão e o Mar Morto se encontram, sublinhar essa coalizão climático-ambiental que emerge. Meu guia foi Gidon Bromberg, um dos cofundadores da EcoPeace Middle East, uma ONG ambiental composta por jordanianos, palestinos e israelenses que luta pela preservação do meio ambiente de uma das regiões mais carentes de água no planeta.

Bromberg iniciou o tour apontando dois elementos surpreendentes e inter-relacionados. Primeiro que o Vale do Jordão costumava ser dominado por fazendas que cultivavam uma ampla variedade de frutas e verduras. Hoje, lamentavelmente, a maior parte do território é coberta por tamareiras.

Segundo, a curva no Rio Jordão em que estávamos — ponto em que, reza a tradição, João Batista batizou Jesus — costumava ter 100 metros entre as margens, com corredeiras espumosas. Hoje, o leito tem 10 metros de largura, nenhuma corredeira, e por este motivo pudemos assistir peregrinos cristãos de pé tranquilamente no meio do rio, sendo batizados por seu sacerdote.

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A conexão? Atualmente a temperatura por aqui fica tão alta durante períodos cada vez mais prolongados ano a ano (quase 46ºC no fim do último agosto) que essencialmente a única produção agrícola possível e confiável na região é a tâmara. Mas isso só é possível se as tamareiras tiverem muita água, recurso que hoje está em perigo.

Sem um Rio Jordão saudável, nem as tamareiras serão capazes de sobreviver por aqui. O site de notícias Middle East Eye citou recentemente um agricultor jordaniano que definiu a perturbação em suas safras: “Costumávamos começar a plantar em julho, mas agora começamos em setembro ou até outubro”, porque os meses do verão ficaram quentes demais. “Mas o frio chega muito cedo” — tão cedo que os vegetais certas vezes não conseguem prosperar.

Vaca atravessa o rio Jordão perto do Kibbutz Karkom, no norte de Israel Foto: Oded Balilty/ AP - 30/07/2022

Como conseguir mais água? O método antigo era a resistência, um pensamento de soma-zero — “todos usando a água para o que consideravam necessidades legítimas para sua própria segurança”, explicou Bromberg. Nos anos 60, Israel desviou parte do fluxo do Mar da Galileia (que é um lago de água doce) ao Jordão, para poder destinar mais água, por meio de um aqueduto nacional, para a sedenta Tel-Aviv e o Negev, com objetivo de fazer o deserto florescer. A Síria represou seu afluente do Jordão, o Rio Yarmouk, e a Jordânia limitou o fluxo do que lhe sobrou do Yarmouk e outros afluentes que o abasteciam em seu território.

O antes poderoso Jordão se transformou em um riacho, com secas sazonais exacerbadas, levando uma grande porção do Mar Morto a secar. E pior, usaram o Jordão como esgoto.

A boa notícia é que Israel e Jordânia reconheceram que isso é mutuamente autodestrutivo e, como parte de seu tratado de paz, de 1994, concordaram que Israel deveria abrir a torneira do Mar da Galileia ao Jordão, permitir um fluxo maior de água para o rio. Mas o Jordão não conseguiu se recuperar. Com o clima cada vez mais quente e seco no vale — e 700 mil jordanianos, 30 mil israelenses e 60 mil palestinos tentando ganhar a vida com agricultura por lá — uma solução mais sustentável é necessária.

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Em outubro de 2021, escrevi a respeito das linhas gerais do que, eu esperava, tinha capacidade de se tornar um novo tipo de acordo de paz entre árabes e israelenses — um tratado que engendraria resiliência entre as partes, em vez de apenas acabar com a resistência mútua.

A negociação foi iniciada por Jordânia, Israel e EAU durante uma conferência em Dubai, com a ajuda do enviado dos Estados Unidos para o clima, John Kerry. No mês passado, na cúpula climática em Sharm el-Sheikh, esses países deram um passo adiante e assinaram um novo memorando para completar um estudo de factibilidade para essa colaboração inédita.

O rascunho do documento prevê que os EAU forneçam capital de investimento para possibilitar à Jordânia construir uma usina de energia solar com 600 megawatts de capacidade neste vasto deserto, para produzir energia limpa que Israel usaria na expansão de suas usinas de dessalinização na costa (que logo seriam capazes de fornecer 90% da água doce de Israel) e bombear parte dessa água dessalinizada ao Mar da Galileia — e então ao expandido e adequadamente filtrado Rio Jordão, para que ele possa voltar a ser um provedor de água doce conforme a natureza o projetou.

Se o presidente Joe Biden for capaz de ajudar a pastorear esse conceito à fruição, esta poderia ser a maior contribuição dos EUA à paz no Oriente Médio desde Camp David. Um estudo da EcoPeace argumenta que a recuperação do Rio Jordão e do Vale do Jordão poderia, ao longo do tempo, dar um impulso multibilionário ao PIB combinado dos residentes israelenses, palestinos e jordanianos da região — de seu irrisório nível atual, de US$ 4 bilhões.

Biden pode dar maior contribuição para a paz no Oriente Médio desde Camp David. Foto: Ross D. Franklin/ AP - 06/12/2012

Falando francamente, com o antigo processo de paz atualmente tão morto quanto o Mar Morto, nós precisamos ter esperança de que autointeresses explícitos em resposta a desafios ambientais estimulem uma colaboração massiva em torno de energia limpa e água doce.

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Gostei de uma analogia de Bromberg: A União Europeia, notou ele, foi forjada após a 2.ª Guerra “para aproveitamento dos dois recursos naturais mais importantes para a Europa naquele tempo, carvão e aço, para criar paz e prosperidade”. De fato, quando a UE foi fundada, ela foi batizada de Comunidade Europeia do Carvão e do Aço.

“O que é carvão e aço hoje em dia?”, perguntou Bromberg. “O mar, o sol e a areia.”

Precisamos ajudar as três partes envolvidas aqui a forjar uma interdependência salutar, cujo produto seja não apenas água doce e limpa capaz de nutrir a agricultura, mas também uma confiança capaz de semear sua política. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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